terça-feira, 20 de abril de 2010

Maquiavel, pai da filosofia política moderna


“Os homens esquecem mais facilmente a morte do pai do que a perda do patrimônio.” (Maquiavel, “O príncipe”, XVII)


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku

Nicolau Maquiavel (1469-1527) pode ser considerado o pai da filosofia política moderna. Ele estudava meticulosamente o homem e a sociedade tal como realmente eram, e não como deveriam ser. Ao verificar essa natureza humana e social, o estudioso dizia que a política tinha uma ética própria, diferente do que até então se pregava. Por constatar essa realidade, Maquiavel é tido até hoje como um pensador “maldito”, cujos ensinamentos muitas vezes podem ser associados com hipocrisia, falta de caráter, deslealdade e, quem sabe, até mesmo maldade. “Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e, diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos greco-romanos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real do seu tempo”, escreve Marilena Chauí (p. 368). “Partindo do pressuposto de que a natureza humana é capaz do mal e do erro, analisa a ação política sem se preocupar em ocultar ‘o que se faz e não se costuma dizer’”, completam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 237).
O polêmico autor foi funcionário público em Florença, na Itália, desempenhando função de conselheiro e diplomata. Testemunhou o nascimento dos estados absolutistas na França, Inglaterra, Espanha e Portugal, o retorno das cidades europeias – conta Chauí (p. 368). Porém, a Itália continuava dividida em ducados, principados, condados e Igreja. As teorias antigas e medievais não eram suficientes para compreender o cenário, nem de dar uma resposta para a unificação da Itália.
Em 1513, lançou “O príncipe”, a obra inaugural da nova filosofia política, que dedicou a Lourenço de Médici. Esse livro nem sempre foi bem compreendido e seria o responsável por lançá-lo no rol de autores malditos. “Essa obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando de lado a observação direta dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos”, explica Chauí (p. 368). “Maquiavel rejeitou as noções platônicas e aristotélicas do estado ideal como fantásticas e inatingíveis. Ele também acreditava que a infusão de um ethos cristão na mistura era impraticável e contraproducente”, complementa James Mannion (p. 69).


As rupturas propostas por Maquiavel



Maquiavel foi responsável por romper com a tradição do pensamento político anterior, eis os principais pontos demonstrados por Claude Lefort, segundo Chauí (p. 368-369):

“1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, natureza ou razão). Toda cidade, diz ele em “O príncipe”, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejos dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. (...) Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. (...);
2. Maquiavel não aceita a idéia de boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade ou da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade;
3. Maquiavel recusa a figura do Bom Governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtù, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado;
4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político – tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.”


O governo republicano

Ao contrário da noção que se tem no vulgo, Maquiavel enseja e diz ser possível a instalação do governo republicano. De acordo com Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 234), o florentino esboça a idéia de consenso no capítulo IX de “O príncipe”, ao discorrer da necessidade de o governante ter o apoio do povo, melhor que o apoio dos grandes, que, via de regra, são traiçoeiros. “Trata-se de uma mudança radical de enfoque, uma vez que as utopias costumam valorizar a paz de uma sociedade sem antagonismos, o que significa não reconhecer a realidade do mundo humano sem constante confronto. Ou seja, Maquiavel percebe que o conflito é um fenômeno inerente à atividade política, e que esta se faz justamente a partir da conciliação de interesses divergentes”, escrevem Arruda e Aranha (p. 237).
Ele defende que monarca, aristocratas e povo governem o Estado em conjunto, para que todas as partes se controlem, sob o império da Lei, visando a manutenção da república. Assevera Bignotto (p. 115): “Tanto os que criticam Maquiavel por separar ética da política quanto os que se esforçam em mostrar que ele não fez mais do que descrever o funcionamento dos Estados reais contentam-se em ver nele o criador da razão de Estado, e em pensar que o abandono dos parâmetros morais implica a volta a um estado de competição regulado unicamente pelo desejo de conquista.”
Por isso, é de suma importância que a Lei governe a república, e não o os interesses particulares dos governantes. Aí, ressaltou a antiga Roma como modelo. “Todos os primeiros capítulos dos Discorsi dedicam-se a mostrar que a República romana foi a encarnação dos mais elevados parâmetros políticos, que toda ação deve guiar-se pelas ações de seus grandes homens. Exemplaridade da cidade que se funda na exemplaridade da ação de seus cidadãos. O que faz de Roma, no entanto, o melhor regime possível? A resposta maquiaveliana se constrói ao longo de toda sua obra, mas podemos resumi-la a uma só palavra: liberdade”, explica Newton Bignotto (p. 119).


O leão e a raposa: virtù e fortuna



E quem deve ocupar o poder político e guiar o Estado? Uma pessoa habilidosa, asseverava Maquiavel: um mestre em conquistar e manter o poder. “Quando Maquiavel, no famoso capítulo XVIII, de “O príncipe”, descreve as qualidades que deve ter quem tem em mãos o destino de um Estado, afirma que esse alguém deve combinar ao mesmo tempo as qualidades do leão e da raposa, isto é, força e astúcia: são duas qualidades que nada têm a ver com o fim do bem comum, mas concernem exclusivamente ao objetivo imediato de conservar o poder, independentemente do uso público ou privado que desse poder o governante demonstre fazer”, escreve Norberto Bobbio (p. 219)
A conquista e a manutenção do poder são uma coisa. O bem comum é outra coisa, salienta-se. Para a primeira tarefa é preciso ter virtù (virtude, no sentido grego de força, virilidade) e fortuna (sorte, ocasião, acaso), porém, não no sentido cristão, mas numa concepção mais realista e visceral. “Não se trata, portanto, do príncipe virtuoso, bom e justo, segundo os preceitos da moral cristã, mas sim daquele que tem a capacidade de perceber o jogo das forças da política, para então agir com energia a fim de conquistar e manter o poder. Aliás, o príncipe de virtù não deve se valer das normas preestabelecidas da moral cristã, pois isso geralmente pode significar a sua ruína”, comentam Aranha e Arruda (p. 234).
O caráter do príncipe (ethos) deve variar conforme as circunstâncias, no intuito de sempre se manter o senhor delas. Essa flexibilidade marca a virtú do príncipe de Maquiavel. “Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em algumas, ser inflexível”, diz Chauí (p. 370)
Para agarrar a fortuna, é preciso ter virtù. O acaso favorável é conquistado por aquele que tiver habilidades suficientes, inclusive para dobrá-lo ou vencê-lo. Ter fortuna sem ter virtù é oportunismo. No entanto, na impossibilidade de se ter todas as virtudes, é necessário, porém, aparentar tê-las, assinala Bignotto (p. 115): “Ao afirmar, por exemplo, que a um príncipe não é necessário possuir todas as qualidades, mas é necessário parecer tê-las, ou que as violências devem ser feitas todas ao mesmo tempo, a fim de que seu gosto, persistindo menos tempo, ofenda menos, Maquiavel parece sugerir que a boa ação política não deve levar em conta valores que sejam incapazes de garantir seu sucesso, mas apenas o que conduz à meta desejada, que, no caso dos príncipes, é a manutenção do Estado.”


Religião, ética e política

Alguns interpretam que Maquiavel separou radicalmente ética (e religião) da política. No entanto, há de se fazer os devidos comentários para se evitar juízos precipitados. Maquiavel constatou que a lógica política é diferente da ética dos sujeitos em suas vidas particulares. O que é tido como virtuoso para o público é aquilo que tem efeitos benéficos para a República. Dessa maneira, o que pode ser considerado virtuoso na política pode não ser considerado virtuoso no privado. E vice-versa. “Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos”, ensina Chauí (p. 370). “O que Maquiavel descobre, portanto, não é a independência da ética e da política. A história romana prova o contrário. O que ele mostra é que nas fronteiras do político, onde a ética e a religião fracassam, continua a existir uma forma de governo que conserva elementos fundamentais de todas as outras. (...) Maquiavel aponta os limites da ética cristã mostrando que ela é incapaz de guiar os homens na construção de uma república virtuosa”, completa Bignotto (p. 125).
A política tem uma ética própria, diferente da ética cristã e da ética dos gregos antigos. A ética na política de Maquiavel não é parada, imóvel. Ela se movimenta segundo aquilo que é o melhor para a comunidade. “Para Maquiavel, portanto, a avaliação moral não deve ser feita antes da ação política, segundo normas gerais e abstratas, mas a partir de uma situação específica e em função do resultado dela, já que toda ação política visa a sobrevivência do grupo e não apenas de indivíduos isolados. (...) Ele enfatiza que os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os fins coletivos”, escrevem Aranha e Arruda (p. 236).
Tendo em vista a priorização do público em detrimento do coletivo, Maquiavel elabora a máxima “os fins justificam os meios”. José Reginaldo Inácio (p. 81) explica: “As ações que movem as discussões acerca dos resultados, tanto para Maquiavel quanto para os negociadores – indistintamente sindicalistas, gerentes, políticos, patrões, juízes, etc – fazem dos meios apenas instrumentos que são úteis conforme o fim a que almejar. As discussões às quais predispõem suas ações, de certo modo dão conta de que os fatos da vida são os únicos argumentos válidos. É nessa firme posição que a teoria maquiaveliana se mostra sustentada, uma vez que ao tratar dos meios, só haverá relevância se o fim for alcançado, caso contrário, o meio, ainda que conduzido por condutas éticas, estará invalidado. A invalidade do meio não significa a desaprovação da conduta enquanto valor moral, mas sim o resultado em si, se insatisfatórios.”
O importante, então, é o resultado. Maquiavel inaugura uma filosofia política real, centrada naquilo que o homem é, e não no que deveria ser. E toda política teria um conjunto de normas e valores morais diferentes daqueles que eram impostos pela cristandade. É um novo mundo, o da prática, dos resultados. A teoria e a reflexão ético-filosófica ficariam, de certo modo, relegadas a segundo plano.




Leia mais:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. 3. rev. São Paulo: Moderna, 2003.
BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 113-125.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.
INÁCIO, José Reginaldo. Ética, Sindicalismo e Poder: os fins justificam os meios? Belo Horizonte: Crisálida, 2005.
MANNION, James. O Livro Completo da Filosofia: entenda os conceitos básicos dos grandes pensadores: de Sócrates a Sartre. 5. ed. São Paulo: Madras, 2008.

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