Era um domingo, fim de tarde. Embora fosse verão, o ar estava úmido. O vapor d’água, natural na atmosfera, grudava na pele suada de calor. Era difícil respirar, principalmente para quem tinha problemas de rinite. O maldito nariz parecia estar trancado a todo o momento. Não havia lavagens ou remédios que dessem conta. A entrada de ar nos pulmões transformava-se em um trabalho forçado. Deixava de ser um ato involuntário para ser uma questão de vontade, de continuar a viver ou não. Era uma escolha, uma decisão.
Não parecia que ia chover, ou faltava muito ainda. Decidimos andar pelo centro, era horário especial de Natal, e as lojas iam estar abertas até o começo da noite. Um passeio de mãos dadas, em um dia cinza, era o ideal para terminar o nosso final de semana. Aguardávamos, no dia seguinte, uma segunda-feira, cheia de chefes, ônibus lotados e paciências estouradas.
- Não gostei do filme, achei muito parado. Odeio filme desse tipo. É coisa de francês. - disse Rita.
- Você está muito acostumada àquela banalidade dos filmes norte-americanos. Aquilo é para quem tem músculos no crânio, em vez de cérebro. - respondi.
- Lá vem essa conversa de novo. Eu lhe gosto muito mesmo, mas você é um saco quando fica desse jeito. Parece que está revoltado com o mundo. Credo !
Não respondi e continuamos a andar, lentamente, pelo calçadão. Não havia muito movimento, quem tinha algum dinheirinho guardado preferia ir aos shoppings. O centro da cidade era coisa de pobre, plebeu. Os enfeites de Natal enfeitavam o teto das lojas e do bulevar. Mas ainda havia luminosidade, por causa do horário de verão.
Entramos em uma loja de compact discs (CDs). - Posso ajudá-los - perguntou um vendedor. Dissemos que estávamos apenas olhando. - Qualquer coisa é só me chamar - insistiu. Concordamos com um sinal de cabeça e fomos direto às prateleiras. Eu queria saber se havia lançamentos de alguns guitarristas. Examinei e percebi que tinha praticamente todos. Queixei-me e comentei que nem tinha dinheiro para comprar um mísero exemplar.
- Não entendo nada desses caras. É muito chato, ninguém canta. Dá até vontade de dormir.
- Rita, isso é música de verdade. Se você entendesse alguma coisa de música, chamaria o Joe Satriani, o Steve Vai, o Edward Van Halen e o Yngwie Malmsteen de gênios. Eles não fazem aquelas coisinhas bobinhas que tocam em FM.
- Para mim, o que interessa é me divertir, Paulo. Gosto de ouvir aquilo que me dá vontade de cantar junto e dançar. Também gosto de rock. Você não o único entendido. Sabe muito bem que tenho a coleção completa do Pink Floyd.
- Tem de enfeite. Não sabe nada dos caras. Escuta mais o The Wall, porque todo mundo conhece, e deixa os conceituais de fora. Qual é o nome do guitarrista ? Aposto que nem sabe.
- Claro que sei, seu esnobe. É o David Gilmour, que tem o feeling de um guitarrista de blues, com aquelas pentatônicas, e a sofisticação de um progressivo, com todos aqueles pedais e racks de efeito. Satisfeito ?
- Ok, essa foi fácil - retruquei, com um sorriso e cara de sarro.
- Seu metido ! - rebateu, dando-me um empurrãozinho amoroso.
Aproveitei o embalo e a segurei entre os braços. Voltamos ao calçadão abraçados. Aqueles dois anos ao lado dela eram os mais felizes de minha vida. Nunca tinha me sentido daquele jeito, em paz e completo. Aqueles cabelos ondulados e compridos, escorridos pela face me deixavam doido. Queria acariciá-los a todo momento.
Sua face era lisa, sem espinhas ou cravos. Gostava de tocá-la, com a palma e as costas da mão e senti-la em toda sua suavidade. Quando agia assim, seus olhos se fechavam e remexiam-se em suas órbitas como se fosse um sonho. Seus olhos eram cinzas, como a cor do céu naquele dia. Um enigma. Era impossível tentar adivinhar quais universos se desenvolviam no imaginário dela. Sentia, mas nunca tive coragem de dizer que a amava.
Pegamos um sorvete cada um. O meu, crocante. O dela, pistache. Sentamo-nos em um banco da praça central. Dispensamos as colherinhas de madeira. Preferíamos devorá-los até a casca, antes que derretessem de vez. Provávamos um o sorvete do outro. Podia ser meio bobo, mas era divertido.
Terminamos a nossa guloseima e caminhamos em direção à casa dela, que não era muito longe dali. Escurecia aos poucos e o cinza se tornava preto. Ela estava esquisita e calada. Quando chegamos ao coreto, poucas quadras de sua residência, feriu-me como nunca alguém fez antes.
- Vou terminar com você. Não têm argumentos. Está definitivamente decidido.
- Por quê ? - indaguei desesperado, enquanto a visão escurecia e o mundo ficava desequilibrado e fora de foco.
- Ainda lhe amo, mas é melhor para nós dois. Você se apegou muito a mim. É melhor encerrarmos isso agora, ou vai sofrer mais.
- Você também vai sofrer, não vai ?
- Claro, seu bobo. Mas de forma diferente. Somos de mundos diferentes.
- Eu não me importo. Faço o que você quiser. Posso até entrar naquele bar lotado de bêbados e chamar todo mundo de boiola e ficar lá para apanhar. É só pedir.
- Sei que seria capaz de fazer isso. Mas não faça. Vou pedir uma única coisa, um último beijo.
Com lágrimas nos olhos, envolvi-a entre meus braços, como se me quisessem arrancá-la à força. E a beijei. Beijei profundamente, até sua alma. Soluços misturavam-se aos suspiros. Era a companheira perfeita, que me encontrava e me deixava só. Queria que aquilo durasse para sempre. Era o fim de um filme branco e preto. A cena final éramos nós, o casal, dentro do coreto, já em sombras, cujo cenário de fundo era o fim de um dia cinza.
Repentinamente, veio um choque, uma convulsão. Depois da escuridão, visualizei o teto branco e dei-me conta do cobertor malhado. Estava em minha cama. A mulher da minha vida nunca existiu, era uma fantasia. Era tudo tão real que doía de verdade. Chorei lágrimas que pareciam de sangue. Sem me importar com os outros habitantes da casa, gritei: “Rita, eu te amo!” Foi inútil e demasiado tarde. O sonho já tinha terminado.
* O conto “Passeio em um dia cinza” foi publicado originalmente no livro Anuário de Escritores 1999, da Litteris Editora.
Não parecia que ia chover, ou faltava muito ainda. Decidimos andar pelo centro, era horário especial de Natal, e as lojas iam estar abertas até o começo da noite. Um passeio de mãos dadas, em um dia cinza, era o ideal para terminar o nosso final de semana. Aguardávamos, no dia seguinte, uma segunda-feira, cheia de chefes, ônibus lotados e paciências estouradas.
- Não gostei do filme, achei muito parado. Odeio filme desse tipo. É coisa de francês. - disse Rita.
- Você está muito acostumada àquela banalidade dos filmes norte-americanos. Aquilo é para quem tem músculos no crânio, em vez de cérebro. - respondi.
- Lá vem essa conversa de novo. Eu lhe gosto muito mesmo, mas você é um saco quando fica desse jeito. Parece que está revoltado com o mundo. Credo !
Não respondi e continuamos a andar, lentamente, pelo calçadão. Não havia muito movimento, quem tinha algum dinheirinho guardado preferia ir aos shoppings. O centro da cidade era coisa de pobre, plebeu. Os enfeites de Natal enfeitavam o teto das lojas e do bulevar. Mas ainda havia luminosidade, por causa do horário de verão.
Entramos em uma loja de compact discs (CDs). - Posso ajudá-los - perguntou um vendedor. Dissemos que estávamos apenas olhando. - Qualquer coisa é só me chamar - insistiu. Concordamos com um sinal de cabeça e fomos direto às prateleiras. Eu queria saber se havia lançamentos de alguns guitarristas. Examinei e percebi que tinha praticamente todos. Queixei-me e comentei que nem tinha dinheiro para comprar um mísero exemplar.
- Não entendo nada desses caras. É muito chato, ninguém canta. Dá até vontade de dormir.
- Rita, isso é música de verdade. Se você entendesse alguma coisa de música, chamaria o Joe Satriani, o Steve Vai, o Edward Van Halen e o Yngwie Malmsteen de gênios. Eles não fazem aquelas coisinhas bobinhas que tocam em FM.
- Para mim, o que interessa é me divertir, Paulo. Gosto de ouvir aquilo que me dá vontade de cantar junto e dançar. Também gosto de rock. Você não o único entendido. Sabe muito bem que tenho a coleção completa do Pink Floyd.
- Tem de enfeite. Não sabe nada dos caras. Escuta mais o The Wall, porque todo mundo conhece, e deixa os conceituais de fora. Qual é o nome do guitarrista ? Aposto que nem sabe.
- Claro que sei, seu esnobe. É o David Gilmour, que tem o feeling de um guitarrista de blues, com aquelas pentatônicas, e a sofisticação de um progressivo, com todos aqueles pedais e racks de efeito. Satisfeito ?
- Ok, essa foi fácil - retruquei, com um sorriso e cara de sarro.
- Seu metido ! - rebateu, dando-me um empurrãozinho amoroso.
Aproveitei o embalo e a segurei entre os braços. Voltamos ao calçadão abraçados. Aqueles dois anos ao lado dela eram os mais felizes de minha vida. Nunca tinha me sentido daquele jeito, em paz e completo. Aqueles cabelos ondulados e compridos, escorridos pela face me deixavam doido. Queria acariciá-los a todo momento.
Sua face era lisa, sem espinhas ou cravos. Gostava de tocá-la, com a palma e as costas da mão e senti-la em toda sua suavidade. Quando agia assim, seus olhos se fechavam e remexiam-se em suas órbitas como se fosse um sonho. Seus olhos eram cinzas, como a cor do céu naquele dia. Um enigma. Era impossível tentar adivinhar quais universos se desenvolviam no imaginário dela. Sentia, mas nunca tive coragem de dizer que a amava.
Pegamos um sorvete cada um. O meu, crocante. O dela, pistache. Sentamo-nos em um banco da praça central. Dispensamos as colherinhas de madeira. Preferíamos devorá-los até a casca, antes que derretessem de vez. Provávamos um o sorvete do outro. Podia ser meio bobo, mas era divertido.
Terminamos a nossa guloseima e caminhamos em direção à casa dela, que não era muito longe dali. Escurecia aos poucos e o cinza se tornava preto. Ela estava esquisita e calada. Quando chegamos ao coreto, poucas quadras de sua residência, feriu-me como nunca alguém fez antes.
- Vou terminar com você. Não têm argumentos. Está definitivamente decidido.
- Por quê ? - indaguei desesperado, enquanto a visão escurecia e o mundo ficava desequilibrado e fora de foco.
- Ainda lhe amo, mas é melhor para nós dois. Você se apegou muito a mim. É melhor encerrarmos isso agora, ou vai sofrer mais.
- Você também vai sofrer, não vai ?
- Claro, seu bobo. Mas de forma diferente. Somos de mundos diferentes.
- Eu não me importo. Faço o que você quiser. Posso até entrar naquele bar lotado de bêbados e chamar todo mundo de boiola e ficar lá para apanhar. É só pedir.
- Sei que seria capaz de fazer isso. Mas não faça. Vou pedir uma única coisa, um último beijo.
Com lágrimas nos olhos, envolvi-a entre meus braços, como se me quisessem arrancá-la à força. E a beijei. Beijei profundamente, até sua alma. Soluços misturavam-se aos suspiros. Era a companheira perfeita, que me encontrava e me deixava só. Queria que aquilo durasse para sempre. Era o fim de um filme branco e preto. A cena final éramos nós, o casal, dentro do coreto, já em sombras, cujo cenário de fundo era o fim de um dia cinza.
Repentinamente, veio um choque, uma convulsão. Depois da escuridão, visualizei o teto branco e dei-me conta do cobertor malhado. Estava em minha cama. A mulher da minha vida nunca existiu, era uma fantasia. Era tudo tão real que doía de verdade. Chorei lágrimas que pareciam de sangue. Sem me importar com os outros habitantes da casa, gritei: “Rita, eu te amo!” Foi inútil e demasiado tarde. O sonho já tinha terminado.
* O conto “Passeio em um dia cinza” foi publicado originalmente no livro Anuário de Escritores 1999, da Litteris Editora.
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