quarta-feira, 1 de julho de 2009
Voltar de Buenos Aires
Fora do País, nos sentimos mais estrangeiros ainda. Do exílio, o fedor das favelas sem saneamento básico é mais penetrante e o grito do inocente morto numa emboscada oficial soa muito mais verossímil.
A vontade de voltar é imensa e embriagante, apesar das circunstâncias atenuantes.
Em Buenos Aires, as mulheres têm a pele clara e o charme europeu, com os
agravantes dos antepassados índios e ibéricos. O suco de laranja é mais caro e as
roupas têm preço de banana, como dizem os novos ricos. Que atrevidos!
O sangue é caliente e a língua se enrola ao sabor do tango e ao ritmo do portenho vinho. As viúvas da Plaza de Mayo gritam por seus ausentes, enquanto no Brasil, ainda
se fabricam mais desaparecidos. O menino de rua virou mortadela, meus amigos.
Ótima solução para quem sequer liga para os recém-nascidos, jogados aos fornos da miséria, como leitões empedernidos. É a solução para a fome, de um país quase desenvolvido, transformar pirralhos das ruas em embutidos.
Vivas para a Fábrica de Mortadela, da qual nenhum menor carente sairá vivo! E, quiçá, aos mais críticos: antes do abate, são bem alimentados, para se tornarem
produtos da melhor qualidade, tipo exportação, e muito nutritivos.
Em Buenos Aires, o fantasma de Perón permanece vivo na lenda de Evita, transformada num musical por uma cantora maldita e, ao mesmo tempo, querida. Na minha terra, da qual parti a contragosto, os tiranos se fazem muito mais desapercebidos.
Sob a sigla de movimentos, estatais, sindicatos, partidos, investigam todos os passos dos menos favorecidos. O pobre quer ser alguém e sair de seu casulo, mas o Leviatã não deixa, simplesmente por vaidade. No mundo dos reles mortais, só existem
direitos para aqueles de berço bem-nascido, cujos traços econômicos estão
rigidamente definidos, em contraposição aos coitados de dentes e sonhos partidos.
É o prazer mórbido daqueles capazes de fustigar o próprio povo, conhecidos no Islã como mamelucos, que são na verdade canalhas travestidos de governantes, ou coisas adjacentes, que usam como bode expiatório o bem-estar de um povo, apesar de exercerem o poder do interior da casca de um ovo choco.
Dentro de seu mundo perfeito, os eleitos por eles mesmos elaboram suas leis, perfeitas aos domínios de suas próprias vaidades. Por analogia - incorreta, diga-se de passagem -, a lei interna do ovo, da cúpula dos eleitos, é transferida ao mundo real, que é algo totalmente diferente do que eles imaginam ser.
É assim que começa o tratamento igual dos desiguais: como adaptar as leis de dentro de um ovo para toda a imensidão ao seu redor? Então, afirmam os sofistas que os provenientes do interior do ovo, a gema da sociedade, são mais iguais que os outros, originários das zonas periféricas.
Assim, as leis sedimentam e mobilizam o sistema. Os desafiadores são submetidos aos aparelhos repressivos e ideológicos do governo, que lhes ditam: Pena de morte gradativa àqueles que tentam desafiar o sistema! Quem é pobre já está condenado sumariamente à desgraça. Quem mandou perder o emprego? É sua culpa e não do governo!
O rapaz erodido pelas rodovias da vida tenta rodar por outro caminho. Sem emprego, sem nada, mas com um pouquinho do que lhe resta do orgulho. Quer fazer tudo certo, como diz o figurino. Quer montar uma mercearia, junto com o padrinho. Os papéis aterrissam e dominam a sua vida.
Vai de um guichê a outro e ninguém resolve o seu problema. A lojinha, bonita de fachada e por dentro toda perfumada, é ilegal por vontade do governo. É só esperar o fim do mês para ter dinheiro e tudo ficar certo. Mas não dá tempo de regularizar a situação.
Em pouco tempo, os fiscais passam por lá e embargam tudo. Como seus bens estão confiscados, é hora de virar bandido ou de cair de vez junto às fileiras de pó e pedrinhas e de ver suas filhas, pré-púberes, aprenderem a ser gente grande, do jeito errado, usando drogas e se vendendo à noite, ao lado do mercado! Dessa maneira, o governo tira o pouco de orgulho que resta do pobre coitado, que vira cambista do mercado informal, que é da economia o filho bastardo.
A viagem, aqui na Argentina, seria aproveitável e curta se eu não tivesse memória e
me esquecesse de tudo o que eu vi e considerei errado. Digo o que ocorre no meu País aos meus novos amigos na Argentina e eles acreditam porque também são exilados. Indagam o meu crime e respondo: “Idéias independentes e um sobrenome de mau-agrado.”
Do jeito que estou, poderia ficar aqui e ninguém se importaria da maneira que eu gostaria.
Adeus, caro leitor, e que estas linhas te tragam algo mais. E se fores um burguês, peço-te com veemência para deixar um pouco de lado tua asquerosa mesquinharia! Se esse dia chegar, poderei voltar sem colocar ninguém em perigo, pois seremos todos iguais.
Daí abraçar-me-ei num corpo de mulher e afagarei seus cabelos negros. Recostarei minha cabeça e chorarei nos ombros dela, numa torrente de carícias. Assim, pueril como um infante, indagarei num suspiro: “O erro está em mim ou no mundo, Maria?”
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