Foto: Meu avô e eu, quando eu ainda era um ser humano. Depois a gente cresce e vira essa coisa que escreve esses bagulhos estranhos nesse blog. rs rs rs.
“Good bye my friends, I´m leaving you today. My quest is high and I must to find my way.” (Música Farewell, da banda Gamma Ray. Tradução: “Adeus meus amigos, estou lhes deixando hoje. Minha missão é grande e eu devo procurar meu destino.”)
As pessoas têm características únicas, indelegáveis e personalíssimas. Cada uma tem uma história, uma mensagem, uma missão nesta vida. Individualmente, carregam consigo uma melodia que lhes permite identificar seu temperamento, caráter ou demais qualidades. Tal como um ruído extravagante, às vezes, alguns nos causam arrepios e nos espantam, por assim dizer. Entretanto, podemos afirmar que se encontramos seres humanos que, somente pela sua presença, transmitem uma energia, uma sabedoria, como uma onda celestial, vibrando através de tudo, podemos dizer que, de certa maneira, fomos abençoados com uma graça muito superior a qualquer coisa que conhecemos. Esta música, que cada um tem em si, vaza pela matéria e permanece na memória dos que ficam, através de flashbacks e outros assuntos inesquecíveis. Algo assim ocorreu na minha vida. E esta é uma música de uma vida inteira que vou guardar comigo até o fim dos meus dias.
Ao som das ondas batendo contra os rochedos e da brisa varrendo as areias da praia, Schincho Ishigaki lê atônito um documento. Sua irmã lhe enviara uma carta, comunicando-lhe que ficara viúva, com dois filhos menores para cuidar. Num país recém-castigado pela guerra contra a Rússia, o jovem com seus 20 anos tomou uma decisão que iria mudar os destinos de muitos. Franzino e calado, mas muito decidido, despediu-se lentamente da sua terra natal, uma ilha homônima (ver Ishigaki Shima, no mapa abaixo) ao seu sobrenome, para adentrar na mais maravilhosa das aventuras que imaginara. Atitude, no mínimo, admirável.
Ao zarpar do navio, o belicoso Hino Nacional Japonês era entoado pela multidão que partia para a terra prometida, o Brasil. “Kimi ga yo wa...” Uma viagem longa, de quase um ano, atravessando o Oceano Pacífico, certamente não era para qualquer um. Mas estes intrépidos personagens reais enfrentaram isto e muito mais ao longo das suas existências. Canções folclóricas serviam para enfrentar os enjôos e a insalubridade dos navios. O shamisen (tipo de um banjo japonês) era freqüente nas rodas de amigos que se formavam durante a viagem.
Músicas peculiares a cada província dos aventureiros mostravam a diversidade cultural de um povo aparentemente homogêneo. Em semelhança aos navios negreiros, muitos não resistiam à viagem e tinham seus corpos jogados ao mar. A embarcação dava uma volta em redor do corpo e seguia novamente a viagem.
Yanawaraba - banda de Ishigaki Shima (Okinawa, Japão), formada por Ishigaki Yuu (sanshin e vocal) e Ayzato Riyo (violão e vocal)
No Porto de Santos, depois do apito do navio, escutavam o Hino Nacional Brasileiro, numa recepção que era um misto de alegria, mistério, desejo e receio, tudo ao mesmo tempo. Depois disto, partiam para o interior da Terra Brasilis. A saudade da terra natal e a esperança de para lá retornarem ricos eram presenciadas nas canções e cantigas, entoadas pelos grupos, nas roças, arados e outros serviços rurais.
O dinheiro nunca era o suficiente. Mas a vontade de ser alguém era enorme e o espírito guerreiro, também. O jovem Schincho encontrou a irmã, mais os filhos dela. Apesar da pouca diferença de idade com seus sobrinhos, fez as vezes de pai, tio e avô ao mesmo tempo. Com tudo encaminhado, encantou-se com a irmã de um amigo, chamado Takahide Daijó. A moça de gênio temperamental era Yoshiko Oshiro. O início da relação fora tempestuoso. Mas deixadas de lado as diferenças, suas músicas se encontraram em perfeita harmonia, originando um ser quase que uno, na imensidão de sons que amealhava-lhes a resistência.
Desta união, surgiram novos costumes e outros sonidos, um misto da bagagem oriental com o aprendizado adquirido no solo brasileiro: os filhos (Mário, Júlia, Marisa e Jorge). Mas até atingir a harmonia, existe o eterno conflito, o jogo de forças antagônicas e complementares. A melodia nipônica e a brasileira chocavam-se com estrondo, causando guerras internas – nos filhos – e no próprio casal, na condução da sinfonia das suas vidas.
Mas a mensagem das suas músicas era muito poderosa e envolvente. Mas precisava de gingado. Na fuga das plantações e no contato com os clientes, no comércio de produtos agrícolas, o casal adicionava ritmo à sua harmonia. Schincho, quieto e detalhista, comprava as mercadorias e administrava os negócios. Sua cônjuge, elétrica e falante, tinha o perfil de uma vendedora nata, de dar inveja uma ponta aos executivos mais afinados com as técnicas de venda.
E assim, conduziram a melodia das suas existências até chegarem ao adágio da aposentadoria. Forçados pelos filhos, venderam a banca no mercado municipal. Birrentos, como a maioria dos idosos nipônicos, cederam sem querer dar o braço a torcer. Mas perceberam que era hora de tocar em frente outra parte da sua sinfonia, os seus netos. Um deles, aliás, carrega seu nome (Francisco Schincho Moshin, o Chico, o baixista da banda Blackberry), numa homenagem que lhe levou aos prantos – uma das raras vezes na sua vida.
Um derrame cerebral dificultou as peripécias de Schincho, mas auxiliado pela filha Marisa, retomou a batuta e reconduziu sua vida. Sua companheira de vida, contudo, ainda não se adaptava ao novo andamento da música conjunta. Por isso, ouvia-se, às vezes, as interjeições do patriarca, fazendo com que sua esposa se encaixasse novamente no tempo.
Mas toda música tem um fim e um novo derrame lhe fez perder a condução da sua orquestra. Foram quase 20 dias de silêncio, no hospital, que lhe deram a condição de ouvinte da sinfonia que ajudara a criar. Esposa (Yoshiko), filhos (Mário, Júlia, Marisa, Jorge), genros (Moko e Jorge), noras (Marilene e Reiko) e netos (Roger, Lilian, Chico, Tato e Juliana) – no limite do permitido – entravam na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e sopravam-lhe mensagens de esperança no ouvido. Mesmo com toda a expectativa, às 13h15 de 27 de julho de 2001, o maestro passou a titularidade da orquestra para sua companheira e impôs a si mesmo um nível mais alto de composição, junto aos seus pais e ancestrais, num grau de abstração ininteligível para nossa finitude e pequenez.
Uma música tão bem elaborada e executada assim nunca será esquecida, até porque se incorpora como elemento fundamental das outras composições, ao longo das suas vidas. Este maestro, caros leitores, eu tive a honra de chamar de avô. Se escrevo estas linhas hoje, devo muito a ele, que sempre incentivou meus estudos, embora atentando-me sempre para não me desviar do caminho das virtudes e, principalmente, da humildade. Não sei se sou digno dos seus ensinamentos e se conseguirei mantê-los intactos. Espero que esteja regendo esta música, lá de cima, guiando-me nos meus passos à excelência. E quando este dia chegar, sei que estaremos juntos novamente.
Um comentário:
Caraca! Que história, hein?!
Essa é a diferência do "ser" e do "existir". Há pessoas que existem hoje e amanhã já não estão mais aqui; e há aquelas cuja vida trouxe tantos feitos que estarão vivas pra sempre... nas lembranças, nos atos inspirados por elas... essas pessoas sim podem dizer que viveram e que trouxeram vida ao mundo. Pois viveram além de sua própria vida, fizeram algo maior que elas mesmas. Foda demais.
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