terça-feira, 14 de julho de 2009

Algo além de cartas


A geada da noite anterior tocou e agraciou com um toque temperado os domínios de um dos bairros mais fustigados da periferia. Tudo branco, tudo muito leve, tudo muito belo, em contraste aos estragos provocados na saúde dos que vivem naquelas redondezas. Terminada a madrugada com o despontar dos primeiros raios de sol, os resquícios do frio, porém, continuavam a disseminar o pedido de calor daqueles que são corpos separados e incompletos por definição. Consciente do seu isolamento e da falta de algo melhor para fazer naquela tarde de feriado, Armando perambulou – encoberto pela sua manta predileta – por toda sua casa, esquecendo-se dos seus chinelos perto do sofá. A parte de baixo das suas meias já estava encardida devido ao contato com chão. Ligou a televisão e passeou com o controle remoto por todos os canais. Nada de interessante.



Dentro do cômodo que usava como escritório, sentou-se à escrivaninha e começou a ler uma revista. Entediado, parou e ligou o computador. Internet é uma maravilha nestas horas, pensou. Entrou num chat. Não gostou de ninguém. Aliás, Armando nunca gostou de ninguém, no sentido homem-mulher da expressão. “Nunca amei ninguém, realmente. Apenas tive lapsos mentais, a popular paixão. Felizmente, eu me recuperei de todos eles”, costumava dizer.


Colocou as capas plásticas no CPU, no monitor e no teclado, para depois retomar a revista e ir para a sala. Tédio era a melhor tradução dos seus sentimentos. Seus dedos tatearam as folhas da publicação, enquanto jazia no sofá com a televisão ligada na MTV. Não se interessou por matéria alguma em particular. Os videoclipes, repetidos ao extremo, nem chegavam a construir uma trilha sonora para aquele cenário embebido de silêncio humano. Dance, techno e porcarias de FM: lixo cultural. Tudo música ligeira, de acordo com a conceituação de indústria cultural do alemão Theodor W. Adorno. O tilintar das folhas da revista produzido por Armando era mais barulhento e precioso que os barulhos vindos do aparelho televisivo.


Seus olhos percorreram as páginas e pousaram na parte de cartas de leitores. Ele imaginou a fauna que deveria mandar cartas para aquela publicação e sorriu levemente, achando engraçado. Evitou cair no sono preguiçoso de fim de feriado ao ler mensagens do tipo: “Sou rebelde, adoro Megadeth e o verdadeiro death metal. Caçadoras de cabeludos não me escrevam. Quero me corresponder como pessoas realmente conscientes.”





Armando tocava guitarra desde os 14 anos. Sua mãe, como era de praxe, proibiu-o de seguir a carreira de músico. Manteve os cabelos longos e a banda de “rock esquisito”, porque ninguém conseguia conceituar o tipo de música composta pelos seus integrantes. Desde aquela época, tinha o costume de comprar aquela revista. “Não criei filho para ser músico”, dizia sua mãe que aproveitava a oportunidade para cobrá-lo quanto aos estudos para os exames vestibulares.
Mesmo com uma guitarra mediana, uma caixa amplificadora simples e um pedalzinho de distorção, continuou a aprender as técnicas do instrumento, com vídeo-aulas e revistas importadas. Ele amava aquilo e deixava seus sentimentos transparecerem silenciosamente, por meio dos seus cabelos longos, que chegavam até o meio das costas. Passou nos exames e, com muito custo, teve sua cabeleira depenada.


Formou-se bacharel em Direito com todos os méritos, totalmente metamorfoseado. Não era Gregor Samsa, de Franz Kafka, convertido em barata, mas, com certeza, era outro. Cabelos cortados rentes, olhar espartano e intimidante. Quase nada daquele rapaz restou. Aos 22 anos, passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), logo em seguida da colação de grau, já era reconhecido como um dos maiores especialistas em direito relacionado a internet. Mais um ano e já tinha seu escritório montado, prestando serviços e consultoria para empresas multinacionais e o próprio governo. Apesar de tudo silencioso, on-line, como sua vida, precisava do seu espaço. Daí, decidiu construir uma casa, adjunta ao seu escritório. Só sua e de ninguém mais. O silêncio lhe era precioso, principalmente nas noites de insônia. Sono leve e cabeça dura: combinação infernal. Muito para os seus apenas 24 anos.


Uma mensagem em particular chamou-lhe a atenção: “Tenho 23 anos e estou terminando a faculdade de biologia. Gosto de rock em geral. Sou de poucos amigos e queria conhecer alguém especial. Michelline.” Armando parou naquela página e imaginou mil coisas. Pensou quem deveria ser aquela moça que, misteriosamente, precisava conhecer alguém por meio de cartas. Enfim, resolveu escrever-lhe, só para ver no que dava. Mesmo morando na mesma cidade, achava que os dois nunca iam se encontrar, de qualquer maneira.


Passada uma semana, veio a resposta. Michelline tinha adorado sua carta. “Nunca me correspondi com alguém que escrevesse tão bem. Eu reparo nisso, sabe ?” Gostavam basicamente das mesmas coisas, dos mesmos conjuntos. O falatório das bandas de rock dos anos 80 prevalecia, inicialmente. Armando gostou de se corresponder com ela e pediu o seu endereço eletrônico (e-mail) para se sentir mais seguro no seu reinado eletrônico. Mas recebeu uma recusa. “As cartas são mais nostálgicas, retratam a pureza e a beleza de um passado distante nos dias de hoje”, respondeu Michelline.


Os novos CDs e shows eram a pauta fundamental da comunicação, no início do relacionamento. Aos poucos, foram se soltando e revelando pequenos aspectos de suas tolhidas personalidades. Depois de seis meses de correspondência, Michelline confessou-lhe que escrevia porque se sentia totalmente só. Escrever era uma maneira particular de ocupar-se e tentar contato com alguém, “como um abraço quente e envolvente, numa noite de luar cúmplice”. Armando também passou para as cartas seus segredos. Narrou-lhe em detalhes, seus sonhos, suas fantasias e seus medos. Nunca se abriu dessa maneira. Com ela, ao contrário das relações com as outras pessoas no cotidiano, agia com tamanha espontaneidade porque começava a sentir algo que não sabia ainda definir bem ao certo o que era.


Depois de um ano, eram mais que correspondentes, embora nunca se tivessem visto ou tocado. “Você é o meu melhor amigo”, revelou Michelline no papel. “Você também é a minha melhor amiga”, respondeu.


Michelline já era bióloga e trabalhava no zoológico local. Armando evitava passar naquele local. Temiam maiores contatos que não fossem os escritos. As cartas continuaram, sempre. Ela mudou-se para uma casinha perto da dele. Mesmo assim, não arriscavam uma visita.


Um ano depois, Michelline ficou dois meses sem escrever. Foi aos Estados Unidos para um curso especial em educação ambiental no Roger Williams Park Zoo, na cidade de Providence, Estados Unidos. Cometeu um erro, esqueceu de avisar Armando. Apesar de as respostas não chegarem, insistia em continuar mandando cartas.


Chegou a um limite extremo. De posse do endereço da moça, foi à casa dela. Tocou a campainha repetidas vezes, por dez minutos. Só o silêncio respondia. Trepou no portão e pulou. Bateu à porta, sem resultados. Tirou um pedaço de papel do bolso e escreveu um bilhete: “Você se esqueceu de mim. Será que tudo o que passamos não valeu a pena ?”


Uma semana depois, voltou. Leu o bilhete. Nem desfez as malas e lhe deu o retorno. “Desculpe-me. Esqueci-me completamente de contar-lhe a respeito do curso nos EUA. Prometo que nunca vai acontecer novamente.”


Naquele período sem receber as cartas, Armando percebeu que não podia ficar sem as palavras dela. Aos 28 anos, continuava vivendo só com sua presença numa casa de cinco cômodos, grande demais para ele. Num deles, montou um estúdio, com bateria, amplificadores, mesas-de-som e tudo o que era necessário para gravar de demo-tapes (fitas-demonstração) a compact discs (CDs). Programava os instrumentos, compunha algo na guitarra e deixava gravado.


Recebeu a carta de Michelline e não dormiu. Demorou horas para escrever um texto. Ao final da carta, deu-se conta da plenitude de seus sentimentos e lhe segredou: “Michelline, eu te amo.” “Armando, também te amo. Nunca mais deixarei de te escrever”, veio a resposta.


Embora tivessem tudo a favor para serem felizes, não tinham coragem de enfrentar um a presença do outro. Amaram-se na escolha das palavras, especiais para cada ocasião, na construção das frases, orações e períodos. A felicidade do casal era materializada naquela forma particular de amar.


Armando tinha 30 anos quando Michelline lhe escreveu que tinha se casado no sábado. Era Ricardo, um namorado dos tempos de colegial. “Eu sempre gostei dele. É o homem da minha vida”, justificou-se a moça. Um estilhaço arremeteu os sentidos de Armando junto ao mármore da sua casa. Congelou-se por dentro como se uma lança de gelo atravessasse seu corpo, num gesto de derrota total perante a única esperança de continuar a viver. Levantou-se e se recompôs. Não ia desistir de tudo o que tinha feito até então por causa disso.



A correspondência continuou, mais fria, mas constante. O foco existencial de Armando recaiu com forças redobradas nas suas atividades profissionais. Seu escritório crescia e seu nome, reconhecido, era freqüente nas publicações de negócios. Um ano depois, nasceu o primeiro filho de Michelline. Sem ninguém da família, incluindo o marido, entender deu-lhe o nome de Armando, “Armandinho”. Armando, na quietude de seu estúdio recheado de memorandos e resultados com ações da sua empresa nas bolsas de valores de todo o mundo, abriu uma garrafa de champanhe e comemorou o nascimento como se fosse seu próprio filho. Veio o convite para o batismo, via correio. Quase foi, desistiu de última hora, porque iria inaugurar mais uma filial, desta vez em Manhattan.


Dois anos depois de Armandinho, veio Sandra. Novo convite, outra desistência. Michelline entendeu a reação do correspondente. As cartas continuaram por semanas, meses, anos e mais três décadas. A Internet estava consolidada, mas eles preferiam o papel, sem invasões de privacidade por hackers. Armandinho já era médico e Sandra, jornalista. O advogado sempre esperou por ela. Com 60 anos, Armando soube pela carta de Michelline que Ricardo tinha morrido de enfarte. Ele já estava consolado com sua situação.


Mais dois anos e Michelline se recuperou da dor. Lembrou-se do amor por Armando e arrependeu-se do tempo perdido. Em uma das cartas semanais, que se estendiam por 40 anos, ela marcou um encontro. Armando hesitou, mas acabou aceitando. O encontro seria na praça central, cujas marcas da velhice podiam ser sentidas no abandono e quantidade de menores sujos e largados.


Armando tinha um CD (ultrapassado por causa dos mini-discs), antigo e raro, do Van Halen, que ia dar para Michelline. Tinha a música “When it´s love”, um clássico. Na praça, eles caminharam passo a passo na direção do outro. Ficaram a 30 centímetros de distância. Não trocaram palavras, nem um simples abraço ou expressão de emoção. Os olhos se fixaram, cada par na figura do ser amado. O tempo parou. Um sorriso calado brotou de suas bocas velhas e enrugadas. Compreendiam a plenitude do que sentiam um pelo outro. Deram-se as costas e voltaram cada um para sua casa. Decidiram que o amor deles continuaria mais puro e real se continuasse daquela maneira, praticada por 32 anos. Armando enviou o presente pelo correio. E Michelline mandou um CD do Kiss como sinal de agradecimento, junto a uma carta cujo final era: “É melhor desse jeito. Eu te amo, escreva-me logo. Estou esperando.” E continuaram se amando, dessa forma peculiar, pois descobriram que, assim, seu amor nunca se acabaria, por permanecer imaculado e singular.

Nenhum comentário: