1 - INTRODUÇÃO
Quais os limites que separam a necessidade do segredo do interesse público calcado no princípio da publicidade? O direito à intimidade e à privacidade do indivíduo perante às bisbilhotices de quem quer que seja foi longamente explorado na sensacional obra “O direito de estar só: a tutela penal do direito à intimidade”, do professor doutor Paulo José da Costa Júnior. Mas a intimidade e a privacidade da pessoa privada, seja física ou jurídica, é uma coisa. No entanto, é uma coisa muito diferente quando se fala em Administração Pública.
Contudo, apesar da preponderância do princípio da publicidade, existem informações da Administração Pública que devem ser preservadas, sob alcunha de sigilosas. Existem, porém, questionamentos sobre o que seria e o que não seria sigiloso. Há uma tênue linha entre o que deve ser classificado como sigiloso e o que deve ser visto como público, em sua plenitude.
Pois bem. Tentar-se-á desenvolver, neste pequeno ensaio, algumas explicações sobre o crime de “violação de sigilo funcional”[i] – arrolado na legislação brasileira, como um dos crimes contra a Administração Pública. Estas linhas são mais um ensaio que um artigo científico propriamente dizendo.
2- DA VIOLAÇÃO DOS SEGREDOS
Genericamente falando, se assim se pode dizer, trata-se de um crime contra a violação dos segredos, contudo, que se especializa com relação aos crimes contra a inviolabilidade dos segredos, investidos nos artigos 134 e 135 do Código Penal Brasileiro.[ii] A tendência brasileira, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr. (2006, p. 154), segue os Códigos Penais mais importantes da contemporaneidade, como o italiano (art. 326), o suíço (art. 320) e o alemão (§ 353-b).
Por ser uma espécie de crime contra a violação dos segredos, a “violação de sigilo funcional” pode ser subsidiária, suplementar ou supletiva, “enquanto a pena prevista não se aplica se o fato constituir fato mais grave”. Quer dizer, “a sanção prevista para o crime mais grave mostra-se suficiente para punir também este crime”. (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 154) Há, então, para Pagliaro e Costa Júnior, consunção.[iii] Os exemplos abaixo podem aclarar a situação:
“Desse modo, se se tratar de espionagem ou de revelação de segredo que ofenda a segurança nacional, o agente incorrerá nas sanções da Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (arts. 13, 14 e 21). Se o segredo for de natureza militar, dará lugar ao delito previsto no art. 326 daquele estatuto. Tratando-se de violação de segredo epistolar praticada com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico, o crime será o do § 3º do art. 151 do Código Penal. A transmissão de informações sigilosas referentes a energia nuclear é punida pela Lei n. 6.453, de 1977 (art. 23)” (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 154-155)
3 – ENTRE A PUBLICIDADE E O SIGILO
Por que o sigilo de atos da Administração Pública, se a regra é a preponderância do princípio constitucional da publicidade, explícito no artigo 37, “caput”, da Constituição Federal de 1988?[iv] Procura-se manter o bom andamento e funcionamento da administração pública. De acordo com Nucci (2006, p. 1004), o objeto material é a informação sigilosa, enquanto o objeto jurídico são os interesses material e moral da Administração Pública, pelo menos no enunciado do “caput” do artigo 325, do Código Penal. Já com relação aos tipos especificados no art. 325, § 1º, I e II, o objeto material é o banco de informações ou o sistema de dados, já o objeto jurídico são os aspectos materiais e morais da Administração Pública, explica Nucci (2006, p. 1005).
Pagliaro e Costa Júnior (2006, p. 155), por sua vez, esposam o entendimento de que o objeto da tutela jurídica seria o bom funcionamento da Administração Pública, interessada em manter alguns fatos em segredo. “A revelação do segredo, que deverá ser relevante para o Estado, poderá influir na boa ordem e no eficaz andamento da Administração Pública.”
4 – O QUE É SIGILOSO?
Falta definir o que é sigiloso para a Administração Pública. Para Nucci (2006, p. 1004), segredo “é o que deve ser mantido em sigilo, sem qualquer divulgação”. Sigiloso é o fato ou informação relevante para o interesse público, e não para o interesse particular. No caso do segundo, estar-se-ia falando de divulgação de segredo ou divulgação do segredo profissional, como já se expôs anteriormente.
Importante salientar que o fato que, em nome do interesse público, se mantém em sigilo não é um fato de interesse do administrador, enquanto pessoa, mas um fato que poderia comprometer a própria Administração se a sua divulgação fosse realizada de qualquer jeito, sem preparação da população para captá-la, ou mesmo subvertendo a hierarquia pertinente à Administração, arriscando-a, desde um nível quase que irrelevante a um nível irreversível de dano. Assim:
“Não haverá obrigação de sigilo quando a manutenção da notícia oculta sirva para tutelar interesses construídos contra a lei, ou para fraudá-la, como o interesse de superior que pratica uma prevaricação em que o inferior não a revele. Não há, tampouco, interesse em tutelar interesses fúteis, de vaidade, emulação, etc., ainda que possam ter repercussão no ambiente burocrático.” (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 156)
5 – QUEM VIOLA O SIGILO?
O sujeito ativo dos tipos penais descritos no artigo 325, “caput”, e § 1º, I e II, do Código Penal, é funcionário público, inclusive o aposentado ou em disponibilidade. Num primeiro momento, o sujeito passivo é a Administração Pública, num segundo, o terceiro prejudicado com a revelação. O funcionário público, porém, deve ter conhecimento, “em razão do cargo, de fato que deva permanecer em segredo”, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 155).
Um adendo para explicitar melhor o que foi escrito no parágrafo anterior. Mesmo que um funcionário se aposente ou deixe a Administração Pública, ainda persiste o dever de guardar sigilo. Sobre conhecimento em razão do cargo, Nucci (2006, p. 1003) explica que “a informação somente chegou ao seu conhecimento porque exerce uma função pública”. E mais: “Não fosse funcionário público, desconheceria o ocorrido. Entretanto, se tomou ciência do fato por intermédio de outra fonte que não o seu cargo, não comete o delito previsto por este tipo penal.”
Ressalta-se que o elemento subjetivo do tipo – seja no “caput” do artigo 325, quanto nos incisos I e II – é o dolo, inexistindo forma culposa, inexistindo elemento subjetivo do tipo específico, ensina Nucci. (2006, p. 1003; 1004; 1006) Todavia, se faz preciso salientar que além do dolo genérico, no caso do inciso I, é necessária a “vontade consciente e limpa de permitir ou facilitar o acesso de pessoas não autorizadas[v] a sistema de informações ou bancos de dados da Administração Pública”, sendo que, no tipo do inciso II, “o elemento normativo do tipo é a ausência de autorização para a prática da conduta descrita”. (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 160) Ainda sobre o inciso II, cabe salientar que se houver autorização para o acesso, a conduta é atípica, apregoa Nucci. (2006, p. 1006)
Para Antônio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 157), o dolo pode ser excluído em duas hipóteses: “quando o sujeito tenha a falsa convicção de que o fato não deve permanecer secreto, podendo ser revelado a toda a coletividade ou a determinadas pessoas; ou quando o agente se recorde erroneamente de ter tido conhecimento das notícias por via privada.”
6- COMO SE VIOLA O SIGILO FUNCIONAL?
A violação do sigilo funcional descrita no “caput” do artigo 325 se dá de maneira direta – pela revelação fato que tem ciência em razão do cargo e que deveria ser mantido em segredo -, ou indireta – facilitar a revelação. A revelação pode se dar de qualquer forma, seja por linguagem, desenhos ou mesmos gestos. Até mesmo uma alusão pode ser entendida como revelação. Na violação direta, basta revelar o fato para uma pessoa para que haja a consumação do crime. Já na violação indireta, a consumação se dá com a facilitação, que pode ser omissiva. Na primeira hipótese e na segunda (em se tratando de conduta omissiva), não se admite a tentativa. O crime é formal, não necessitando haver incidência de dano ou perigo posteriormente. (PAGLIARO E COSTA JÚNIOR, 2006, p. 158)
Por outro lado, ao se tratar do inciso I e II, não é necessário resultado naturalístico para se consumar o crime. É suficiente a ação ou omissão do agente. Admite-se a tentativa no inciso I. No inciso II, porém, a admissão da tentativa é discutível. Eis o posicionamento de Antonio Pagliaro e de Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 160): “Entendemos que sim, pois o processo de obtenção do acesso é longo, requerendo um procedimento de busca para obtenção da senha secreta, mediante a qual será possível o ingresso no sistema restrito, obtendo informações sigilosas. Sendo longo o iter criminis a ser percorrido é bem possível que, durante ele, o agente seja surpreendido e obstado de prosseguir.” Se houver dano à Administração Pública, nos termos do artigo 325, § 2º, ocorre a figura do crime qualificado pelo resultado.
Com relação às condutas propriamente dizendo, salutar se faz transcrever a lição de Celso Nucci:
“Pode o agente praticar a conduta típica através dos seguintes mecanismos: a) atribuir (conceder ou conferir) senha (fórmula convencionada por alguém, para impedir que terceiros tenham acesso a segredos guardados). Trata-se de conduta comum na Administração, quando se quer permitir que alguns funcionários, especialmente autorizados, ingressem em arquivos ou conheçam dados ou documentos confidenciais. Assim, por convenção, a determinado funcionário confere-se um código, que o identifica, permitindo-lhe entrar em salas ou sistemas informatizados. Tal conduta pode ocorrer, ainda, atribuindo-se outra forma de acesso, como falso crachá de identificação; b) fornecer (entregar, confiar a alguém) senha. A conduta difere da anterior, pois neste caso o funcionário não confere um código a terceiro, para que este tome conhecimento de dados sigilosos, mas confia senha sua ou de outra pessoa para que o ingresso seja feito. A conduta também pode ser cometida através da entrega de outra forma de passagem, como uma chave; c) emprestar (confiar a alguém determinada coisa para ser devolvida) instrumento de acesso. Tal conduta não se adapta, perfeitamente, à senha, pois, quanto a esta, fornecendo-se o seu código, nada mais resta a fazer. Não se empresta senha, mas fornecem-se os seus caracteres. Portanto, a senha não é devolvida. Se o funcionário que a fornece desejar tê-la de volta com a característica original de bloqueio de acesso a pessoas não autorizadas, necessita alterá-la. Trata-se de forma vinculada.” (NUCCI, 2006, p. 1004-1005)
7- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de a regra ser a publicidade dos atos administrativos, se faz necessário resguardar algumas informações para dar prosseguimento ao bom andamento da Administração Pública. Atos de planejamento ou de resguardo da Administração Pública podem causar danos se divulgados antes do tempo ou mesmo se simplesmente divulgados. Ninguém, em sã consciência, deixa com alguém a senha do cartão magnético que movimenta sua conta bancária ou de poupança. Isso na esfera particular, na pública, o rigor deve ser maior.
Os termos em que se permite o acesso à informação dos atos da Administração Pública se deve dar por meio daquilo que dispõe a Lei. O particular, no seio da sua vida íntima e privada, pode fazer o que bem quiser com relação às informações relativas ao seu ser. Mas a Administração Pública não é ente privado, representa interesses que devem ser levados em conta considerando a coletividade. Por isso, se fazem necessárias a decretação de segredo – por meio de Lei, regulamento ou ordem hierárquica – para que se possam evitar “sabotagens” ou mesmo antecipação de planos que seriam meros estudos, ou seja, que não seriam concretizados, mas foram divulgados de maneira bombástica e irresponsável, por exemplo.
Ademais, se faz preciso afirmar que o sigilo para a proteção do interesse público não se coaduna com os interesses de particulares ou de grupos que se revezam no poder, mas encobertos sob o carimbo do interesse público. Se assim o for, há distorção da Lei e se trata de uma ditadura.
8 - BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte 1. 10. ed. São Paulo: 2006.
PAGLIARO, Antonio & COSTA JUNIOR, Paulo José da. Crimes contra a administração pública. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Perfil, 2006.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 11. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002.
[i] Violação de sigilo funcional
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
[ii] Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 1o-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Violação do segredo profissional
Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.
[iii] Francisco de Assis Toledo (2002, p. 52-53) ensina o que é consunção nos seguintes termos: “Há, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais específicos que, por visarem a proteção dos bens jurídicos diferentes, não se situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade) nem se colocam numa posição de maior ou menor grau de execução de um crime.” No entendimento de Cezar Roberto Bitencourt (2006, p. 250): “Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui um meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro regime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração.”
[iv] “Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.” (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 96)
[v] Nucci (2006, p. 325) esclarece: “Pessoas não autorizadas são aquelas que não detêm da Administração Pública ou da própria lei liberdade para ingressar e tomar conhecimento de sistemas de informações ou banco de dados públicos. É elemento normativo do tipo, que depende de valoração.”
Quais os limites que separam a necessidade do segredo do interesse público calcado no princípio da publicidade? O direito à intimidade e à privacidade do indivíduo perante às bisbilhotices de quem quer que seja foi longamente explorado na sensacional obra “O direito de estar só: a tutela penal do direito à intimidade”, do professor doutor Paulo José da Costa Júnior. Mas a intimidade e a privacidade da pessoa privada, seja física ou jurídica, é uma coisa. No entanto, é uma coisa muito diferente quando se fala em Administração Pública.
Contudo, apesar da preponderância do princípio da publicidade, existem informações da Administração Pública que devem ser preservadas, sob alcunha de sigilosas. Existem, porém, questionamentos sobre o que seria e o que não seria sigiloso. Há uma tênue linha entre o que deve ser classificado como sigiloso e o que deve ser visto como público, em sua plenitude.
Pois bem. Tentar-se-á desenvolver, neste pequeno ensaio, algumas explicações sobre o crime de “violação de sigilo funcional”[i] – arrolado na legislação brasileira, como um dos crimes contra a Administração Pública. Estas linhas são mais um ensaio que um artigo científico propriamente dizendo.
2- DA VIOLAÇÃO DOS SEGREDOS
Genericamente falando, se assim se pode dizer, trata-se de um crime contra a violação dos segredos, contudo, que se especializa com relação aos crimes contra a inviolabilidade dos segredos, investidos nos artigos 134 e 135 do Código Penal Brasileiro.[ii] A tendência brasileira, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr. (2006, p. 154), segue os Códigos Penais mais importantes da contemporaneidade, como o italiano (art. 326), o suíço (art. 320) e o alemão (§ 353-b).
Por ser uma espécie de crime contra a violação dos segredos, a “violação de sigilo funcional” pode ser subsidiária, suplementar ou supletiva, “enquanto a pena prevista não se aplica se o fato constituir fato mais grave”. Quer dizer, “a sanção prevista para o crime mais grave mostra-se suficiente para punir também este crime”. (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 154) Há, então, para Pagliaro e Costa Júnior, consunção.[iii] Os exemplos abaixo podem aclarar a situação:
“Desse modo, se se tratar de espionagem ou de revelação de segredo que ofenda a segurança nacional, o agente incorrerá nas sanções da Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (arts. 13, 14 e 21). Se o segredo for de natureza militar, dará lugar ao delito previsto no art. 326 daquele estatuto. Tratando-se de violação de segredo epistolar praticada com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico, o crime será o do § 3º do art. 151 do Código Penal. A transmissão de informações sigilosas referentes a energia nuclear é punida pela Lei n. 6.453, de 1977 (art. 23)” (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 154-155)
3 – ENTRE A PUBLICIDADE E O SIGILO
Por que o sigilo de atos da Administração Pública, se a regra é a preponderância do princípio constitucional da publicidade, explícito no artigo 37, “caput”, da Constituição Federal de 1988?[iv] Procura-se manter o bom andamento e funcionamento da administração pública. De acordo com Nucci (2006, p. 1004), o objeto material é a informação sigilosa, enquanto o objeto jurídico são os interesses material e moral da Administração Pública, pelo menos no enunciado do “caput” do artigo 325, do Código Penal. Já com relação aos tipos especificados no art. 325, § 1º, I e II, o objeto material é o banco de informações ou o sistema de dados, já o objeto jurídico são os aspectos materiais e morais da Administração Pública, explica Nucci (2006, p. 1005).
Pagliaro e Costa Júnior (2006, p. 155), por sua vez, esposam o entendimento de que o objeto da tutela jurídica seria o bom funcionamento da Administração Pública, interessada em manter alguns fatos em segredo. “A revelação do segredo, que deverá ser relevante para o Estado, poderá influir na boa ordem e no eficaz andamento da Administração Pública.”
4 – O QUE É SIGILOSO?
Falta definir o que é sigiloso para a Administração Pública. Para Nucci (2006, p. 1004), segredo “é o que deve ser mantido em sigilo, sem qualquer divulgação”. Sigiloso é o fato ou informação relevante para o interesse público, e não para o interesse particular. No caso do segundo, estar-se-ia falando de divulgação de segredo ou divulgação do segredo profissional, como já se expôs anteriormente.
Importante salientar que o fato que, em nome do interesse público, se mantém em sigilo não é um fato de interesse do administrador, enquanto pessoa, mas um fato que poderia comprometer a própria Administração se a sua divulgação fosse realizada de qualquer jeito, sem preparação da população para captá-la, ou mesmo subvertendo a hierarquia pertinente à Administração, arriscando-a, desde um nível quase que irrelevante a um nível irreversível de dano. Assim:
“Não haverá obrigação de sigilo quando a manutenção da notícia oculta sirva para tutelar interesses construídos contra a lei, ou para fraudá-la, como o interesse de superior que pratica uma prevaricação em que o inferior não a revele. Não há, tampouco, interesse em tutelar interesses fúteis, de vaidade, emulação, etc., ainda que possam ter repercussão no ambiente burocrático.” (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 156)
5 – QUEM VIOLA O SIGILO?
O sujeito ativo dos tipos penais descritos no artigo 325, “caput”, e § 1º, I e II, do Código Penal, é funcionário público, inclusive o aposentado ou em disponibilidade. Num primeiro momento, o sujeito passivo é a Administração Pública, num segundo, o terceiro prejudicado com a revelação. O funcionário público, porém, deve ter conhecimento, “em razão do cargo, de fato que deva permanecer em segredo”, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 155).
Um adendo para explicitar melhor o que foi escrito no parágrafo anterior. Mesmo que um funcionário se aposente ou deixe a Administração Pública, ainda persiste o dever de guardar sigilo. Sobre conhecimento em razão do cargo, Nucci (2006, p. 1003) explica que “a informação somente chegou ao seu conhecimento porque exerce uma função pública”. E mais: “Não fosse funcionário público, desconheceria o ocorrido. Entretanto, se tomou ciência do fato por intermédio de outra fonte que não o seu cargo, não comete o delito previsto por este tipo penal.”
Ressalta-se que o elemento subjetivo do tipo – seja no “caput” do artigo 325, quanto nos incisos I e II – é o dolo, inexistindo forma culposa, inexistindo elemento subjetivo do tipo específico, ensina Nucci. (2006, p. 1003; 1004; 1006) Todavia, se faz preciso salientar que além do dolo genérico, no caso do inciso I, é necessária a “vontade consciente e limpa de permitir ou facilitar o acesso de pessoas não autorizadas[v] a sistema de informações ou bancos de dados da Administração Pública”, sendo que, no tipo do inciso II, “o elemento normativo do tipo é a ausência de autorização para a prática da conduta descrita”. (PAGLIARO & COSTA JÚNIOR, 2006, p. 160) Ainda sobre o inciso II, cabe salientar que se houver autorização para o acesso, a conduta é atípica, apregoa Nucci. (2006, p. 1006)
Para Antônio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 157), o dolo pode ser excluído em duas hipóteses: “quando o sujeito tenha a falsa convicção de que o fato não deve permanecer secreto, podendo ser revelado a toda a coletividade ou a determinadas pessoas; ou quando o agente se recorde erroneamente de ter tido conhecimento das notícias por via privada.”
6- COMO SE VIOLA O SIGILO FUNCIONAL?
A violação do sigilo funcional descrita no “caput” do artigo 325 se dá de maneira direta – pela revelação fato que tem ciência em razão do cargo e que deveria ser mantido em segredo -, ou indireta – facilitar a revelação. A revelação pode se dar de qualquer forma, seja por linguagem, desenhos ou mesmos gestos. Até mesmo uma alusão pode ser entendida como revelação. Na violação direta, basta revelar o fato para uma pessoa para que haja a consumação do crime. Já na violação indireta, a consumação se dá com a facilitação, que pode ser omissiva. Na primeira hipótese e na segunda (em se tratando de conduta omissiva), não se admite a tentativa. O crime é formal, não necessitando haver incidência de dano ou perigo posteriormente. (PAGLIARO E COSTA JÚNIOR, 2006, p. 158)
Por outro lado, ao se tratar do inciso I e II, não é necessário resultado naturalístico para se consumar o crime. É suficiente a ação ou omissão do agente. Admite-se a tentativa no inciso I. No inciso II, porém, a admissão da tentativa é discutível. Eis o posicionamento de Antonio Pagliaro e de Paulo José da Costa Júnior (2006, p. 160): “Entendemos que sim, pois o processo de obtenção do acesso é longo, requerendo um procedimento de busca para obtenção da senha secreta, mediante a qual será possível o ingresso no sistema restrito, obtendo informações sigilosas. Sendo longo o iter criminis a ser percorrido é bem possível que, durante ele, o agente seja surpreendido e obstado de prosseguir.” Se houver dano à Administração Pública, nos termos do artigo 325, § 2º, ocorre a figura do crime qualificado pelo resultado.
Com relação às condutas propriamente dizendo, salutar se faz transcrever a lição de Celso Nucci:
“Pode o agente praticar a conduta típica através dos seguintes mecanismos: a) atribuir (conceder ou conferir) senha (fórmula convencionada por alguém, para impedir que terceiros tenham acesso a segredos guardados). Trata-se de conduta comum na Administração, quando se quer permitir que alguns funcionários, especialmente autorizados, ingressem em arquivos ou conheçam dados ou documentos confidenciais. Assim, por convenção, a determinado funcionário confere-se um código, que o identifica, permitindo-lhe entrar em salas ou sistemas informatizados. Tal conduta pode ocorrer, ainda, atribuindo-se outra forma de acesso, como falso crachá de identificação; b) fornecer (entregar, confiar a alguém) senha. A conduta difere da anterior, pois neste caso o funcionário não confere um código a terceiro, para que este tome conhecimento de dados sigilosos, mas confia senha sua ou de outra pessoa para que o ingresso seja feito. A conduta também pode ser cometida através da entrega de outra forma de passagem, como uma chave; c) emprestar (confiar a alguém determinada coisa para ser devolvida) instrumento de acesso. Tal conduta não se adapta, perfeitamente, à senha, pois, quanto a esta, fornecendo-se o seu código, nada mais resta a fazer. Não se empresta senha, mas fornecem-se os seus caracteres. Portanto, a senha não é devolvida. Se o funcionário que a fornece desejar tê-la de volta com a característica original de bloqueio de acesso a pessoas não autorizadas, necessita alterá-la. Trata-se de forma vinculada.” (NUCCI, 2006, p. 1004-1005)
7- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de a regra ser a publicidade dos atos administrativos, se faz necessário resguardar algumas informações para dar prosseguimento ao bom andamento da Administração Pública. Atos de planejamento ou de resguardo da Administração Pública podem causar danos se divulgados antes do tempo ou mesmo se simplesmente divulgados. Ninguém, em sã consciência, deixa com alguém a senha do cartão magnético que movimenta sua conta bancária ou de poupança. Isso na esfera particular, na pública, o rigor deve ser maior.
Os termos em que se permite o acesso à informação dos atos da Administração Pública se deve dar por meio daquilo que dispõe a Lei. O particular, no seio da sua vida íntima e privada, pode fazer o que bem quiser com relação às informações relativas ao seu ser. Mas a Administração Pública não é ente privado, representa interesses que devem ser levados em conta considerando a coletividade. Por isso, se fazem necessárias a decretação de segredo – por meio de Lei, regulamento ou ordem hierárquica – para que se possam evitar “sabotagens” ou mesmo antecipação de planos que seriam meros estudos, ou seja, que não seriam concretizados, mas foram divulgados de maneira bombástica e irresponsável, por exemplo.
Ademais, se faz preciso afirmar que o sigilo para a proteção do interesse público não se coaduna com os interesses de particulares ou de grupos que se revezam no poder, mas encobertos sob o carimbo do interesse público. Se assim o for, há distorção da Lei e se trata de uma ditadura.
8 - BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte 1. 10. ed. São Paulo: 2006.
PAGLIARO, Antonio & COSTA JUNIOR, Paulo José da. Crimes contra a administração pública. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Perfil, 2006.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 11. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002.
Notas
[i] Violação de sigilo funcional
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
[ii] Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 1o-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Violação do segredo profissional
Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.
[iii] Francisco de Assis Toledo (2002, p. 52-53) ensina o que é consunção nos seguintes termos: “Há, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais específicos que, por visarem a proteção dos bens jurídicos diferentes, não se situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade) nem se colocam numa posição de maior ou menor grau de execução de um crime.” No entendimento de Cezar Roberto Bitencourt (2006, p. 250): “Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui um meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro regime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração.”
[iv] “Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.” (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 96)
[v] Nucci (2006, p. 325) esclarece: “Pessoas não autorizadas são aquelas que não detêm da Administração Pública ou da própria lei liberdade para ingressar e tomar conhecimento de sistemas de informações ou banco de dados públicos. É elemento normativo do tipo, que depende de valoração.”
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