quinta-feira, 11 de junho de 2009

MARQUÊS DE SADE: A CONVERSÃO DO VÍCIO EM VIRTUDE E A LIBERTAÇÃO DO INDIVÍDUO PELA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LUXÚRIA








"No moral, como no físico sempre tive a sensação de abismo, não somente do abismo do sono, mas da ação, do devaneio, da recordação do desejo, da saudade, do remorso, do belo, do ritmo, etc.
Cultivei minha histeria com alegria e terror. Agora sempre tenho vertigens, e hoje, 23 de janeiro de 1962, recebi singular advertência, senti passar por mim o vento da asa da imbecilidade.(Charles Baudelaire, Arabescos Filosóficos, p. 21)





1-) INTRODUÇÃO




Sempre associamos a ética com nobreza, virtude, caráter distintivo. E se tudo fosse ao contrário? E se a dignidade do ser humano (cada um ser visto como um fim em si mesmo) fosse ignorada e todos fossem usados como meios para a satisfação dos seus prazeres? Tentamos explorar esta proposta. Toda forma possível de prazer carnal, sem limites, nem orientações tal como se conhece no mundo influenciado pela tradição judaico-cristã. Sem delimitações entre o prazer e a dor, nada como fronteira, nem leis - no sentido usual - ou advertências morais, aliás, ambas rejeitadas por oferecerem certa subserviência à real natureza humana, que seria totalmente livre em sua concepção original. Com base na obra Filosofia na alcova, do Marquês de Sade, este texto se limita a discutir, sob o prisma também de alguns filósofos, os ingredientes que constituem aquilo que os religiosos - católicos, sobretudo - taxam como sendo um dos sete pecados capitais: a luxúria.

Geralmente, ao se falar em luxúria vêm à mente atos libidinosos dos mais variados gêneros e espécies, que alimentam as imaginações nos cantos mais escondidos da mente, longe do intimidante olhar dos outros. Sade abomina a moralidade cristã e justifica sua luxúria como um complemento da República, um reforço contra a Monarquia, que ajudou a combater. Enseja a revolução da dentro da revolução; só a mudança da forma de governo não é o bastante, há de se mudar também os pormenores sutis da sociedade.

Para ele, nesta nova forma de governo, a República, há ainda necessidade de se remodelar a "superestrutura" da sociedade, desligando-a completamente dos vestígios dominiais da monarquia, esta sustentada pela ideologia da Igreja. Sade abraça a luxúria e põe em xeque a validade da moral, algo que impediria a liberdade plena do homem, no plano físico. Se há uma dimensão terrena e outra metafísica, Sade prefere nitidamente a primeira. Afirma que é necessário viver com toda voracidade nesta vida e no presente, em vez de esperar por algo incerto. Sua idéia é, então, calcada no eroticamente possível, e não metafísico
[i], num embate aos princípios da moralidade cristã, que acredita serem inócuos e, portanto, vazios. Por isso, diz:

"Sentiu-se que este deus quimérico, prudentemente inventado pelos primeiros legisladores, não passava em suas mãos de um meio a mais para nos acorrentar, e que, reservando-se o direito de só fazer falar este fantasma, saberiam fazê-lo dizer apenas o que serviria de apoio às leis ridículas por meio das quais pretendiam nos escravizar."
[ii]

Reiterando explicitamente o despotismo da luxúria como o único aceitável, o marquês esclarece a ligação que havia entre Monarquia e religião na dominação - constitucional e ideológica, respectivamente - do povo. De acordo com Sade, a conexão entre a religiosidade e os déspotas está em vigência desde há séculos, portanto, deve-se destruir uma das partes para que a outra caia (SADE, 1999, p.135), sendo, ademais, muitas vezes necessário lutar para que houvesse realmente a queda da segunda, apagando totalmente os vestígios dominiais anteriores. O Estado Republicano deve impor oficialmente a luxúria como o seu valor mais elevado, estando os interesses a ela subordinados "juridicamente protegidos"
[iii], exatamente por contrariarem todos os estratagemas ideológicos que agraciavam a Monarquia. Portanto, Sade compreende que é preciso educar, preparar e inserir os cidadãos numa nova sociedade que erige suas normas em conformidade com a real natureza humana, com liberdade total para que possam perseguir seus interesses sem barreiras coercitivas intrínsecas (o temor a Deus, ou a seus agentes) ou extrínsecas (olhares e recriminações) e se satisfazerem conforme acordarem mais conveniente.


2-) DA PHILIA E DA INICIAÇÃO LUXURIENTAS


"As nações só têm grandes homens contra a vontade delas, - como as famílias. Elas fazem todos os esforços para não os ter. Por isso, o grande homem precisa, para sobreviver, possuir uma força combativa maior que a força de resistência desenvolvida por milhões de indivíduos." (Charles Baudelaire, Arabescos filosóficos, pp. 10-11)


A iniciação luxurienta, em Filosofia na alcova, se dá na figura de Èugenie, uma virgem aristocrata, filha de um nobre libertino e de uma mãe católica fervorosa. A corruptora é a Madame de Saint-Ange e o mentor intelectual, o senhor Dolmancé. O livro todo é permeado de passagens libertinas, com o intuito de prender a atenção do leitor, entretanto, o que realmente vale no pensamento de Sade está no meio da obra[iv], num capítulo intitulado "Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos".

A luxúria, na obra de Sade, não é para qualquer um. Deve ser praticada num "contexto social", uma confraria de luxurientos, cujos membros concordariam que a moral não leva os homens à verdadeira felicidade.
[v] Na philia epicurista, os vínculos não são políticos ou religiosos, constituem "condição para construção - se não há salvação coletiva - da subjetividade livre, desalienada, incólume ao despotismo dos desejos irracionais, das falsas opiniões e dos temores infundados, inatingível pelas tiranias do mundo".[vi]

A philia sadiana tem em comum com o hedonismo epicurista esta visão de confraria, em prol da libertação plena do sujeito, mediante uma aglutinação, das imposições de qualquer grandeza. Em Sade, porém, sua manifestação não está nos valores metafísicos, da alma, ou qualquer outra instância superior; está naquilo que pode ser feito neste plano de existência, que se encontra amarrado pela moral sustentada pela religião, suporte, por sua vez, da tirania.

Os cidadãos ao clamarem a liberdade para si, destronando o monarca - monopolizador das vontades -, não podem esquecer-se de implantar, junto com a República, uma nova ideologia que os libertará das amarras da anterior. Nesta espécie de contrato social, a norma hipotética fundamental é a luxúria, deliberada em estado de total liberdade, e imposta à observância de todos, como o arcabouço da constituição de um Estado, cujo conteúdo sociológico, a Nação, estaria fortalecida porque as pessoas (o povo, elemento político) estariam ligadas por laços muito fortes de fraternidade carnal, acima da família e das classes sociais.


3-) LUXÚRIA COMO LIBERTAÇÃO



"Sentimento de solidão desde minha infância. Até entre a família, - e no meio dos camaradas, sobretudo -, sentimento de destino eternamente solitário. Entretanto, amor muito acentuado à vida e ao prazer." (Charles Baudelaire, Arabescos filosóficos, p. 30)


Em Filosofia na alcova, Sade discorre sobre o mal como a antítese do bem, aquilo que vai proporcionar algo novo. Resgata a antigüidade greco-romana, moldada conforme sua visão, para legitimar seu pensamento libertino. William Blake, poeta e artista plástico inglês, pensa de maneira semelhante, tanto que diz que não há progresso sem contrários, num jogo de palavras antônimas, que coloca como complementares.
[vii] Ao escrever que "Energia é o Deleite Eterno"[viii], Blake entende, como Sade[ix], que aquele que não dá vazão ao seu desejo assim o faz porque o seu desejo é demasiadamente fraco, portanto, a razão toma-lhe o comando, tornando-lhe passivo, até que não lhe reste mais coisa alguma do desejo.

Sade diz, em sua obra, que é mais importante a liberdade própria mesmo que viole a individualidade alheia. Supervaloriza a dimensão individual face ao público, a busca do prazer e a quebra dos dogmas, pois a tirania da sociedade não pode, através de mecanismos coercitivos como a moral, cercear a vontade do homem. A luxúria é a manifestação da sua libertação, mesmo que implique na violação do direito do outro.

Daí, Sade não considera a missiva kantiana de que a única coisa que pode ser considerada incondicionalmente boa é a disposição, ou a boa vontade, de agir por puro respeito à lei moral. (KAN, apud ARAÚJO L. B. L., em http://ifcs.ufrj.rj.br/cefm/textos/LBARAUJ1.DOC) A consideração pelo "outro" também é presente em Umberto Eco, o qual enseja que a "dimensão ética começa quando entra em cena o ´outro´"
[x], justamente porque "toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com o ´outro´ que a impõe"[xi].

Pode-se usar os "outros" como meios para atingir o fim máximo do prazer, já que ao fazê-lo consente-se automaticamente em ser usado como meio para o fim de outrem, salienta Sade. Em contraponto, Eco comenta que algumas culturas aprovam a humilhação do corpo do "outro" porque restringem o conceito de "outro" somente aos que pertencem à comunidade - os da tribo são os "outros", os de fora deste círculo são "bárbaros", seres não humanos. (ECO, 2001, p. 84) Nota-se que ambos autores falam do grupo social, no qual cada sujeito tem noção do "outro".

Mas, se em Eco, o "outro" (membro da comunidade) é limite da vontade individual, o que justifica a violência contra os "bárbaros", Sade prega que se pode violar a autonomia do "outro", desde que este esteja dentro do círculo de iniciados, ou seja, pertença à philia dos luxurientos. O "outro" e o "bárbaro" são objetos de prazer para o exercício da luxúria, em Sade. Ademais, para pertencer à comunidade, o "outro" aceita tácita ou explicitamente a violação da sua autonomia, enquanto o "bárbaro" declara a sua não humanidade ao não aceitar ser utilizado como objeto para o prazer de um ou vários indivíduos. O "outro" é, simultaneamente, sujeito e objeto de direito, um meio para alcançar a liberdade resguardada pelo Estado Republicano sadiano.

Ser humano, para Sade, implica necessariamente em agir contrariamente a qualquer tipo de consideração pelo "outro", desde que haja consentimento para que o "outro" aja da mesma forma consigo. Todos, no círculo dos luxurientos, têm que dar vazão às suas energias, por meio da exaltação e concretização dos seus desejos, para se definirem como integrantes de uma sociedade totalmente livre de preconceitos de ordem moral ou religiosa.


4-) O PRAZER E A DOR


"A tortura é, como arte de descobrir a verdade, uma tolice bárbara; é a aplicação de um meio material a um fim espiritual." (Charles Baudelaire, Arabescos filosóficos, p. 32)



A otimização do prazer e a renúncia à dor são a tônica do utilitarismo. Os positivistas ingleses, como também são conhecidos, apregoam o prazer máximo, contraposto ao mínimo de sofrimento, como aquilo que justificaria todo seu sistema ético, em todas suas variáveis. Como ficaria, então, esta perspectiva diante de Sade, que demole as fronteiras entre o prazer a dor? Segundo Peluso, "o sadismo seria uma hipótese moralmente impossível, pois, não há forma de se obter prazer da dor própria ou alheia."
[xii] Quer dizer, para ser humano, se deve ser racional. Para ser moral, se deve ser racional e, portanto, humano. Seguindo esta argumentação, um adepto do sadismo, cultuador dos "prazeres baixos", seria um irracional, conforme Peluso.

Entretanto, há de se levar em conta aquilo que se considera moralmente certo ou errado na filosofia utilitarista, tal como o cálculo daquilo que vai levar mais prazer ao maior número possível de pessoas, em detração à menor quantia possível de sofrimento ao menor número possível de pessoas. Sobre isso, Lawrence e Charlotte Becker falam:

"Utilitarian sexual ethics can, in any event, be restrictive or permissive, depending on the truth of empirical assertions about the consequences of sexual behaviour (or about the consequences of trying to prevent sexual behaviours). In addition to depending on contestable notions if well-being, the empirical claims underlying utilitarian judgments are difficult to verify. Neverthless, a case can be made that a prima facie right to engage in sex do exist: the value of pleasure per se and its role in the good life, and the contribution shared pleasure makes to the value of personal relationships. Private, consensual sexual activity creates much good and, if harm to third parties, is avoided, no bad, and on this score would be blessed by utilitarianism."
[xiii]

Assim, é difícil verificar quais seriam os julgamentos válidos por um utilitarista devido à variabilidade de noções de bem-estar
[xiv] e, mesmo, daquilo que se concebe como prazer. O valor do sexo, por si mesmo, é bom e faz parte do bem-viver, conforme Lawrence e Charlotte Becker, portanto, estes prazeres, se compartilhados, têm um papel fundamental nas relações interpessoais, indiferentemente aos tipos de comportamentos sexuais "aceitáveis". No entanto, em total desatino com as convenções sádicas da philia luxurienta, argumentam que tais práticas sexuais, mesmo as "socialmente recriminadas", devem ser privadas e consensuais, não devendo, com seus atos libidinosos, prejudicar as pessoas não envolvidas no jogo erótico.


5-) CONCLUSÃO


"O homem, isto é, todos os homens são tão naturalmente depravados que sofrem menos pelo abaixamento universal que pelo estabelecimento duma hierarquia razoável." (Charles Baudelaire, Arabescos filosóficos, pp. 22-21)


Ao declarar o Estado como gerente da luxúria, Sade eleva-a ao status de dever, ou seja, transforma-a no fundamento de uma norma imposta objetivamente à observância de todos que, ao invocarem-na para si, reclamam "tutela jurisdicional" para a libertação de toda tradição judaico-cristã e a obtenção do prazer máximo. Se houver um conflito de interesses, será "juridicamente protegido" aquele que estiver sob o império da luxúria, pois, em vez da virtude baseada na natureza, em Deus, na razão, Sade salienta o plano físico e se apega na glorificação do vício, que deve exaltar a vontade individual, outrora amordaçada pela imposição de sentimentos de moralidade que possibilitaram a concentração do poder nas mãos do monarca.

Em Sade, o vício é a virtude e a negação de juízos morais, a chave para o bem-viver, sem remorsos ou amarras da consciência. A conclusão, para o libertino, é construir um outro sistema de valores que não negue a real essência humana - que se guia por prazeres, de todos os tipos, sendo, o prazer carnal ou material o mais importante - para que, finalmente, o homem possa ser livre em sua plenitude, como nunca fora antes. Desta forma, segundo Sade, ser feliz é viver em desacordo com a lei moral (na conceituação tradicional), acalentado por outras leis, que trarão outra ordem, mantida pela "jurisdição da luxúria".


BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. http://www.ifcs.ufrj.br/cefm/textos/LBARAUJ1.DOC. 1 maio 2001.
BECKER, Lawrence and Charlotte. Sexuality and sexual ethics. The encyclopedia of ethics. 2nd Edition. New York (USA): Garland Publishing Co., 1998.
http://www.uno.edu/~phil/BECKER.htm .
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno /O livro de Thel. Edição bilíngüe traduzida por José Antônio Arantes. São Paulo (SP): Iluminuras, 1987. Traduzido de The marriage of heaven and hell / The book of Thel.
ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro (RJ): Record, 2001. Traduzido de In cosa crede chi no crede?
NOVAES, Adauto (org). Ética. 1. ed. 3. reimpressão. São Paulo (SP): Companhia das Letras, 1994.
PELUSO, Luis Alberto (org.) Ética & utilitarismo. Campinas (SP): Editora Alínea, 1988.
SADE, Marques de. Filosofia na alcova. Tradução, prefácio e notas por Augusto Contador Borges. São Paulo (SP): Iluminuras, 1999. Traduzido de La philosophie dans le bodoir" (Les instituteurs imoraux).
[i] Parafraseando John RAWLS, em A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica, no livro Justiça e democracia, pp. 199-242.
[ii] SADE, Marquês de. Filosofia na alcova, p. 129.
[iii] Utiliza-se o termo "juridicamente protegido" pela falta de outro melhor que caracterize a institucionalização da luxúria, que lhe concede características de princípio gerador de uma norma.
[iv] Idem, ibidem, pp. 125-171.
[v] A moral como fator ineficiente para atingir a felicidade é descrita por Antônio Contador BORGES, tradutor de Filosofia na alcova, p. 227.
[vi] PESSANHA, José Américo. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética, p. 79.
[vii] BLAKE, Willian. O casamento do céu e do inferno / O livro de Thel, p.12. "Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência humana.
Desses contrários emana o que o religioso denomina Bem & Mal. Bem é o passivo que obedece à Razão. Mal, o ativo emanando da energia.
Bem é Céu. Mal é inferno."
[viii] Idem, ibidem, p. 13-14.
[ix] Para Sade, porém, o que torna o homem subserviente não é a razão, mas sim a moral e a religiosidade.
[x] ECO, Umberto. Quando o outro entra em cena. In: Em que crêem os que não crêem?, p. 83
[xi] Idem, ibidem.
[xii] PELUSO, Luis Alberto. Utilitarismo e ação social. In: Ética & utilitarismo, p. 19.
[xiii] BECKER, Lawrence and Charlotte. Sexuality and sexual ethics. In: The encyclopedia of ethics, http://www.uno.edu/~phil/BECKER.htm.
[xiv] Refere-se aqui bem-estar como well-being, levando em conta o indivíduo, e não como wellfare, de caráter economicista.

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