sexta-feira, 12 de junho de 2009

As aranhas


Aranhas. O velho só via aranhas. A causa de todo o mal do mundo eram os aracnídeos. Na boca, apenas os dentes molares, os outros já estavam perdidos pelo mundo. Cabelos brancos, olhos cansados, quase fechando, mas que tinham o brilho daqueles que estão sob domínio da loucura.


De casa em casa, vagava pedindo algum tipo de ajuda para a sua subsistência. As pessoas, enojadas, ofereciam qualquer coisa para que a grotesca figura fosse logo embora. Os pés descalços e calejados erravam sem destino, em um compasso lento, confuso e desesperado.

Volta e meia, algum ou outro cidadão dava um pouco mais de atenção ao velho. O ancião, já desprovido de razão, narrava as façanhas das aranhas, como elas se apoderavam do mundo lenta e constantemente. Quase ninguém tinha paciência de agüentar os delírios do idoso. A maior parte o enxotava como a um animal.

Dormia ao relento. Não tinha família. Os filhos o abandonaram quando perdeu a fortuna. Foras rico outrora. Muito poderoso, guiava os destinos de grande parte das pessoas de um país. Perdeu tudo. O descontrole de suas empresas, ocasionadas pela negligência de um rico vaidoso, marcou o início do fim de um império.

Quis aproveitar a vida. Deixou os seus bens para os dois filhos. Vivia cercado das mulheres mais desejadas pelos mortais. Tudo o que queria no momento era o ócio. Já tinha trabalhado demais na vida. Os filhos que fizessem o resto.




Intrigas, lutas pelo poder. Ganância e vaidade corroeram os dois irmãos. Cada qual exigia mais posses, nada bastava. Quanto mais se tinha, mais se queria. O velho não gostava de ver os seus filhos brigando. Decidiu dar um basta. Queria ter o controle de tudo novamente.

Os dois filhos, muito astutos, não queriam renunciar ao poder que lhes fora conferido. Uniram-se contra o pai. Contrataram pessoas para enlouquecerem o pobre homem. Mordomos, mulheres, médicos e amigos conspiravam 24 horas por dia contra a sanidade do velho.

O velho, cada vez mais cabisbaixo e ignorado, criou um mundo isolado. Não sabia mais o que era real e o que era fantasia. O mundo tornou-se hostil. Deixavam-no trancado no porão, junto aos insetos, ratos e animais das sombras. Para todos, ele tinha desaparecido misteriosamente em uma excursão ao Pantanal. Provavelmente, tinha sido mais uma vítima de alguma fera selvagem ou de piranhas.

Queriam humilhar o velho por tudo o que tinha feito antes: manipular pessoas, como bonecos de um mórbido teatro particular, no qual todos saíam perdendo. Parou de dialogar com os seres humanos. Era rodeado de aranhas. Quem o bajulava antigamente eram as aranhas disfarçadas de homens. Seus filhos nunca foram seus filhos. Foram, desde o nascimento, aranhas destinadas a fazer-lhe o mal.

Quando o velho estava irreconhecível, jogaram-no ao mundo. Não era mais altivo e saudável, com músculos salientes, apesar da idade. Via-se somente mais um maltrapilho, daqueles que vagueiam pelas ruas. O rosto imbecilizado, um leve sorriso desiludido. Não tinha passado ou vida. Já fora dado como morto pelos entes conhecidos. Era mais um louco, um joão-ningúem.

Andava. Não sabia para onde. Andava. Só havia aranhas na sua mente debilitada. Todos temiam-no, mas de um modo diferente. Causava medo pelo asco que emanava. Não pela sua onipotência.

Ficou conhecido no folclore da cidade como o “Velho das Aranhas”. A qualquer lugar que ia, era imediatamente reconhecido. Um dia, deitou-se e nunca mais se levantou. Ficou estirado no meio da calçada de um bairro nobre da cidade.

Olhos esbugalhados, transmitindo pavor e abandono. A boca aberta alagada de sangue tísico e anêmico. Um ruído exalava de sua boca. Era a última vez em que seus pulmões trabalhavam. Seu corpo começava a ficar frio, diante do calor do verão e da multidão. Todos os carros e pedestres envolta do velho. Ninguém parava. Para eles era tudo normal. Era só mais um mendigo que deixava de incomodar o visual da cidade.

Todos passavam. Mas ninguém via. Na mão do velho, um pequeno artrópode ainda estava vivo. Na palma direita daquele que um dia foi um ser humano, havia uma aranha caminhando para a liberdade.

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