segunda-feira, 29 de junho de 2009

A LEI DE EXECUÇÕES PENAIS E OS DIREITOS DO PRESO


I - INTRODUÇÃO

O encarceramento do indivíduo – a pena privativa de liberdade, para os técnicos do Direito – parece ser a solução da sociedade para controlar, punir e “recuperar” aqueles que transgridem as normas consolidadas no Direito Penal. Os presos, sejam provisórios ou condenados, são vistos por muitos como “coisas”, uma subespécie humana, cujos direitos fundamentais – que, em tese, deveriam ser inalienáveis, invioláveis e jamais submetidos a barganhas políticas, de qualquer tipo – podem ser disponibilizados, desprezados e ignorados por questões de ordem logístico-administrativa.

Este texto faz uma análise despretensiosa do relatório do Sistema Carcerário Brasileiro, elaborado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e pela Pastoral Carcerária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), associando-o com a falta de cumprimento do Estado dos artigos de 10 a 24, 40 e 41 da Lei de Execuções Penais,[i] principalmente. Delimitou-se o objeto de estudo ao Estado de São Paulo, portanto, só será utilizada esta parte do relatório.[ii]

De cara, o relatório aponta como problemas: “superlotação; presos não conhecem os benefícios que podem ter durante o cumprimento da pena; agressões, torturas e práticas congêneres por agentes do Estado e da impunidade dos acusados dessas práticas; tratamento médico ausente ou inadequado; falta de assistência jurídica”.

A Lei de Execuções Penais dispõe que o preso deve ficar confinado num espaço de 6 metros quadrados, com condições suficientes de salubridade. Porém, não é isso o que ocorre. É notória a superlotação nas unidades prisionais brasileiras, muitas vezes, o amontoado de gente faz com que haja revezamento para dormir, pois não haveria espaço se todos se deitassem. E isso, por si só, já violaria a dignidade do preso. Nesses casos, ele foi condenado à pena privativa de liberdade. E só. Tudo o que ultrapassasse isso já seria, em tese, abuso.

O Estado pretende ressocializar os presos. Pelo menos é o que se procura implementar conforme se vê no rol dos seus direitos dispostos no artigo 41 da LEP. Seria uma maneira de “domesticá-los” para sua reinserção no modo de produção capitalista (IGNATIEFF, 1978). Não é coincidência que o modelo ideal de unidade prisional seja semelhante ao de uma fábrica ou de uma faculdade. Moldar seus corpos e espíritos, como diria Michel Foucault (2002), para a engrenagem do sistema. Porém, essa assistência não ocorre assim como os direitos do preso ficam somente no papel. Isso tudo tem um motivo, conforme se explicará mais adiante.

Para exemplificar a situação, num caso concreto, foi usado citado o Centro de Detenção Provisória de Araraquara (SP), retratado por uma reportagem da Organização Não-Governamental “Repórter Brasil”. Preferiu-se um meio de comunicação novo com uma visão crítica da realidade, porém, não alinhado ao “stablishment” (como os tradicionais “O Estado de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo”) e, tampouco, com viés ideológico de “esquerda” (como a revista “Caros Amigos”).

No entremeio da análise proposta, haverá inserções de textos de pensadores como Cezar Roberto Bitencourt, Eugenio Raul Zaffaroni, Michel Foucault, Michael Ignatieff e Louk Hulsman, entre outros. Numa conclusão preliminar, verifica-se que muitas teorias apresentadas por esses autores são distantes da realidade brasileira, pois refletem a sociedade nas quais vivem, na Europa e Estados Unidos, principalmente. Contudo, não há de se descartar totalmente suas contribuições, já que muitas das suas observações são extremamente pertinentes. Talvez, a teoria mais próxima seja a de Zaffaroni, um jurista argentino, cujo cenário latino-americano é mais próximo às penúrias encontradas no Brasil.


II – VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE DOS PRESOS


2.1. Déficit de vagas no sistema prisional

São gritantes os números. De acordo com o relatório da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em parceria com a Pastoral Carcerária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), há 125.804 presos condenados no Estado de São Paulo para as 92.865 vagas distribuídas em 144 unidades prisionais.[iii] Com as rebeliões que destruíram, ou danificaram, 19 desses estabelecimentos, o déficit do número de vagas aumentou em 25 mil (BARBOSA, 2006). Antes do caos, faltavam 32.939 vagas nas prisões paulistas. Depois, o número saltou para 57.939.

A superlotação apontada, no mínimo, viola o que dispõe o artigo 5º, III e XLIX, da Constituição Federal, e o artigo 40 da LEP. Atenta contra a integridade física e moral do preso, que não pode ser submetido a tratamento desumano ou degradante. E mais. A LEP, em seu artigo 88, preceitua que “o condenado, no cumprimento de sua pena no regime fechado, será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório, devendo ser observados como requisitos básicos de cada unidade celular a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, além da área mínima de seis metros quadrados”. (MARCÃO, 2005, p. 93)

Passa-se agora à análise do exemplo do Centro de Detenção Provisória de Araraquara (SP). Até 11 de julho de 2006, mais de 1.400 presos estavam recolhidos numa área de 600 metros quadrados a céu aberto. De acordo com Bia Brasil (2006), “como as grades das celas estão quebradas, a solução para que os presos fossem mantidos encarcerados foi lacrar, através de solda, o único portão de acesso ao pátio, com uma chapa de aço”.

Os agentes prisionais não entram naquele espaço e deixaram a situação a cargo dos próprios presos, num mundo a parte, fechado entre quatro paredes. Cenário perfeito para a perpetração de uma ordem social – e até mesmo jurídica – paralela à do status quo. O raciocínio seria o seguinte: “Se o Estado não cumpre a legislação, por que, eu – o preso – deveria seguir? Então, toda a ordem jurídica não vale. A minha ordem jurídica paralela tem mais valor e eficácia.”

Tudo isso demonstra uma profunda falta de investimento em infra-estrutura. Sem a qual, não há como se implementar a assistência aos presos, muito menos pensar em recuperá-los. Obviamente, o Estado é uma estrutura deficitária, principalmente num País em desenvolvimento, como o Brasil. O populismo direciona o investimento estatal para a construção de mais unidades prisionais, não importando sequer determinar as causas da criminalidade ou mesmo a assistência ao preso.


2.2. Desencarceramento, populismo e preconceitos

Qual a solução? O desencarceramento? Abrir as portas das prisões somente com base em critérios econômicos para adequar o número de presos com o número de vagas seria irracional. Ignatieff (1978, p. 216) diz que o desencarceramento e a liberalização dos regimes institucionais só seriam realmente significantes se representassem mudança fundamental para reduzir as distâncias sociais entre os presos e a comunidade, de modo a reforçar os laços de tolerância social. Entretanto, se reconhece que as prisões devem ser destinadas mais para os presos com certo grau de periculosidade, condenados por crimes graves contra a vida e contra o patrimônio. Do total dos presos, então, deveriam permanecer encarcerados somente de 10 a 15%. (IGNATIEFF, 1978, p. 216)

Num dado momento, percebe-se que se submetem os presos a uma pena além da privativa de liberdade. O comum vê a prisão como um tipo de purgatório, onde os presos devem expiar seus pecados, a qualquer custo. Ao ser encarcerado, os presos têm sua alimentação provida pelo Estado.[iv] Algo que não ocorre com operário padrão que bate cartão todos os dias. Ouve-se sempre: “Bandido bom é bandido morto.” Ou ainda: “Preso tem que trabalhar para pagar o gasto com ele, inclusive alimentação.”

A pena de morte é vedada no Brasil, assim como a prisão perpétua e as penas de trabalhos forçados. A LEP prevê que a remuneração do trabalho dos presos serviria, entre outros propósitos, para pagar o gasto que o Estado tem com eles. Toda essa frustração contida faz a população pensar que a pena privativa de liberdade é pouco. Para a massa, os presos deveriam passar, no mínimo, pela penúria da superlotação e falta de assistência das unidades prisionais. Reforçam-se preconceitos, com ajuda dos shows “mundo cão” promovidos por uma mídia mais preocupada com os índices de audiência que com a veracidade dos fatos, com o intuito de mais polemizar do que racionalizar a discussão.

Parece voltar-se a uma época em que havia necessidade do suplício do corpo dos condenados, tal como se verifica na obra “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault (2002, p. 9-29). É preciso um bode expiatório para aliviar o anseio das massas por um espetáculo.

“O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. No ‘excesso’ dos suplícios, se investe toda a economia do poder.” (FOUCAULT, 2002, p. 32)


2.3. O mito da assistência

Essa economia do poder teorizada por Foucault visa não somente o corpo mas também a alma dos presos. Eles devem ser corrigidos para serem aceitos novamente na sociedade (art. 10, LEP), por meio da assistência material (arts. 11, I; 12; 13; e 41, VII, LEP),[v] à saúde (arts. 11, II; 14 e 41, VII, LEP) , jurídica (arts. 11, III; 15; 16 e 41, VII, LEP),[vi] educacional (arts. 11, IV; 17; 18; 19; 21; 41, VII, LEP), social (arts. 11, V; 22; 23; 41. VII, LEP) e religiosa (arts. 11, VI; 24; e 41, VII, LEP). Explica-se: “O objetivo da assistência, como está expresso, é prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. A assistência aos condenados e aos internados é exigência básica para se conceber a pena e a medida de segurança como processo de diálogo entre os destinatários e a sociedade.” (MARCÃO, 2005, p. 18)

Além de formatar o preso para o sistema capitalista, Foucault vê no sistema prisional uma máquina de conversão em indivíduos obedientes, ainda mais que os sujeitos comuns, os “cidadãos de bem”. Nessa economia do poder (FOUCAULT, 2002), o corpo dos presos deve ser mantido – intacto, se possível -, pois passa a um objeto de estudo a ser pesquisado, subjugado, modificado e melhorado, para fins de controle social (IGNATIEFF, 1978, p. 218), tendo como justificativa o desenvolvimento das ciências humanas principalmente, durante o final do século XIX.

Deixando as discussões sobre a funcionalidade do sistema à parte, o art. 14, caput, e § 2º, da LEP, o preso e o internado têm direito â assistência médica preventiva e curativa, abrangendo tratamento médico, farmacêutico e odontológico, devendo ser deslocados onde possam ser assistidos, com autorização da direção, caso o estabelecimento penal não esteja aparelhado para esses fins.

O relatório da Comissão de Direitos Humanos e Minorias aponta o tratamento médico ausente ou inadequado como um dos problemas identificados no sistema prisional paulista. No exemplo deste trabalho, evidencia-se uma aberração nas instalações do Centro de Detenção Provisória de Araraquara (SP): “Diante da impossibilidade de atendimento médico, o médico Hosmany Ramos, presos em Araraquara, foi quem cuidou dos 60 feridos depois que a tropa de choque entrou no pátio e disparou balas de borracha para conter um pretenso tumulto.” (BARBOSA, 2006)

A educação também tem fundamental papel de inserção social do indivíduo, seja livre ou preso. Com relação aos presos, a assistência educacional visa melhorar suas condições de readaptação social. Tem a função, segundo Marcão (2005, p. 22), de ajustá-lo ao retorno à vida social, levando-lhe ao conhecimento, ou ajustando, certos valores de interesses em comum, também como positivamente na disciplina dos estabelecimentos prisionais.

A assistência social tem como papel amparar o preso e o internado, preparando-o para seu retorno à sociedade. Durante o encarceramento, o preso tem seus laços de convivência podados, sendo destituído de responsabilidades perante os demais, exceto às concernentes ao seu cotidiano prisional. Carrega consigo dificuldades materiais e psicológicas, assim se faz necessária a sua adaptação paulatina à liberdade. “Assim compreendida, a assistência social visa proteger e orientar o preso e o internado, ajustando-os ao convívio no estabelecimento penal em que se encontram, e preparando-os para o retorno à vida livre, mediante orientação e contato com os diversos setores da complexa atividade humana.” (MARCÃO, 2005, p. 22-23)

Muitos visualizam a assistência religiosa como um dos pilares da recuperação do presos, tanto que o artigo 24 da LEP dispõe sobre a liberdade de culto, facultando-lhes, inclusive, participar de atividades religiosas. Não podem, no entanto, ser obrigados a tal, pois o art. 24, § 2º, da LEP, em consonância com o art. 5º, VI, da Constituição Federal, versa sobre a inviolabilidade de consciência e crença e o livre exercício religioso. Não raro, entidades religiosas – como as Pastorais Carcerárias, ligadas à Igreja Católica Apostólica Romana, e os missionários evangélicos – freqüentam os círculos carcerários para disseminar sua crença, angariar adeptos e, quem sabe, recuperar algumas almas no sentido bíblico.


2.3.1. A assistência e recuperação à luz de Foucault, Hulsman e de Celis

Pois bem. O rol de assistências que o Estado deve prover ao preso teria como função transformar a pena privativa de liberdade num mecanismo de punição e de humanização, seja da punição quanto do condenado. Foucault (2001) vê a pena privativa de liberdade como um meio de moldar e controlar o indivíduo, de modo a inseri-lo “domesticado” na sociedade. Uma forma de talhar as mentes, por meio de um esquema de disciplina rígido e semelhante às instituições militares, para convertê-lo numa pessoa submissa. Hulsman e Celis propõem (1999) a recuperação do delinqüente pela sua interação com a vítima. Mas isso sempre é possível? Posteriormente, tentar-se-á responder a essa questão.

A função de correção da pena age no corpo, no tempo – pela repetição de atividades e gestos cotidianos – e na alma, pela incorporação de hábitos. “O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o elemento que agora é proposto à intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo.” (FOUCAULT, 2006, p. 106)

A disciplina e a assistência à qual teriam direito os presos seriam sofisticados esquemas de coerção e de incorporação de um modo de viver para atender às expectativas de um sistema. A rotina, nesse processo, é a seguinte: “Exercícios, e não sinais: horários, distribuição do tempo, movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos.” (FOUCAULT, 2006, p. 106)

As assertivas descritas por Foucault parecem encontrar correspondente na LEP Brasileira, que, em tese, conteria um arcabouço normativo para a ressocialização e reinserção dos presos à sociedade capitalista brasileira. Novamente, Foucault (2006, p. 106): “E, finalmente, o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele.”

Seriam medidas, segundo Foucault, para garantir a ordem, quebrando o espírito dos sujeitos que pudessem desafiar o sistema vigente. Seriam realizadas por meio da intervenção do Estado, via implementação das assistências arroladas na LEP como direitos do preso. Contudo, verifica-se ser aberrante a situação do sistema prisional brasileiro. As idéias de Foucault analisam os contextos históricos do sistema prisional francês, no entanto, não se aplicam, muitas vezes, à realidade brasileira. O próprio Estado que deveria moldar o corpo e o espírito dos presos não cumpre essa tarefa. Nos termos do relatório da Comissão de Direitos Humanos (2006), o Estado é deficiente em prover as assistências elencadas, daí, propõe, entre outras iniciativas:

“ - Criar as condições necessárias ao cumprimento da Lei de Execução Penal, no que tange à classificação de presos para a individualização da pena, com a contratação e a capacitação de profissionais para elaborar e acompanhar programas de reintegração de presos, em parceria com entidades não-governamentais (p.31);
- Facilitar o acesso dos presos à educação, ao esporte e à cultura, fortalecendo projetos como Educação Básica, Educação pela Informática, Telecurso 2000, Teatro nas Prisões e Oficinas culturais, privilegiando parcerias não governamentais e universidades (p. 32);
- Promover programas de capacitação técnico-profissionalizante para os presos, possibilitando sua reinserção profissional nas áreas urbanas e rurais, privilegiando parcerias com organizações não governamentais e universidades (p. 32);
- Elaborar e implementar programa de atenção aos egressos e aos familiares de presos, privilegiando ações na área de saúde, inclusive saúde mental, assistências jurídica, social e material, educação, trabalho, documentação, nos termos da Lei de Execução Penal, considerando também os aspectos étnico-raciais, culturais e de gênero (p. 32);
- Implementar e aperfeiçoar o atendimento à saúde no sistema penitenciário e nas unidades da Secretaria da Segurança Pública, garantindo a realização e aplicação dos convênios entre os governos federal, estadual e municipal, para garantir assistência médica e hospitalar aos pacientes presos (p. 32)”

É evidente a violação da dignidade humana. Entretanto, é ainda mais evidente a falta de aplicabilidade de grande parte do pensamento de Foucault, salvo melhor juízo, na formulação de teorias e políticas para o sistema prisional brasileiro.

Hulsman, em sua crítica ao sistema penal, prega alternativa despenalizadoras, não raro, de caráter não-jurídico. Em sua obra escrita em conjunto com Jacqueline Bernat de Celis, Hulsman (1999, p. 165-174) discorre sobre uma experiência pessoal. Jovens furtaram a residência do teórico holandês por três vezes seguidas. Hulsman pediu à polícia que desse a oportunidade de conversar com os infratores, dois adolescentes de 16 anos, e outro de 17 anos. Ele fez contato com cada uma das famílias dos infratores, ao ponto de se engajarem numa forma de “amizade”. Os pais dos adolescentes reuniam-se freqüentemente na residência do pesquisador, formando um círculo de convivência.

Na ótica do holandês, os encontros foram providenciais no sentido de fazer os pais conversarem com os filhos a respeito do ocorrido. Até então, a tendência era os pais dizerem que a responsabilidade não era dos seus filhos, mas de outros (HULSMAN & DE CELIS, 1999, p. 169). Uma negativa típica, inclusive, no Brasil. A despersonalização do indivíduo e das outras esferas da sociedade promove um estado de “alienação”, de uma responsabilidade inexistente no acompanhamento da vida e condições bio-psico-sociais dos filhos por parte dos pais. Seria uma operação do sistema para desagregar a estrutura familiar:

“Neste momento importante, estava claro que o sistema de referência da justiça criminal estava certamente segmentando artificialmente a situação de todas as formas possíveis. Estava cortando os laços entre pessoas que viviam juntas, e, de certa forma, tornando a situação irreal num nível social. Para os pais era um grande drama, e eles falavam sobre isso o tempo todo, mas não tinham uma imagem clara ou completa do que tinha acontecido. Eles possuíam fragmentos da informação, dados pela polícia e por seus filhos, mas, ao final, não possuíam uma imagem coerente dos fatos.” (HULSMAN & DE CELIS, 1999, p. 169)

Pois bem. A experiência de Hulsman foi realizada na Holanda, onde a realidade sócio-econômico-cultural é outra, diferente da do Brasil. A sociedade, em sua maior parte, não teria agido como o holandês. Dificilmente, alguma vítima teria disposição para assumir uma posição altruísta como a mostrada. No caso holandês, foi possível o contato com os familiares dos infratores. No Brasil, dificilmente o seria possível, já que, em regra, as famílias dos infratores são desestruturadas. Dificilmente, haveria possibilidade de um pensador do Direito Penal sentar-se à mesma mesa com os pais ou responsáveis pelos infratores, de modo a lhes mostrar uma alternativa, uma tentativa de resolver os problemas, “recuperá-los”, enfim, para não caírem nas garras do sistema penal. Muitos dos infratores vivem em famílias sustentadas só pelas mães, não tendo mais o arrimo dos seus pais, que, não raro, não mais faz parte do seu círculo de convivência.


III – PENAS PERDIDAS: A FALSIDADE DO DISCURSO JURÍDICO-PENAL





Superadas as argumentações anteriores, apresenta-se agora as idéias de Eugenio Raul Zaffaroni. Para o jurista argentino, o Direito Penal alicerçador de todo um sistema de repressão, nada mais é do que o reflexo dos anseios de manutenção de uma ordem, sem que haja necessidade de uma racionalidade que o legitime. Há uma distância entre a legalidade e a legitimidade, ou seja, atualmente, ignoram-se os fundamentos da legalidade, relegando a legitimidade como algo meramente subjacente, ou mesmo sinônimo de legalidade.

Assim, ao considerar a justiça somente como legalidade e alicerçar o discurso jurídico-penal, como uma justiça retributiva positivada na legalidade, há uma discrepância muito grande entre o que a lei prescreve e a realidade na qual é aplicada, seja de modo correto ou, o mais freqüente, erroneamente.

Zaffaroni (2001) constata uma situação crítica no sistema penal, em especial, como a perda da segurança no mesmo como instrumento de controle e de ordenamento social. Esta crise não é confrontada, o que deixa margem para a continuidade de uma série de abusos e de aplicação irracional das penas. O discurso jurídico-penal, para Zaffaroni, de tão abstrato e generalizante, está em total desacordo com o que se apresenta no mundo dos fatos e, por isso mesmo, desmorona: “A dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento valendo-se de seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade.” (ZAFFARONI, 2001, p. 12)

O monopólio estatal da força corrompido pelo desvio das finalidades legais pelos próprios agentes do sistema tem causado “dores sem sentido”. O sistema penal dos países latino-americanos, revela Zaffaroni, provoca mais mortes que os homicídios dolosos ocorridos entre os comuns. O atual discurso jurídico-penal não consegue conter ou prevenir abortos ou mortes no trânsito, mostrando-se como falso, que se mantém somente pela fé mantida nele pelas pessoas ou pelo autoritarismo imanente, cuja simplificação extrema levaria de uma mentira para outra (ZAFFARONI, 2001, p. 13)

Nessa linha de raciocínio, poder-se-ia dizer que a LEP é uma mentira. É um mundo a parte, na qual a operacionalidade seria somente virtualmente possível, mas não realizável. A idealização abstrata da norma jurídica está longe de ser concretamente viabilizada nos sistemas penais “(...) a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal”. (ZAFFARONI, 2001, p. 15) Existe uma contradição estrutural entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do mesmo. O primeiro poderia até mesmo ser considerado utópico, tanto que acentua o caráter de falsidade do penalismo na América Latina.


3.1. Legalidade, legitimidade e coerência

Zaffaroni (2001, p. 16) entende que a legitimidade do sistema penal seria uma característica outorgada pela sua racionalidade, em vez justificar-se somente na legitimidade como legalidade. Salienta-se que o racional deve ser coerente e verdadeiro. Assim, a racionalidade do discurso jurídico-penal deveria atender a uma coerência interna e possuir valoração de verdade com relação à nova operatividade social.

O discurso jurídico-penal possui coerência interna, enquanto ordenamento, com princípios que não podem ser contraditórios, mas complementares, porém, não leva em conta, muitas vezes, o fator social, a realidade tal como ela se apresenta. Também carece de maior encadeamento lógico (não-contradição) dos seus enunciados, o que contraria até mesmo a idéia de ordenamento jurídico.

A racionalidade do discurso jurídico-penal é apenas parcial, se baseado somente na sua coerência interna. Ao descrever, dogmaticamente, o texto legal no plano do “dever ser”, descreve-se algo que ainda não é ou que deveria ser. Dá-se o peso de verdade legal a algo que, porventura, pode, ou não, ser verificado ontologicamente. Portanto, para que o discurso jurídico-penal seja verdadeiro, Zaffaroni salienta a necessidade de atender a dois níveis de verdade social:

“a-) um abstrato, valorizado em função da experiência social, de acordo com o qual a planificação criminalizante pode ser considerada como um meio adequado para a obtenção dos fins propostos (não seria socialmente verdadeiro um discurso jurídico-penal que pretendesse justificar a tipificação da fabricação de caramelos entre delitos contra a vida;
b-) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram o sistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal quando os órgãos policiais, judiciais, do Ministério Público, os meios massivos de comunicação social, etc, contemplam passivamente o homicídio de milhares de pessoas.” (ZAFFARONI, 2001, p. 18-19)

Portanto, ao se considerar simultaneamente os planos abstrato e concreto, não há como haver um desentendimento entre o “ser” e o “dever ser”. O discurso jurídico-penal não ficaria restrito ao “dever ser”, que muitas vezes não pode ser verificado no mundo dos fatos. Se ele prescreve um “dever ser” que não pode existir, que jamais será, constrói uma armadilha. Além de falso, também é perverso.

Então, Zaffaroni afirma que a legitimidade não pode ser suprimida pela mera legalidade, pois isso contribui deveras, ao não se procurar uma legitimidade além da norma fundamental, para que o abismo entre o discurso e a realidade continue. O primeiro continuará alienado com relação à sociedade. “No mundo atual – e especialmente em nossa região marginal -, a insuficiência legitimadora da legalidade formal é bastante clara, a ponto de não existir no âmbito dos discursos jurídico-penais nenhuma tentativa séria de legitimar o sistema penal mediante uma construção que exclua tudo o que não seja mera completitude lógica.” (ZAFFARONI, 2001, p. 20)

O que se dizer, então, quando o próprio sistema legal não atual segundo o princípio da legalidade? Isso vem a comprovar ainda mais a divergência entre o discurso jurídico-penal e a realidade. Ou mais: demonstra que o sistema posto em prática pode repudiar a legalidade que deveria defender. O próprio sistema penal foge do princípio da legalidade penal e do princípio da legalidade processual.


3.2. Quando a Lei renuncia a legalidade

Porém, segundo Zaffaroni (2001, p. 22), a própria Lei renuncia a legalidade. Outro fato salientado é que as excludentes de ilicitude ou inimputabilidades jogam menores, insanos e anciãos à mercê de instituições que podem ser piores do que se ficassem encarcerados numa unidade prisional.

De acordo com Zaffaroni (2001, p. 23-24), esta renúncia à legalidade penal faz com que o sistema penal pratique um tipo de controle social militarizado e verticalizado. A espontaneidade da sociedade é submetida a uma vigilância interiorizada da autoridade, pois o poder repressivo interioriza, inclusive nos seus agentes, a disciplina militarizada, muitas vezes inadequada para a vida civil. As estruturas de poder e a sua concentração mostram porque a legalidade não é obedecida nem no sistema penal formal: “(...) o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva, dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis.” (ZAFFARONI, 2001, p. 27)

É clara e notória a violação dos direitos fundamentais, contrariando, inclusive, o que dispõe a Constituição. Por exemplo, o processo penal tem uma duração em Lei, mas, na sua operação, demora muito mais para o seu desfecho. A quantificação das penas é outra medida que fica sujeita às discricionariedades do juiz, que à “legalidade das penas”. O autor apenas atesta que há “na operacionalidade social dos sistemas dos sistemas penais latino-americanos um violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade”. (ZAFFARONI, 2001, p. 28)

A falta de assistência jurídica aos presos, conforme o relatório da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, é um desrespeito ao princípio constitucional da ampla defesa. “A assistência jurídica, muitas vezes não é observada, é de fundamental importância para os destinos da execução da pena. Aliás, sua ausência no processo de execução acarreta flagrante violação do princípio da ampla defesa, que também deve ser observado em sede de execução.” (MARCÃO, 2005, p. 21)


3.3. Crítica do Direito Positivo

A crítica de Zaffaroni ao discurso jurídico-penal não deve ser levada somente como uma forma de avaliar a racionalidade e coerência do Direito Penal. Deve ser considerada como uma crítica ao Direito Positivo, em todas suas ramificações, pois constata que por detrás de um discurso falso pode haver efeitos reais, irreversíveis, em várias ocasiões. O discurso jurídico-penal é uma farsa em si mesmo, já que a teoria não possui poder suficiente para vencer uma estrutura internalizada, com propósitos até mesmo distintos e incompatíveis daqueles propósitos que deveria, por Lei, seguir ou proteger, como se explana:

“a-) não se pode afirmar que o monopólio da violência pertença ao Estado, sendo mais adequado afirmar que seus órgãos pretendem ao monopólio do delito;
b-) admite-se expressamente que a legalidade é uma ficção;
c-) o sistema penal converte-se em uma espécie de ‘guerra suja’ do momento da política, na qual o fim justifica os meios;
d-) em razão da seletividade letal do sistema penal e da conseqüente impunidade das pessoas que não lhe são vulneráveis, deve admitir-se que seu exercício de poder dirige-se à contenção de grupos bem determinados e não à ‘repressão do delito’”. (ZAFFARONI, 2001, p. 28)

Mesmo com todas “desilusões”, Zaffaroni diz que é melhor com o sistema penal que sem o sistema penal. Deve haver, contudo, maior compatibilidade entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema penal.


3.4. Sistema penal como mantenedor da desigualdade


Cezar Roberto Bitencourt (2006, p. 146), assim como Ignatieff, diz que houve forte influência da estrutura sócio-econômica na reforma do sistema penal que consagrou a pena privativa de liberdade. Simbolicamente, representaria a dominação da burguesia sobre o proletariado, o que demonstraria, por si só, que é "um mito pretender ressocializar o delinqüente por meio da pena privativa de liberdade”. (BITENCOURT, 2006, p. 146) Afirmar que a prisão seria um ato humanitário para reformar, para melhor, o delinqüente, é, para Bitencourt, uma visão ingênua ou muito simplista.

“Esse fato não retira importância dos propósitos reformistas que sempre foram atribuídos à prisão, mas sem dúvida deve ser levado em consideração, já que existem muitos condicionamentos, vinculados à estrutura sociopolítica, que tornam muito difícil, para não dizer impossível, a transformação do delinqüente.” (BITENCOURT, 2006, p. 146)

Também observa Bitencourt (2006, p. 147) que, de acordo com a criminologia crítica, não é possível conseguir a ressocialização do preso numa sociedade capitalista. A prisão teria surgido como uma necessidade do sistema capitalista, como instrumento de controle e de sua manutenção. O cárcere não visa a ressocialização, mas assegurar a desigualdade social, já que submete as classes mais baixas a um processo de marginalização, tal como se verifica no sistema escolar, por meio da discriminação.

Depois da sua identificação e etiquetação como delinqüente, dificilmente haverá ressocialização do mesmo. Dentro do sistema penal, os mais socialmente frágeis e marginalizados são desintegrados e recompostos pela “escola”. Ergue-se um muro entre os delinqüentes e a sociedade que impede a solidariedade inter-grupos ou intra-grupos.[vii]

“O sistema penal conduz à marginalização do delinqüente. Os efeitos diretos e indiretos da condenação produzem, em geral, a sua marginalização, e essa marginalização se aprofunda ainda mais durante a execução da pena. Nessas condições é utópico pretender ressocializar o delinqüente; é impossível pretender a reincorporação do interno à sociedade por intermédio da pena privativa de liberdade, quando, de fato, existe uma relação de exclusão entre a prisão e a sociedade. Os objetivos que orientam o sistema capitalista (especialmente a acumulação de riqueza) exigem a manutenção de um setor marginalizado da sociedade, tal como ocorre com a delinqüência. Assim, pode-se afirmar que a lógica do capitalismo é incompatível com o objetivo ressocializador. Sem a transformação da sociedade capitalista, não há como encarar o problema da reabilitação do delinqüente.” (BITENCOURT, 2006, p. 147-148)

Diante das razões explicitadas, passa-se a questionar a validade e a eficácia da pena privativa de liberdade e, mais a fundo, o próprio sistema penal, como se verifica, a seguir, na conclusão deste trabalho.



IV - CONCLUSÃO

O descompasso entre o que diz a Lei de Execuções Penais e a realidade é aterradora. Buscam-se soluções de diversos tipos, sejam legislativas ou mesmo teóricas, porém, muitas delas não são condizentes com a realidade brasileira. As análises já consagradas de Michel Foucault, no livro “Vigiar e Punir”, de Louk Hulsman e Jacqueline B. de Celis, co-autores de “As Penas Perdidas”, são excelentes, porém, voltadas para a realidade dos seus países, França e Holanda, respectivamente. Assim, há de se tomar cuidado com a importação de teorias estrangeiras no sistema penal brasileiro. Antes, há de se levar em consideração a devida adaptação, a partir de estudos e constatações do que se apresenta no Brasil, antes de se implantar modelos estrangeiros.

Os direitos dos presos freqüentemente ficam somente no papel, o espírito da Lei é ignorado por questões que parecem ser de conveniência político-eleitoral. Afinal, defender os direitos do preso não dá votos. Por outro lado, a recuperação e ressocialização do preso parecem ser um mito. De um lado, se numa interpretação de Foucault e Ignatieff, o sistema prisional deveria – por meio da prestação de assistências, dos diversos tipos – moldar e disciplinar os corpos e as almas dos presos para o sistema capitalista. Do outro, como observa Cezar Roberto Bitencourt, a função do sistema prisional é manter a desigualdade social, já que a recuperação do preso é incompatível com o sistema capitalista.

A possibilidade de cada um colocar-se no lugar do outro, por meio da convivência, como propõe Hulsman, é remota. A lógica do sistema pressupõe a fragmentação e o isolamento dos grupos envolvidos. A insensibilidade chega a tal ponto que se constatam problemas gravíssimos nas prisões, como a superlotação e a falta de assistência de todos os tipos. A ressocialização do peso, nesses termos, é um mito, assim como o discurso falacioso de que a prisão é o remédio de todos os males.

Se a sociedade realmente se preocupasse com a ressocialização dos presos, a situação do sistema prisional brasileiro não estaria num estado de penúria, nem haveria aberrações como o caso do Centro de Detenção Provisória de Araraquara (SP). Diante do cenário de desigualdade social e extrema competitividade, a lógica do sistema é fomentar a desigualdade e o isolamento de certo grupo de pessoas. Assim, menos pessoas para competir com as outras no mercado de trabalho. É preciso separar os “de bem” dos “criminosos”, etiquetá-los e expô-los numa vitrine.

Dessa forma, promove-se o espetáculo, uma atração para as massas, sem que se procure a cerne dos problemas para a solução dos problemas encontrados. No mais, o que se pode concluir, preliminarmente, é concordar com Zaffaroni na afirmação de que o discurso jurídico-penal é falso e se desmancha ao menor toque com a realidade. Cabe, portanto, uma discussão mais acirrada e compatibilizada com a realidade do País, para a elaboração e implementação de arcabouços legislativos e políticas penitenciárias condizentes com o que se apresenta e com o que é possível fazer. Caso contrário, os direitos do presos ficarão novamente só no texto da Lei e se continuará a desrespeitar o princípio da dignidade humana.[viii]


V - BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Bia. Situação dos presídios de São Paulo é de barbárie. Repórter Brasil, São Paulo, 11 jul 2006. Disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/imprimir.php?id=659&escravo=0. Acesso em 9 de agosto de 2006. 23h20’.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral – 1. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório Situação do Sistema Prisional Brasileiro – Síntese de Videoconferência Nacional Realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em parceria com a Pastoral Carcerária – CNBB. Brasília, 2006. 34 f.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 25. ed. Tradução de Rachel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002.
HULSMAN, Louk & DE CELIS, Jacqueline Bernat. Penas Perdidas: O Sistema Penal em Questão. 2. ed. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: LUAM, 1999.
IGNATIEFF, Michael. A Just Measure of Pain: the penitentiary in the industrial revolution 1750-1850. Nova Iorque: Columbia University Press, 1978.
KUEHNE, Maurício. Lei de Execução Penal Anotada. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2005.
MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
ZAFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Tradução de Vânia Romano Pedrosa. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

[i] As menções à Lei de Execuções Penais, neste trabalho, serão feitas por meio da abreviação LEP.
[ii] Mesmo sendo os dados estatísticos referentes ao Estado de São Paulo menos completos que outros Estados, como a Bahia, preferiu-se aquele, por questões de ordem logística e maior facilidade de material de pesquisa.
[iii] Pertinente é a observação de Hulsman e de Celis (1999, p. 144) a respeito do crescimento do número de presos: “No discurso oficial o aumento das atividades da justiça criminal e da população carcerária está geralmente apresentado como uma resposta para o crescimento do crime (qualitativa e quantitativamente). Este argumento não é convincente.” Para esses autores holandeses, os fatos podem ser criminalizados a bel prazer das autoridades governamentais, que definem o que deve ser crime segundo o “clima político-ideológico predominante em um dado país e o resultado de grupos de pressão”.
[iv] A assistência material – ou seja o fornecimento do Estado para o preso e ao internado de alimentação, vestuário e instalações higiênicas – nem sempre é adequada. Marcão (2005, p. 19) expõe: “Como é cediço, no particular o Estado só cumpre o que não pode evitar. Proporciona a alimentação ao preso e ao internado, nem sempre adequada. Os demais direitos assegurados e que envolvem assistência material, como regra, não são respeitados.” Mesmo diante dessa precariedade, grande parte da população brasileira tem assistência material inferior à dos presos, o que gera, com alguma razão, um sentimento de revolta. Tratar-se-á sobre o não cumprimento da Lei pelo Estado mais a frente.
[v] Sobre a assistência material, ver o tópico anterior.
[vi] Considerações acerca da assistência jurídica serão vistas posteriormente, quando se passará a discorrer sobre a falta de cumprimento da Lei pelo próprio Estado.
[vii] A solidariedade entre os grupos – delinqüentes e vítimas – foi proposta por Hulsman como uma das medidas abolicionistas, para recuperar e ressocializar os infratores junto às vítimas, como foi visto neste texto. Contudo, muitas vezes, essa sugestão é extremamente utópica, inaplicável principalmente no contexto da sociedade brasileira.
[viii] Nem mesmo um habeas corpus seria considerado o meio adequado para evitar a violação dos direitos do preso. Interessante o comentário de KUEHNE (2005, p. 233) a respeito do descompasso entre o “ser” e o “dever ser” da realidade carcerária e das Leis: “Em 03.06.1993, o TJPR, nos autos de Habeas Corpus 27.628-2 – Rel. o Des. Martins Ricci, decidiu que: ‘... Não se oferece a ação de habeas corpus à solução e más condições carcerárias, já que é a ação constitucional voltada para garantia da liberdade de locomoção, pressuposto ausente no caso dos presos. Ordem denegada.’ O Acórdão reconhece as mazelas e deficiências do sistema penitenciário, contudo, as carências de que se ressentem as unidades prisionais não podem ser objeto do remédio heróico, para a soltura dos presos. Houve interposição de recurso, decidindo o STJ no RHC 2.913-7/PR – Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro (DJU de 28.02.1994) nos seguintes termos: “(...) O sistema penitenciário, no campo da experiência, é certo, não traduz com fidelidade a expressão normativa. Não só no Brasil. Também em outros países. A Lei encerra dois propósitos: a) programático; b) pragmático. O primeiro encerra princípios que buscam realização. O segundo disciplina as relações jurídicas no âmbito fático. A LEP programou o estilo de execução. O País, entretanto, ainda não conseguiu esse desideratum. Há descompasso entre o ‘dever ser’ e o ‘ser’. As razões do desencontro (acontece também com outras leis) afastam a ilegalidade de modo a determinar a soltura dos internos dos presídios.’ De igual sorte as deficiências estruturais são salientadas, mas o recurso não foi provido ante o fato de que a liberação seria absurda e determinações que se pudessem efetivar para atender os reclamos dos presos não seriam possíveis.”

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