No decorrer da história, o uso do poder sempre foi legitimado, seja por razões de ordem religiosa ou simplesmente pelas convenções dos homens. Em ambos os casos, havia a legitimação jurídica do poder de punir diante da violação de uma norma imposta às pessoas, diferentemente consideradas. O poder de punir e os interesses de quem estava no comando do Estado eram praticamente a mesma coisa. No passado, a pena recaía no próprio corpo do condenado exibido e humilhado perante o público. Hoje, porém, a pena – aplicada pelo Estado – apenas lhe restringe a liberdade. O suplício não recai mais sobre o corpo – que, em tese, deve ser resguardado pelo próprio Estado que pune o infrator –, mas sobre a sua imagem. A função de expiar o “crime” não é mais exclusiva da autoridade, que mediava a participação popular na execução das penas; é compartilhada com a mídia, que formula sua própria tipificação para as condutas, consideradas benéficas ou maléficas, conforme melhor lhe aprouver.
Os Estados contemporâneos são caracterizados pelo monopólio do uso da força. Ou melhor, como diz o libertariano (neoliberal) Robert Nozick, detêm o monopólio de dizer quem fará uso da força. As cenas de violência que permeiam o cotidiano fazem as pessoas questionarem, freqüentemente, se não seria mais adequado tomarem – por elas mesmas – os critérios de decisão de conflitos nas suas próprias mãos e, assim, executarem as penas, saciando um primitivo instinto de vingança.
Assim eram as primeiras formas de reação penal na Antigüidade: uma vingança privada, ilimitada e desproporcional, marcada pela irracionalidade. Ainda no mesmo período histórico, a vingança passou a ser pública. Esboçava-se uma certa racionalização das penas, que eram, de certa forma, uma maneira de os homens retribuírem às divindades o mal feito pelo infrator.
Durante muito tempo, os conceitos de crime e pecado eram praticamente unos, por influência do Direito Canônico. As figuras do acusador e a do defensor público foram inovações trazidas pelo Tribunal do Santo Ofício, que, não raro, invadiam a competência dos Estados. Sua competência originária era apurar e julgar a heresia. Mas o que se pode definir como heresia? Quase tudo o que bem entendesse o inquisidor.
Durante muito tempo, os conceitos de crime e pecado eram praticamente unos, por influência do Direito Canônico. As figuras do acusador e a do defensor público foram inovações trazidas pelo Tribunal do Santo Ofício, que, não raro, invadiam a competência dos Estados. Sua competência originária era apurar e julgar a heresia. Mas o que se pode definir como heresia? Quase tudo o que bem entendesse o inquisidor.
O processo penal era secreto, tendo somente a execução da pena o caráter público. A pena incidia diretamente no corpo do condenado – que era, ao mesmo tempo, o objeto em que se personificava o processo penal, que até dado momento permanecera sigiloso – numa execução pública.
Posteriormente, com a mescla de conceitos do Direito Romano, do Direito Germânico, do Direito Canônico e dos Direitos Penais dos locais onde se formavam os Estados Absolutista., a pena era uma afirmação do poder do soberano, que encontrava sustentáculo nas obras, principalmente, de pensadores como o inglês Thomas Hobbes. Aliás, no contrato social hobbesiano, pelo medo da guerra de todos contra todos, os homens se desfaziam da liberdade natural pela servidão civil ao Leviathan, o corpo soberano (uma assembléia ou um monarca), em troca da segurança que este lhes proveria.
O monarca, segundo Hobbes, tinha a tarefa de assegurar a co-existência entre os seus súditos e o próprio Estado, pela punição exemplar daqueles que colocassem em risco essa relação. Assim, cometer qualquer ofensa, por menor que fosse, era um crime direto ao soberano, detentor do poder de punir, que era delegado aos carrascos.
O filósofo francês Michel Foucault, no livro “Vigiar e Punir”, dissertou com detalhes a execução dos condenados. O mal do delito cometido pelo condenado deveria ser reproduzido em seu corpo, como uma forma de afirmação do poder do soberano.A tortura e o suplício do corpo do condenado tornavam pública a aplicação da pena – mais um espetáculo para as massas e reafirmação do poder real que utilidade social de prevenção e repressão à delinqüência.
A noção de princípio da dignidade humana surgiu apenas posteriormente, com Samuel Puffendorf. Essa noção, aliada aos ideais iluministas, veio combater o princípio da autoridade, fosse da Igreja Católica ou do monarca absolutista. Houve a cisão histórica entre crime e pecado, afirmando o indivíduo: um grito contra a arbitrariedade que violava direitos intrínsecos a cada ser humano, que, de acordo com Jean-Jacques Rousseau, era corrompido pela sociedade civil. Voltaire, por exemplo, criticava o rigor excessivo das penas, a arbitrariedade daqueles encarregados da instrução e execução criminal e os erros judiciais.
O barão de Montesquieu, por sua vez, tinha na Lei Positiva uma segurança contra o abuso do poder. Haveria de se ter formalidades procedimentais e ampla defesa para, só assim, o juiz chegar a uma decisão justa. A Lei seria um freio ao bel prazer das autoridades.
Os iluministas e a elite econômica – a burguesia que ansiava o poder político –, cada qual por seus motivos, pregavam uma reforma nas estruturas do Estado. Para Rousseau, o homem, que era bom por natureza, foi ludibriado a celebrar um contrato social, saindo de um estado de natureza no qual era livre para ser servo explorado na sociedade civil, que favorecia apenas alguns. Era necessário um novo contrato social que desse um basta nisso, tirando-o da sociedade civil degenerada para entrar num Estado Moral, a República.
O contratualismo rousseauniano influenciou toda uma época, surtindo efeitos, inclusive, num intelectual que despontava na Toscana: Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. Na sua principal obra “Dos delitos e das penas”, Beccaria tece críticas severas e contundentes ao sistema penal vigente, completando o ciclo de laicização do Direito Penal. O contrato social celebrado entre os homens era o fundamento do Estado e do direito de punir, devidamente regulado por Lei (princípio da reserva legal), elaborada por legisladores eleitos. Assim, só as Leis poderiam prescrever delitos e penas, tal como a proporcionalidade entre ambos.
A repressão pungente “às pequenas ações”, em vez de crimes, no seu entender, estimulava ainda mais a prática criminosa. Beccaria também repudiou a pena de morte, pois na sua concepção, não servia para prevenir ou reprimir crimes, sendo apenas mais uma causa de comoção popular.
Por outro lado, o contrato social de Rousseau foi subvertido para justificar teorias reacionárias como a do “Direito Penal do Inimigo”, de Günther Jakobs. Rousseau considerava que os criminosos estavam à margem do contrato social. Este argumento de defesa do corpo social e legitimação do poder punitivo, foi utilizado por Jakobs para defender que há outros tipos de criminosos que devem ser combatidos de forma diferente, mesmo que implicasse na violação de certos direitos.
Contemporaneamente, o corpo humano é protegido contra os suplícios patrocinados pelo Estado. No Brasil, inclusive, há a Lei n.º 9.445/97, que define os crimes de tortura, que antes era instrumento legítimo de instrução processual penal. As penas não visam mais o suplício dos condenados, além da privação da sua liberdade, que teria a função de reeducá-los, para devolvê-los à sociedade, devidamente “emendados”.
A matéria-prima dos suplícios de outrora, o corpo, deve ser preservada. O suplício – primordial para oferecer outro espetáculo para as massas no intuito de legitimar a ação dos aparelhos repressivos do Estado – se transfere do corpo para a imagem dos condenados.
O Leviathan contemporâneo é o povo que exerce seus poderes por meio de representantes eleitos pelos seus cidadãos. A função de repressão e de prevenção é realizada pelas autoridades administrativas e judiciais, por meio do processo penal público, salvo se decretado segredo de Justiça, de modo a não mais necessitar do suplício do corpo para lhe dar publicidade.
Além da publicidade formal, inerente ao processo penal, para satisfazer o titular do Leviathan contemporâneo, o povo, há de se propiciar uma publicidade que ultrapasse os meandros técnico-jurídicos para lhe aplacar o apetite por vingança.
O suplício da imagem não é feito pelo aparato estatal, via processo penal. É conduzido pelo processo jornalístico, que tem nos seus agentes os novos inquisidores. Nesse novo tipo de processo inquisitorial, não se respeitam os princípios do Direito Penal historicamente consolidados, como o da legalidade, o da reserva legal, o do contraditório e da ampla defesa e o do devido processo legal, entre outros.
No fórum da opinião pública, os novos inquisidores bradam por moralidade, legalidade e respeito à coisa pública; mas para os outros. Em sua persecução noticiosa, não se atentam sequer a um formalismo procedimental que lhes aproxime, sequer, das garantias proporcionadas pelo processo judicial. Daí, ofendem a moralidade, a legalidade e o respeito à coisa pública que, para o público, dizem proteger.
Os novos inquisidores assumem a truculência dos aparelhos repressivos do Estado para o suplício da imagem e criam tipos, a parte dos definidos juridicamente, que lhes justifiquem as atividades persecutórias. Além de vigiar e punir pela dilaceração moral perante o público, são ideólogos do novo contrato social baseado na fragmentação e na superficialidade dos debates. Ao mesmo tempo, são inquisidores, juízes e carrascos do Leviathan contemporâneo. A defesa é meramente formal, já que o contraditório e a ampla defesa se resumem a meramente ouvir a outra parte, sem que se lhe dê oportunidade de defender-se de modo proporcional ao que lhe é imputado. Tudo deve ser simplista para ser facilmente digerido pelas massas e facilmente aplicado pelos algozes.
O processo de edição do noticiário, ou mesmo o de apuração das informações, já se encarrega de direcionar os juízos da opinião pública para a condenação, mesmo que nem haja, antes, um processo jurídico. Para os novos inquisidores, a condenação judicial não é o bastante, é preciso expurgar os males pela expiação da imagem do condenado na imprensa.
Não importa que perante as autoridades judiciárias o acusado seja inocente. Diante do tribunal da opinião pública, já foi condenado antes mesmo de lhe ser oferecida oportunidade de defesa, numa amostra de aplicação da Teoria do Direito Penal do Inimigo à sociedade da comunicação de massas.
O inimigo pode ser qualquer um. Qualquer um corre o risco de ser tratado como um “inimigo especial”, pois os “tipos criminais” criados pelos novos inquisidores são tipos abertos, que podem ser ampliados conforme suas conveniências políticas e ideológicas. Aliás, não sabem, nem concebem, a individualização da responsabilidade penal. Imputam ofensas cometidas por uma pessoa a todo um grupo, sem distinguir nitidamente quem fez o quê.
Nesse processo cerceado de dúvidas, não se usa o "in dubio pro reo", muito menos o "in dubio pro societatem". Os novos inquisidores falaciosamente discursam "in dubio pro societatem" na persecução e execução da imagem dos previamente condenados. O discurso do interesse público é utilizado como subterfúgio para mobilizar a massa a determinados fins, aparentemente públicos, mas que, com certeza, legitimariam o suplício da imagem dos condenados. Nesse espectro, qualquer um já está condenado. É só escolher alguém para a execução da pena em público.
É a liberdade de imprensa que, em caso de abuso, atenta contra a liberdade de acesso à informação e à dignidade humana, perfazendo um verdadeiro tribunal de exceção. Quis o constituinte que o indivíduo tivesse tutelado seu direito à informação correta, diga-se de passagem. E não o contrário. Com o fim de se instalar um Estado Moral, parece que quaisquer meios são justificáveis para a caça às bruxas.
Vigiar os comuns e punir a imagem dos escolhidos como condenados. O importante é oferecer uma ilusão de justiça à massa, uma ilusão de mudança. Uma mudança para uma aparente segurança. Mas nestes termos, segurança não existe. Segurança é uma ilusão. Cuidado, caro leitor, você já foi condenado. Está somente à espera da execução da sua pena, o suplício da sua imagem.
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