quinta-feira, 9 de julho de 2009

Quando ela veio

A cigarreira folheada a ouro é minha. Mas o objeto dourado está nas mãos do carcereiro boçal, sádico e burro, que tira um cigarro do maço e o bota na sua boca pútrida e amarelenta de nicotina. Meus olhos, já distantes e opacos, continuam num plano anterior ao presente. Daquela noite, continuo a sentir o desequilíbrio provocado pelos nossos pesos no palanque de palafitas improvisado. O bafo dos gritos da multidão acerca do meu nome é quente e me satisfaz. Minhas palavras carregadas de juventude e desejo de mudança se espalham pelo ambiente úmido e viscoso de um verão de janeiro, mais chuvoso que o normal, tal qual o sereno invade a penumbra campestre.


Passo a mão nos cabelos e, num tapa, puxo para trás a água misturada com suor, que me cai pela nuca. As tropas do governo vão chegar a qualquer momento. Fugir é o primeiro pensamento que me surge, mas resisto. A multidão clama o meu nome e o som se mistura aos raios que caem no fim do horizonte. Um mártir, é isso. O povo precisa de um mártir. Fico e falo com mais ardor porque eu quero ser um mártir. Eles me ouvem e alimentam o meu vício.
A liberdade de expressão, nossa bandeira, fica esquecida, enquanto penso somente em continuar a ser querido pelos meus ouvintes. Estou viciado pelos seus olhares esfaimados de esperanças. Por um momento, eu lhe proporciono esta ilusão. E eles alimentam o meu vício de ser ouvido. As bombas de gás caem e os gritos entusiasmados transformam-se em urros de medo. Permaneço no palanque, mesmo sem alguém ao meu lado. Os soldados atiram na aparelhagem de som, mas eu continuo a falar, aos berros. Devo persistir, mesmo com a certeza da derrota, afinal, sou um mártir.
Finalmente, um deles me cala, com um golpe do cabo do seu rifle de assalto na minha boca. Em seguida, me chuta os bagos e me faz desabar sem ar no meio do palanque. Sinto o tutano dos meus dentes quebrados, misturado com o sangue que escorre para o chão de madeira molhada.
Eles me cercam e me espancam em todos os lugares. Seus coturnos em fricção com o meu corpo raspam-me a pele. Tento gritar, sai somente um murmúrio. Desfaleço e os soldados continuam a me surrar.
Jogam meu corpo num veículo militar e rasgam minhas roupas. Pederastas desgraçados, brincam de me queimar com tocos de cigarro. Nem consigo esboçar a menor reação, tal o grau de debilidade. Já no cárcere, me dão água para beber. Bebo tudo. Eles riem como hienas coprófogas e me jogam na cela. Compreendo, num insight, o teor do líquido que acabei de sorver com um camelo. É água do mar.
Deito a cabeça no chão frio de cimento corrido e me recolho à posição fetal. A água salgada começa a surtir efeito nas minhas vísceras. Tenho muita sede, a maior da minha vida. Com a boca aberta, durmo e tento não pensar em coisa alguma. Os soldados percebem e me dão um esguicho de água fria. Os olhos abrem novamente. Estou nu, sem nada. Eles me tiraram tudo, incluindo eu mesmo.
Levam-ne novamente para a salinha cheia de sádicos e me fazem um monte de perguntas. Recuso-me a responder. Ainda tenho nos meus ouvidos o meu nome no clamor da multidão. Agora, sou um mártir, não dá mais para desistir. Um deles se diverte enfiando a lâmina do seu canivete novo, uma obra da cutelaria artesanal, embaixo das minhas unhas. Gargalhadas acompanham meus gritos. “Ninguém pode ouvi-lo, idiota”, diz um deles.
Mijam no meu corpo com uma inocência arteira de criança. Desenrolam o arame de um caderno universitário dão sorrisos marotos. Primeiro, envolvem meu pescoço e o apertam com força até meus pulmões quase explodirem e a minha língua ganhar um contorno arroxeado. Também fica um vergão perpendicular à jugular, que quase verte numa torrente de sangue.



Na nova brincadeira, cortam um pedaço do mesmo arame e me enfiam uretra adentro. Sinto o metal furar a minha bexiga. Escorre pelo chão, um misto de urina, porra e sangue. Um deles, num gesto de brilhantismo, conecta a ponta do arame aos cabos de um abajur. Com a tomada ligada sinto meu pênis queimar e a urina residual da bexiga, ferver. A corrente elétrica se espalha pelo resto do meu corpo e a taquicardia acelera a respiração. Eles param, têm medo de me matar. Com um canto do olho, vejo um deles gozar ao final de uma masturbação entusiasmada. Pederasta, maldito. “Deixem-no na cela para morrer”, comanda o torturador punheteiro.
Eles me deixam deitado de bruços no chão molhado do cubículo fétido de urina, fezes, sangue e esperma. Não reajo aos estímulos. Quero dormir, só isso, e beber água. A sede é muito forte, por isso abro a boca e lambo o chão da cela. O sono vem profundo e paciente, numa carícia envolvente e silenciosa. Com a névoa, ela aparece e se senta ao meu lado. Não diz coisa alguma, apenas me observa. Sua beleza me magnetiza e prende minha aura numa corrente energética reconfortante. O luar que atravessa as janelas da cela reflete os seus cabelos negros, compridos como uma relva selvagem, que tocam as costas cobertas de feridas. Olhos escuros, como a perdição. Lábios pequenos e vermelhos.
Sua graça não é vulgar, como a das mulheres de vida fácil que deixam transbordar seus dotes para fora de seus decotes. Mas a sua formosura é proporcional, numa nuance ao mesmo tempo delicada e agressiva. As vestes de seda branca, quase transparentes, deixam parcialmente visíveis os contornos dos seus seios, glúteos e sexo.
Sobe-me o desejo, misturado com o medo. Sem saber explicar como, apoio-me nos meus braços e me sento ao seu lado. Toco os seus cabelos, porém, com receio. Não sei como ela veio parar neste inferno. Tenho vergonha, mas persisto, porque fazia muito tempo que uma mulher como aquela não me dava a menor demonstração de afeto. Ela permanece calada e retribui o meu gesto.
Deve ser um espírito tentando me azucrinar. É isso. Estou morto e esta alma penada quer tirar proveito da minha penúria. A mulher pega minha mão e a posiciona nos seus cabelos. Acaricio os fios negros e, assim, sou cativado progressivamente. Sua voz, com palavras indefiníveis, transmite suavidade e ternura. As luzes se apagam e ela continua comigo.
Param os gritos e o silêncio só é perturbado pelos gemidos dos outros moribundos das celas adjacentes. Sinto paz e segurança quando ela toca seus lábios no meu lóbulo esquerdo. Aos poucos, o tom das suas carícias crescem de intensidade, com toques ligeiros que me arrepiam até o osso. Já calada, pousa os dedos nos meus lábios rasgados e desaparece junto com a névoa que a trouxe.
Os soldados me tiram da cela e me penduram num pau de arara. Dizem que é para eu aprender a ser mais obediente e patriota. A circulação nas minhas pernas desacelera consideravelmente e o sangue escorre para o meu crânio. As algemas friccionam os pulsos e tornozelos, rasgando a pele. Com um alicate, apertam os meus mamilos. Se eu gritar, acho que a minha cabeça explode. Mordo os dentes, até engolir uma obturação, que se desprega de um dos dentes molares.
As cãibras se espalham pelo corpo como agulhadas de metal em brasa. A garganta ressecada expulsa a língua para fora da boca, na esperança de captar um pouco de umidade. Viro a cabeça para um deles, que me diz: “Tá olhando o quê, filho da puta?” E chuta a minha nuca. Um estalo escorre pela sala e um calombo, acompanhado por uma circunferência arroxeada, surge imediatamente no local da pancada. Felizmente, ou infelizmente, não foi desta vez que ele me quebrou o pescoço. Uma moleza me chega arrebatadoramente e eu perco os sentidos.
Na cela novamente, desta vez, estirado de costas para o chão, recebo o seu primeiro beijo. É inexplicável o ósculo da misteriosa mulher, cuja paixão não se parece com nada que eu já tenha provado. Os lábios de vermelho sangue se esfregam na minha boca de carne esfolada. Meu corpo, mais quente, perde temperatura para o dela, mais frio. Pura entropia. Não tenho medo. É muito estranho, mas tudo o que ela faz me fascina. Os beijos dela tornam-me cada vez mais distante deste mundo. Só a presença dela alivia a dor. As outras coisas e pessoas ao meu redor perdem sua significação. Nada mais importa, só ela.
Ela vem e me cobre, deitando-se sobre mim. Suga o calor que irradia, em filetes escassos, do meu corpo. Confesso minha excitação irracional neste estado de penúria em que me apresento. Eu a amo. Amo de verdade, por isso permito que ela me beije e me sorva com uma avidez selvagem, intercalada por momentos de doçura.
Devagar, bem leve, ela me e me aloja dentro de si. A dor quase interrompe o processo. Em virtude disso, me toca o sexo brutalizado pelos torturadores e o regenera com um beijo. O frio dela enrijece ainda mais a minha masculinidade, ressuscitada pela sua graça.



A vida retorna a este semi-cadáver , marcada pelo retorno do fluir abrupto do sangue pelas veias e artérias. Transmito-lhe minha energia e me delicio com isso. Freneticamente, ela se movimenta. Demoníaca, uiva. Beija-me novamente em todos os meus pontos erógenos, ávida por satisfazer-se.
Joga suas nádegas fortes ao meu encontro. Elas me mastigam, como uma boca sem dentes. Vou explodir em êxtase em poucos segundos. Abruptamente, interrompe os movimentos. Diz que não estou pronto para o prazer maior e eterno e, como uma névoa, ela se dissipa no ar e me abandona.
Deitado no chão, com o olhar fixo no teto acinzentado de fungos, completamente inerte, permaneço consciente, embora de forma peculiar. Necessito dela e estou disposto a pagar o preço. Preciso sentir-me dentro dela. Quero ser absorvido e sentir o frio vencendo o meu calor. Por causa da imobilidade, o desespero desordena as idéias e a angústia queima lentamente as entranhas.
Neste dia, os soldados não fizeram experimentos comigo. Deixaram-me só no meu jazigo em vida. Um cigarro, quero um cigarro. Uma tragada de fumaça quase negra adentrando os pulmões e, por seqüência, os alvéolos, nos quais se realizam as trocas gasosas, que carregam os glóbulos vermelhos de monóxido de carbono e outras porcarias, como a nicotina, para todas as células do meu corpo. Anseio impossível de ser atendido nestas condições. Sou uma besta. Nem consigo me mexer. Se estivesse brincando de estátua, seria o vencedor, com certeza. Eles me fizeram muito mal. Estou detonado física e espiritualmente. Mas ainda estou vivo, lazarentos. Vivo - para ter a esperança de escarrar nas caras daqueles torturadores de merda.
Pela janelinha, o sol toma de assalto a cela. Justo no cantinho que está a minha cabeça. Olho fixamente para o astro-rei e sinto-lhe secar minhas lágrimas. Fecho os olhos e deixo o calor penetrar no meu corpo pelas minhas faces escoriadas. Os pés, lá no fundo, continuam frios. A energia me deixa com uma preguiça e eu durmo novamente.
Abro as pálpebras e já está escuro. Peço a sua companhia, porém, ela não me responde. Adormeço por frações de segundo. Ela me acorda com uma beijo frio, desta vez molhado. Ignoro as mensagens do meu corpo e a agarro, para a encobrir. Minha minha carência percorre com as mãos pelos seus seios duros e gelados. Repentinamente, ela se entrega, deixando-se levar pela minha vontade. A muito custo, sem dar atenção para os ferimentos no meu órgão, alojo-me dentro dela. Movimento-me freneticamente, como uma fera, mas não consigo atingir o grau de satisfação para o meu desejo.
Tenho noção de que a vida se esvai aos poucos da carne. Em contrapartida, ela fica cada vez mais brilhante e forte. O prazer clama pela raiva, num urro, pelo êxtase que desejo atingir. Ela geme. Sente prazer, eu acho. Gesticula com os braços, enquanto crava as unhas nas minhas costas. Somos dois animais selvagens em coito. Eu, o macho. Ela, a fêmea.
Uma carga eletromagnética nos une nos move. Sou o polo com menor potência, por isso apresento menos resistência à sua força gravitacional. Estou sendo sugado e me delicio com isso. Os cabelos dela me cobrem e vestem o nossos torsos nus. O suor nem escorre mais pela minha pele.
A excitação em nova aceleração aumenta exponencialmente ao meu sentimento de paz e harmonia. O esgotamento penetra nas minhas entranhas enquanto meus cílios colidem-se vagarosamente. A par do meu estado, ela troca de posição. Galga em mim e me encobre.
Dentro dela mais uma vez, sou comprimido severamente, libertando o meu gozo sofrido e resfolegado que contém as últimas sementes de vida, da minha vida, que ela, simplesmente, leva para aplacar a sua voracidade.
Fecho de vez os olhos e levanto-me da minha carcaça, com uma sensação indescritível de paz. Vejo o soldado assoprar o cano da pistola Magnum 45. Aos seus pés, vejo minha cabeça ensangüentada, com um rombo no meio da testa. Foi o tiro de misericórdia, uma eutanásia para justificar um homicídio. Os torturadores devem ter arranjado outra cobaia para seus experimentos de entretenimento. Entra brinquedinho novo na casa, o velho tem que ser descartado.
Ela continua ao meu lado e segura a minha mão. Com um fiapo de voz, sem crer muito no que presencio, pergunto-lhe finalmente o seu nome. Calada, toca-me a fronte desencarnada. Não precisa dizer mais coisa alguma porque estou livre, realmente livre, e, agora, compreendo a razão de tudo isso que passei.

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