Prof. Ms. Roger Moko Yabiku
As teorias do “contrato social”[1], como as de John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804), têm como componente essencial a idéia de que a sociedade política (ou civil) seria um ente artificial originado de um acordo geral realizado por pessoas livres e iguais. Embora alguns desses autores modernos ainda não se tenham desvinculado totalmente do “divino” (para justificar, em última instância, o que é justo e o que é injusto, diante do referencial dos Direitos Naturais, por exemplo), percebe-se que o homem – o ser humano – passa a ser o regente do seu destino, pois é o agente principal das transformações no mundo temporal. O contrato social é o pacto em que o homem forma a sociedade e delega o poder a um terceiro (ou representantes), o Estado soberano ou o corpo político, por meio de uma justificação racional. Entretanto, o que é o contrato social e como ele se aplica a nossos dias? Quais suas implicações com a justiça e com a formação de uma Constituição que reconheça e garanta, igualmente, direitos e deveres fundamentais, tanto no plano normativo quanto no plano substantivo?
Nos dias atuais, o contrato social não é apenas um pacto para a formação da sociedade política e de justificação do poder político. Requer a solução de outros problemas para resolver materialmente as deficiências sociais. A defesa da liberdade acompanha uma reivindicação por justiça nas sociedades políticas democráticas açoitadas pelas desigualdades (violências num plano sofisticado). Verificam-se desigualdades de status (sobre quem é ou não membro, ou sobre como participar da sociedade política, perante a distribuição de direitos, deveres e privilégios); desigualdades de prestígio (quem tem poder de influenciar as decisões importantes); desigualdades de fortuna (diferenças socioeconômicas, que dividem as classes sociais, um obstáculo material para a efetiva liberdade dos menos favorecidos); e diferenças de poder (representantes políticos e agentes da máquina estatal podem elevar-se acima dos anseios do povo, apesar de serem portadores de um mandato provisório).[2] Essas desigualdades são inevitáveis e sua eliminação ou atenuação não são impossíveis. Um regime democrático, se realmente está preocupado com a justiça, deve conciliá-la com a liberdade e procurar evitar essas desigualdades.
Para Christian Delacampagne (1948-), “pensar a ‘justiça’ no centro da democracia equivale a pensar, simultaneamente, o conceito de ‘igualdade’ e o de ‘contrato’”[3], embora não seja tão simples mostrar as conexões entre essas três concepções. Segundo ele, a igualdade é essencial para garantir a justiça e a justiça é o meio de perpetuar a igualdade, de acordo com esse raciocínio:
“Ambas pressupõem, além disso, o estabelecimento de ‘contratos’. Com efeito, a igualdade é o que resulta de um contrato feito entre A e B, pois, se estes aceitaram assinar esse contrato livremente e de comum acordo, fizeram-no com a finalidade de instituir entre si uma relação mútua, na qual cada um deles encontra uma vantagem igual. E a justiça é aquilo pelo qual, ou em vista do qual, os contratos são assinados, pois, pelo simples fato de que são assinados, A e B se comprometeram a não exigir, doravante, mais do que a parte que lhes é devida em virtude do contrato. A idéia segundo a qual uma comunidade desejasse fazer reinar no seu seio a igualdade, a justiça, e por conseguinte a democracia, deveria ser fundada sobre um contrato não é portanto muito original. Todavia, não é uma idéia ‘evidente’ na medida em que pressupõe, por sua vez, uma hipótese prévia: o caráter ‘artificial’, não ‘natural’, da sociedade política.” (Delacampagne, 2001, p. 88)
Linhas básicas do contratualismo moderno
Embora tenha raízes na Grécia antiga, a tradição do contrato social, seja histórico ou hipotético, sedimentou-se na idade moderna, com as obras de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), Locke, Rousseau e Kant, vindo a influenciar, sobremaneira, o pensamento político e as democracias constitucionais até os nossos dias. As teorias contratualistas modernas, surgidas num horizonte de ruptura com a visão teocrática de mundo, colocaram o homem no centro das discussões como agente e planejador da sua vida, seja no âmbito particular ou no âmbito público. Ou seja, o contratualismo “inaugurou um debate que até hoje perdura, na prática e no conhecimento político, acerca do ideal da razão como orientação para o comportamento político, e do acordo entre os indivíduos como fundamento da legitimidade do Estado”[4]. Em muitos casos, recorreu-se à figura divina ou mesmo à religião, entretanto, isto o foi realizado dentro de um prisma racional, e não mais teológico. Freqüentemente estes autores citaram termos como “estado de natureza”, “estado de guerra”, “Estado Civil” e “contrato social” como recurso para explicar a formação da sociedade política, cujo princípio legitimador repousaria, conforme esta doutrina, no consenso entre seres humanos livres e iguais, que teriam direitos (naturais), anteriores até mesmo à formação do Estado, cuja inviolabilidade estaria intrínseca à qualidade humana. Paradoxalmente, não houve um consenso entre os autores contratualistas clássicos acerca destes termos, assim como a abrangência das suas concepções e da racionalidade das pessoas, embora todos manifestassem “uma busca de garantias básicas para o exercício da liberdade, tratando de especificar as regras e processos instrumentais do ordenamento político que consideraram adequados para tal objetivo” [5], como será visto ao longo deste texto.
Em geral, os contratualistas modernos eram pensadores que tinham, em maior ou menor grau, crença na autonomia do indivíduo e numa série de “Direitos Naturais”[6] (jus naturale) que lhes seriam inerentes. O jusnaturalismo marcou passagem na Antiguidade Clássica, mas foi na Idade Moderna, entre os séculos XVII e XVIII, que mais se desenvolveu e se difundiu entre os círculos intelectuais. A obra marco do jusnaturalismo moderno foi “De iure belli ac pacis”, de 1625, de autoria de Hugo Grotius (1588-1625). O cessar da predominância desta corrente de pensamento, ao contrário do seu início, não teve uma data clara. Sabe-se que uma das causas da sua decadência foi o historicismo jurídico, da Alemanha, principalmente, após a publicação de “Ueber die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechtes”[7], em 1802, do então jovem Georg. W. Hegel (1770-1831), que submeteu a uma crítica tanto o jusnaturalismo quanto as filosofias do Direito de Grotius, Kant e Fichte, explica o italiano Norberto Bobbio (1909-2004).[8]
De acordo com Hans Kelsen (1881-1973), a doutrina do Direito Natural, ou jusnaturalismo, tinha a pretensão de encontrar uma resposta que pudesse dar fim aos questionamentos quanto à definição de justiça e do seu alcance, naquilo que apontaria e daria delimitações do que é certo e do que é errado, com base numa possibilidade de se avaliar quais seriam as condutas humanas naturais e as não-naturais. As primeiras teriam correspondência com a natureza, pois estariam em conformidade com ela. As segundas, contrárias à natureza e, portanto, proibidas por ela.[9]
Kelsen classificou a doutrina do Direito Natural como uma ideologia, ou seja, “uma justificação racional de um postulado baseado num julgamento subjetivo de valor”[10]. Daí, seu caráter teleológico, pois previa um “ordenamento definitivo” da conduta humana, oriundo da natureza, da razão humana ou da divindade. Conforme essa doutrina, tal ordenamento seria superior, anterior, mais válido e justo que o Direito Positivo. As Leis Naturais seriam conseqüência da vontade de Deus, que se espelharia, por conseguinte, na natureza e nas regras que a regulam. O Direito Positivo seria a expressão de um ato de vontade de um legislador constituído como autoridade humana.[11]
Na interpretação de Bobbio, para os juristas-filósofos – Pufendorf, Thomasius e Wolff -, o Direito Natural dispunha de princípios de Direito Público e de Direito Privado (mais deste que do primeiro). Por sua vez, os três grandes do contratualismo moderno – Hobbes, Locke e Rousseau – utilizaram-se do Direito Natural para enfatizar questões mais de Direito Público, cuja principal preocupação era a fundamentação e a justificação da natureza do Estado.[12] Havia, então, uma doutrina jurídica e uma doutrina política do contratualismo moderno, mas ambas convergiam num princípio de unificação para o estudo do Direito, da ética e da filosofia prática, que se dava num método[13]:
“O método que une autores tão diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve permitir a redução do Direito e a moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa. Em outras palavras: tanto os seguidores quanto os adversários consideram-se autorizados a falar de ‘escola’ enquanto esta constitui uma unidade não ontológica, não metafísica nem ideológica, mas sim metodológica. A melhor prova disso, de resto, é o fato de ter prevalecido o uso (pelo menos a partir da crítica da escola histórica) de chamar o Direito Natural moderno de ‘Direito Racional’: temos aqui um indicador do fato de que aquilo que caracteriza o movimento em seu conjunto não é tanto o objeto (a natureza), mas o modo de abordá-lo (a razão), não um princípio ontológico (que pressuporia uma metafísica comum que, de fato, jamais existiu), mas um princípio metodológico.” (Bobbio & Bovero, 1994, p.15-16)
A proteção do indivíduo contra a autoridade também encontrou justificativas na teoria do Direito Natural. O poder do Estado seria limitado externamente, pois haveria uma esfera que não estaria sob domínio do príncipe, cuja vontade era a fonte do Direito Positivo de então. Esses limites estariam delineados pelos Direitos Naturais, que seriam de todos os indivíduos, devido ao caráter da sua natureza humana, seja ou não participante de uma determinada sociedade política. “Esses direitos são Direitos Naturais que, preexistindo ao Estado, dele não dependem, e, não dependendo do Estado, este tem o dever de reconhecê-los e garanti-los integralmente. Os Direitos Naturais constituem, assim, um limite ao poder do Estado, pois este deve reconhecê-los e não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos cidadãos seu livre exercício.”[14] Esse suporte, para a doutrina contratualista, serviu para defender o Estado Liberal. No entanto, também fundamentou o Absolutismo, conforme visto na teoria hobbesiana[15], na qual os indivíduos despojar-se-iam voluntariamente de certos direitos em prol de um terceiro, por um pacto.
Quer seja encarada como princípio metodológico, nas palavras de Bobbio, ou como “ideologia”, conforme situou Kelsen, a doutrina do Direito Natural serviu como ponto de partida para que os contratualistas modernos investigassem a respeito da formação da sociedade política e da autoridade estatal, tendo como foco originário os atos da vontade humana. Os seres humanos, dotados de uma série de direitos fundamentados pela razão, encontrariam uma maneira de conviverem pacificamente ou de evitarem a destruição. Essa série de “convenções” visando à coletividade, a partir das decisões convergentes de simples membros da sociedade, ficou conhecida como “contratualismo”. O poder político não seria mais fundamentado na vontade divina ou na tradição, mas no acordo de vontades entre seres livres e iguais.
David Boucher e Paul Kelly dividem o contratualismo em três categorias: contratualismo moral, contratualismo civil e contratualismo constitucional. Em termos gerais, o contratualismo moral baseia-se na tese de que a moralidade é extraída de princípios baseados nos interesses dos indivíduos que refreiam seus comportamentos para maximizar interesses. O contratualismo constitucional invoca a Idade Média, na qual se entendia que as relações entre governante e governado eram pactos implícitos ou explícitos, que continham as cláusulas com os direitos e deveres dos contratantes.[16] Dentre estas categorias, a que nos interessa nesta discussão é o contratualismo civil.
Para os contratualistas civis – Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Rawls e Nozick, por exemplo – a questão primordial do acordo não seria necessariamente criar “moralidade”, mas instituir obrigações morais ou políticas, por meio de restrições morais e racionais nas condutas, que “não são meramente resultados de preferências, mas que são consolidadas, expandidas ou transformadas pelo contrato social”[17]. O contrato social, segundo os contratualistas civis, fixa as obrigações morais e políticas, não como conseqüência da vida em sociedade, mas como resultado e ratificação da Lei Natural da nossa racionalidade e sociabilidade[18], conforme exposto anteriormente, sendo ainda um pacto para estabelecer as regras entre seres humanos livres e iguais, elaboradas por eles mesmos.
Além da Escola Histórica, inaugurada por Hegel, outros críticos importantes do contratualismo foram os utilitaristas.[19] De acordo com Luis Alberto Peluso, o utilitarismo foi a primeira escola de pensamento anglo-americana e também ficou conhecido como moralismo britânico, pensamento radical, liberalismo clássico, ou, ainda, positivismo inglês. Esta vertente filosófica, segundo Peluso, teria sido fundada por Jeremy Bentham, um dos seus principais representantes. Em termos gerais, o utilitarismo defende que as ações individuais e as ações sociais são regidas pelo princípio da utilidade, cujo objetivo seria promover a maior felicidade para o maior número possível de pessoas, procurando, igualmente, minimizar o sofrimento. [20] Podemos verificar que para os utilitaristas, conforme Peluso, a tensão entre o indivíduo e o coletivo tem outra dimensão. Os interesses coletivos, ou públicos, nada mais seriam que o resultado conjunto dos interesses individuais, segundo o princípio da utilidade, em que a ação humana é motivada pela busca do prazer e pela fuga (ou eliminação) da dor:
“Nessa formulação, esse princípio deixa acentuado o caráter individual dos motivos ou forças que compelem os seres humanos à ação. Contudo, a interpretação desse princípio não pode ser dissociada da tese de que a utilidade, ou seja, a propriedade em virtude da qual algo pode produzir vantagens ou prazer existe nas coisas, pertencendo, portanto, ao mundo objetivo existente independentemente do sujeito moral. Além disso, há que se considerar a tese de que a comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas individuais. Dessa forma o interesse coletivo, ou a utilidade pública é apenas a soma dos interesses dos diversos membros que integram a comunidade.” (Peluso, 1998, p. 17)
Para os utilitaristas, os Direitos Naturais seriam apenas um disfarce para as aparências pessoais, pois não envolveriam certa evocação a um padrão externo, diz Philip Schofield.[21] Com essa argumentação, armou-se o ataque à doutrina contratualista de sustentação do Governo, que, em certa medida, tem na teoria dos Direitos Naturais (ou Direito Natural) a sua justificativa. No entender dos utilitaristas, a doutrina dos Direitos Naturais e o contratualismo teriam implicações radicais e anárquicas, que deveriam ser evitadas. Daí, a opção dos utilitaristas, alega Schofield, ao positivismo jurídico,[22] que teria o mérito de propiciar melhores Leis, “aquelas que fossem mais capazes de produzir a felicidade da comunidade em geral, e seria o dever dos legisladores fazerem a felicidade do povo os seus objetos”[23].
Os comentários de Bentham se resvalaram contra o contratualismo constitucional, de acordo com a classificação de Boucher e Kelly. Vejamos um exemplo, em conformidade com a conceituação que expusemos anteriormente: um acordo celebrado entre o povo e o rei, o primeiro promete obediência geral ao segundo, o segundo promete governar o primeiro, desde que este seja subserviente à sua felicidade. Mas e se uma das partes desrespeitasse o acordo original? Haveria necessidade de uma sanção, caso o inadimplente fosse o povo. E os reis só seriam obedecidos se governassem de modo a evitar o sofrimento do povo. Então, ao ver dos utilitaristas, a figura do acordo original, ou contrato social, não seria tão necessária ou tão fundamental assim (ou configuraria apenas mais um engenhoso artifício de ficção, próximo talvez, de uma realidade), porque a promessa que vincularia todos os contratantes não dependeria simplesmente de ter sido firmada, mas da sua utilidade, um princípio que forneceria uma razão única e suficiente para qualquer tipo de prática:
“A única razão para os homens respeitarem suas promessas seria que eles assim devem fazer posto que isto é vantagem para a sociedade, e nesse sentido a punição deveria ser empregada para fazê-los se comportarem de certa forma. Esta seria a mesma razão pela qual os reis deveriam evitar medidas em detrimento da felicidade de seus súditos e porque os súditos deveriam obedecer seus reis desde que eles se conduzissem nesse sentido – e acrescentou Bentham, ‘não mais que isto; porque eles devem obedecer desde que os prováveis prejuízos da obediência sejam menores do que os prováveis prejuízos da resistência: porque, em uma palavra, considerando todos juntos, é seu dever obedecer, desde que isto seja o seu interesse, e não mais do que isto’. Assim, seria desnecessário dizer que o rei prometia governar de uma certa forma, e que os súditos prometiam obedecer desde que ele continuasse a fazer isso. Certamente, que não existiria o dever de respeitar a promessa que resultasse em prejuízo. A validade de uma promessa não depende unicamente do fato de ter sido feita, mas, em vez disto, de sua utilidade.” (Schofield, 1998, p. 153)
Feito um pequeno intervalo para situarmos as críticas dos utilitaristas ao contratualismo e à doutrina do Direito Natural, retomemos o tema principal deste tópico. Como salientou Bobbio, para alguns jusfilósofos adeptos do contratualismo, o Direito Natural dispunha sobre princípios de Direito Público e de Direito Privado. Entretanto, o objetivo deste estudo não recai sobre normas que regulam as relações cotidianas entre os particulares, em situação de coordenação (Direito Privado), mas sobre as normas de caráter público – incluindo a relação de subordinação dos cidadãos ao Estado (ou como “terceiro” imparcial) – analisando a tensão entre o individual e o coletivo, tal como o papel do Direito Positivo neste processo.
Dos contratos ao contrato social: Johannes Althussius
Começaremos nossa breve explanação pelo pioneiro do contratualismo, o calvinista alemão Johannes Althussius (1557-1638). Os países europeus do tempo de Althussius passavam por revoluções antiabsolutistas, que dariam origem aos Estados Modernos. Inspirado pela revolução vitoriosa que desembocou na libertação dos holandeses do Império Espanhol, ele reformulou a doutrina absolutista, praticamente invertendo-a. Os monarcas, ou governantes, em geral, não mais teriam o “direito divino” sobre as vidas dos seus súditos ou governados. Pelo contrário, teriam o dever de zelar pelas vidas e necessidades comuns dos seus súditos e governados. Essa aliança seria renovada: “Althussius defendia a tese de um ‘contrato original’ entre o povo e seu governante livremente eleito (...) que deveria ser reafirmado, sempre, nas eleições de governos posteriores. Ou seja, condicionava o direito de sucessão ao consentimento dos governados. Explícita nesse contrato está a aliança com Deus, que obriga o governante a proteger a religião do seu povo, e o povo por sua vez a resistir ao governante que não faça isso.”[24]
Para Althussius, antes do contrato original – para formação do Estado-Nação – seriam necessários contratos em menor escala para regular a comunidade local, através de leis internas fundamentais, que incluíssem os indivíduos, as famílias e as corporações civis. Os contratantes do pacto original eram as províncias e as cidades, que eram constituídas de outros pactos de associações privadas (corporações), que eram, por conseguinte, oriundas de pactos entre famílias, que seriam fruto dos pactos entre os indivíduos. Nessa seqüência, montar-se-ia uma pirâmide acumulativa e sucessiva de contratos. Althussius já observou o caráter da especialização do trabalho e a importância da sociedade humana, na qual os homens são tidos como “simbiontes”, co-trabalhadores, cuja associação unificada por um acordo teria como fim a vida confortável da alma e do corpo, partilhada em comum, envolvendo bens, serviços e direitos comuns. [25] Nesta primeira etapa do contrato social, os seres humanos chegaram à conclusão que cada um deveria comprometer-se à solidariedade mútua, com igualdade de liberdade nas deliberações, firmando um “pacto de associação” (pactum societatis), no qual a “multitudo” se converteria num “populus”.
No contrato original, a autoridade política era delegada ao “supremo magistrado”, o governante máximo. Contudo, tratava-se de uma delegação condicionada, pois esse Governo só estaria legitimado se houvesse consentimento popular. O Governo, nas palavras do próprio Althussius, seria mantido pelo domínio e pela subordinação. Após o “pacto de associação”, seria firmado o “pacto de submissão” (pactum subiectionis), inaugurando o poder político, contando com a premissa inicial de que todos prestam compromisso de obediência à autoridade constituída, convertendo um “populus” numa “civitas”.[26] Sobre esses dois pactos distintos, porém, unificados, Bobbio definiu:
“1-) o pactum societatis. É o contrato por meio do qual os indivíduos isolados que vivem no estado de natureza, decidindo abandonar esse estado, instituem uma convivência regular entre si. Os sujeitos do acordo são os próprios indivíduos; o fim é a convivência pacífica. Através desse primeiro contrato uma multidão dispersa torna-se populus.
2-) o pactum subiectionis. É o contrato pelo qual os indivíduos que já constituem uma sociedade, como populus, decidindo oferecer uma estrutura estável mediante a organização de um poder coercitivo sobre a sociedade constituída, instituem aquela forma particular de sociedade, seguindo uma estrutura hierárquica, que é o Estado. Os sujeitos desse novo contrato são, de um lado, o populus, e, por outro lado, a pessoa ou as pessoas às quais é confiado o poder supremo. Com esse segundo contrato os indivíduos buscam a garantia de vida, dos bens e das pessoas, que somente por meio de um poder supremo provido de força coercitiva torna-se eficaz, em troca da submissão e da obediência. O pactum subiectionis é, em outras palavras, o pacto com o qual o povo e soberano estabelecem os recíprocos direitos e deveres.” (Bobbio & Bovero, 2000, p. 44)
Hobbes: do estado de natureza para o Estado Civil
O inglês Thomas Hobbes, por sua vez, não utilizou a figura do duplo contrato. Em sua teoria, havia somente um contrato social (pactum unionis), que marcava a passagem do estado de natureza (de guerra) para o Estado Civil e tinha como objetivo a preservação dos indivíduos contra a violência recíproca, através do medo da morte violenta. Numa sociedade, as associações são contratadas voluntariamente e os componentes têm como objetivo um bem. À primeira vista, à semelhança de Althussius, os homens se associam para o ganho ou para a glória, pelo amor que têm de si mesmos e não pelo amor do próximo. Mas essas sociedades não perduram, pois a glória se é de um é de todos, ou seja, “cada homem vale o quanto vale por si, sem a ajuda dos outros”[27]. A chave para as sociedades duradouras provém do medo que cada um tem do outro. Esse medo recíproco espelha a igualdade natural humana.
O Direito Natural, segundo Hobbes, consistia numa liberdade sem impedimentos exteriores, que cada indivíduo teria para proteger sua vida, com julgamentos e raciocínios que considerasse corretos para este fim.[28] Todo homem tinha o direito de julgar o que é necessário à sua própria preservação, incluindo o juízo que outro homem tinha sobre este assunto. A liberdade no estado de natureza era praticamente ilimitada; todos tinham direito a tudo, mesmo que isso implicasse seguir em conflito com quem julgasse necessário, para desfrutar ou usar o que quisesse. Nesse estado de natureza, “a medida do direito está na vantagem que for obtida”, mas esse direito de tudo a todos seria inútil, pois haveria incidência dos desejos de muitos sobre um único objeto, causando discórdia e violência.[29]
O estado de natureza, em Hobbes, era a situação em que se encontravam os homens antes da sociedade civil. Uma guerra de todos contra todos, na qual um contesta o outro pela força, seja nas palavras ou nos atos. A paz seria o tempo em que não se estivesse em estado de guerra. A paz seria momentânea, pois a guerra seria um estado perpétuo pela sua própria natureza e pela igualdade natural dos homens, que poderia ser colocado em estado latente pela vitória de uma das partes; porém, a ansiedade do derrotado em virar a mesa estaria esperando o momento certo para o contragolpe. O início da associação humana, para Hobbes, estaria no medo de uns contra os outros. Seria mais vantajoso congregar associados (fellows), porque – em hipótese de guerra -, que o conflito não se estendesse contra todos e que houvesse algum auxílio (possibilidade de alianças) contra o “inimigo”, pelo menos. A conservação dos homens em estado de natureza não podia ser duradoura pelo fato de todos os homens possuírem poderes iguais.[30]
Hobbes diferenciou o Direito Natural (jus naturale) da Lei Natural[31] (lex naturalis). A segunda, em contraposição ao primeiro, é delimitada dentro de um contexto, que permite fazer ou obrigar, ao contrário do Direito - a liberdade de fazer ou omitir. Em suma: “Aqueles que fazem voto de alguma coisa contrária à Lei Natural fazem voto nulo, pois cumprir tal voto seria injustiça. Se uma coisa for ordenada pela Lei Natural, não é voto, mas lei, que os vincula.”[32] A Primeira Lei Natural, ou preceito da reta razão, para o autor inglês, dispunha que os seres humanos deviam empenhar-se pela paz, dentro das esperanças que tiver para alcançá-la. Se isso não fosse possível, que se preparassem para a guerra, usando toda ajuda e vantagens. Como se vê, o Direito Natural não foi ignorado, foi incorporado nos seguintes termos: cuidar da própria defesa por todos os meios possíveis.[33]
A Segunda Lei Natural foi o moto originário da Primeira Lei Natural. Implicou em desistir do direito a todas as coisas, privando-se da liberdade de negar a outrem o seu próprio direito à mesma coisa. A desistência do direito poderia ser por renúncia (não se leva em consideração em favor de quem será transferido o direito) ou por transferência (beneficia-se determinada pessoa ou grupo de pessoas). Há uma classe de direitos que não poderiam ser renunciados ou transferidos (mesmo como ato de vontade, que exija, em contrapartida, um outro direito), como o direito à própria vida e autodefesa. Começamos a notar o caráter contratualista da teoria de Hobbes, que conceitua o contrato como a transferência mútua de direitos[34] , como forma de regulação de comportamentos.
Trata-se do velho brocardo latino “Pacta sunt servanda” (pactos devem ser cumpridos) a Terceira Lei Natural de Hobbes[35]. No entanto, haveria mácula de nulidade se pairasse desconfiança com relação ao cumprimento dos contratos, o que ocorreria no estado de natureza (guerra), pois se um cumprisse sua parte, não se teria certeza (garantia) quanto à contrapartida do outro. Hobbes chegou então à conclusão de que seria preciso uma força superior, no plano humano, que evitasse que os homens quebrassem os vínculos obtidos com suas promessas e não cedessem aos seus próprios interesses egoístas. Esse temor da promessa não cumprida só seria possível se houvesse um poder que coagisse os inadimplentes, o Estado Civil.[36]
A Lei Natural - apesar de oriunda da reta-razão - não tinha o caráter coativo, pois não emanava do Estado. Só a Lei Civil[37], elaborada pelo soberano em Poder do Estado, poderia compelir os homens ao cumprimento das obrigações. Os homens devem obedecê-la por fazerem parte de um Estado, a persona civitatis. Podemos dizer que as Leis Naturais não eram Leis propriamente ditas, mas princípios, pois não eram produzidas pelo Estado. Só o seriam se fossem declaradas Leis pelo mesmo. A Lei Civil apenas positiva a Lei Natural, ou nas palavras de Hobbes: “A Lei Civil e a Lei Natural não são gêneros, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil e a outra não é escrita e se chama natural. O Direito Natural, isto é a liberdade natural do homem, pode ser limitado e restringido pela Lei Civil.”[38]
A interpretação mais comum é a de que Hobbes, em suas principais obras - “Do cidadão” (1642) e “O Leviatã” (1651) -, justificou a formação e a permanência de um Estado Civil absolutista. Podemos dizer isso porque, em Hobbes, a Lei Civil vincula todos que estão sob o manto de um Estado, exceto o soberano, seja um homem ou uma assembléia, que só está obrigado perante si mesmo. Hobbes detalhou a formação do Estado Civil no capítulo XVII de sua célebre obra “O Leviatã”. No estado de natureza, as paixões desenfreadas levariam os homens inevitavelmente ao estado de guerra, pela ausência de uma “força invisível”, que causasse temor diante da quebra de barreiras. As Leis Naturais seriam contrárias às paixões, mas insuficientes para que houvesse confiança, exceto na própria força e capacidade, na luta de todos contra todos. Mesmo a concórdia de muitas pessoas não seria suficiente para formar e sustentar uma sociedade. Os homens deveriam ser forçados a isto pelo medo comum, pois entre eles – ao contrário dos animais – há: disputa por honra e precedência; insatisfação com o aquilo que anteriormente considerava bom para si e, daí, persegue também a coisa de outrem; uma situação de discórdia, que pode levar à guerra civil, porque, na multidão, uns consideram-se melhores que os outros, portanto, mais “merecedores” que os demais; a maledicência; a incapacidade de muitos de compreender a injúria e o dano. A formação de uma sociedade humana (civil), ao contrário do que pretendia Aristóteles, não é natural – como das criaturas brutas (os animais) -, mas artificial, acertada num pacto.[39]
Esse consentimento deveria ser reforçado pela união dos contratantes, na qual todos os direitos de todos os homens fossem transferidos a um só. Para que houvesse um acordo entre as vontades dos homens, era preciso que eles submetessem sua vontade a outrem (um indivíduo ou um conselho), que representasse a vontade única de todos na deliberação sobre o que deveria ser feito ou omitido. E que do deliberado pelos conselheiros[40], uma vez escolhidos por todos, estes se não poderiam opor às decisões. Isso era a união, conforme Hobbes:
“Embora a própria vontade não seja voluntária, mas apenas o começo das ações voluntárias (pois queremos o agir e não o querer), e por isso seja que todas as coisas a que menos pode ser objeto de deliberação e pacto, contudo aquele que submete sua vontade à vontade de outrem transfere a este último o direito sobre sua força e suas faculdades – de tal modo que, quando todos os outros tiverem feito o mesmo, aquele a quem se submeteram terá tanto poder que, pelo terror que este suscita, poderá conformar as vontades dos particulares à unidade e à concórdia.” (DC, V, § 7, p. 96)
Dessa união (pactum unionis), formou-se uma cidade, uma sociedade civil, uma pessoa civil, ou melhor, o “Leviatã”, o deus mortal a quem, abaixo do Deus Imortal, deveríamos nossa paz e defesa[41]. O representante do “Leviatã” era o soberano - que detinha poder absoluto sobre os súditos. O poder soberano era adquirido por aquisição ou por instituição. Na primeira alternativa, ocorria a submissão pela força, cuja recusa implicava na destruição dos resistentes. Na segunda, que mais nos interessa neste estudo, o poder soberano seria adquirido por instituição: havia concordância entre os homens de se submeterem a uma pessoa, ou uma assembléia, por sua vontade própria, para serem protegidos contra todas as adversidades. Todos deviam obediência a estes representantes, os que lhes votaram favoravelmente e os que votaram contra, já que aqueles estariam autorizados a realizar atos e tomar decisões como se fossem os próprios eleitores. Uma vez instituído o Estado Civil, não podiam os contratantes celebrar um pacto de submissão a outrem, sem permissão do soberano, assim como os pactos anteriores não teriam validade se contradissessem o pacto atual. O soberano está acima dos contratantes e não é parte no contrato social. Se fosse parte, teria que contratar com todos os súditos, com toda a multidão, e estaria vinculado às cláusulas do contrato, o que colocaria em risco sua soberania.[42]
Locke: a origem do poder somos nós mesmos
A teoria do inglês John Locke vislumbrou também a formação e justificação do Estado pela metodologia do contrato social, porém, com algumas diferenças, que o tornaram mais “palatável” a um regime democrático republicano, como podemos conferir em “Segundo tratado sobre o Governo” (1690). Locke, ao contrário de Hobbes, situou o poder não mais como absoluto, mas limitado, oriundo de um contrato realizado por seres humanos livres e racionais, com a fórmula: a origem do poder somos nós mesmos. A liberdade não seria mais absoluta e sem limites no estado de natureza, como em Hobbes; cada homem dependeria da Lei da Natureza e não da vontade de outro homem: “O estado natural tem uma Lei de Natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade, ou nas posses.”[43]
Nesse estado de natureza, Locke dizia que os homens tinham por obrigação conservar a si mesmos e por conseqüência preservar os semelhantes, pois os homens seriam providos de faculdades iguais e de uma natureza comum. A Lei Natural (Lei da Razão) tinha dois princípios: 1-) é proibida ao homem a autodestruição ou a destruição das suas propriedades; 2-) é proibido causar dano a outro homem e às suas propriedades.[44] Para tutelar esta ordem, estavam todos os homens encarregados de fazer cumprir a Lei da Natureza, todos os detentores do poder de punir os seus infratores, pois ela seria “letra morta”, se não houvesse alguém para reprimir os ofensores e preservar os inocentes. Nesta retribuição, ocorria a submissão de um homem a outrem, limitadamente; o transgressor sofria o castigo proporcional à sua falta, conforme os ditados da razão ponderada e da consciência. O primeiro princípio era intrínseco a cada homem, já o segundo tinha uma dimensão social. Ambos traduziam dois direitos: direito à própria liberdade e o direito de castigar os que lhes causassem dano, em violação da Lei Natural. No estado de natureza lockeano, de ‘perfeita liberdade’, os principais direitos básicos eram a vida, as liberdades, a propriedade e a segurança. O destaque, nesta acepção, foi o direito de propriedade[45], cujos limites seriam até onde se pudesse gozar dela (enjoy).[46]
Todos os homens teriam o Poder Executivo da Lei da Natureza, mas não seria plausível que eles fossem juízes dos próprios conflitos, pois tenderiam a beneficiar a si mesmos e a seus afetos, ou ainda tentar vingança pela injusta punição de outrem, gerando desordem e confusão. Por isso, a necessidade de um Governo, cujas origens estariam em Deus. O Governo Civil seria o remédio contra a “parcialidade” dos homens, que – numa situação de escolha – atuariam como juízes em causa própria, para decidir casos controversos.[47] O estado de natureza seria o ideal, contudo, só para seres racionais que dirimem suas condutas em conformidade com a Lei Natural. Por causa do juízo em causa própria, o estado de natureza – que deveria ser de paz perpétua – converter-se-ia num estado de guerra[48], um estado de inimizade e de destruição, cuja regra seria a do mais forte, nas palavras do próprio Locke.
Os Direitos Naturais fundamentais, a vida e a propriedade, são a razão da existência do Estado Civil, que teria tarefa primordial de conservá-los. A propriedade, em Locke, antecederia qualquer legislação civil, pois seria anterior ao Estado e surgiria da “atividade pessoal do indivíduo, o trabalho”[49]:
“Embora a terra e os frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver bastante e também de boa qualidade em comum para os demais.” (ST, V, § 27, p. 38)
O Estado Civil conservaria o que havia de melhor no estado de natureza, desde que a gênese da sociedade civil fosse um consenso e que uma minoria se submetesse aos desígnios da maioria. Em Locke, o consentimento da minoria já estaria implícito, se os seus membros concordassem em viver numa sociedade civil, em que vigorasse o princípio da regra da maioria. Por quê? Porque haveria divergências de opiniões, e como todos estariam sob o manto da Lei (que considera todos iguais), haveria de se constituir um instrumento prático para se tomar decisões legítimas. O voto das pessoas, segundo Locke, espelharia a defesa dos direitos e interesses do indivíduo.[50] Quando o indivíduo ingressou na sociedade civil, abdicou de seu direito de punir os que ofenderam a Lei da Natureza em favor da sociedade civil, na pessoa do Poder Legislativo[51], ou magistrados por ele nomeados, que seriam juízes com competência para resolver as demandas de conflitos de interesses.[52] As Leis feitas para e pela sociedade civil abarcariam a todos, inclusive os legisladores, magistrados e outros governantes, a ninguém seria facultado agir pela própria conveniência, o que levaria a um estado de anarquia.
A liberdade, a igualdade e o Poder Executivo que os homens, individualmente, teriam no estado de natureza seriam abandonados ao aderirem à sociedade civil, colocando-os sob os auspícios do Poder Legislativo, o poder supremo cujo modelo de constituição daria forma à comunidade. De alguma maneira, poderíamos dizer que Locke, ao priorizar o Poder Legislativo, por ser aquele que elabora as Leis que protegerão e ordenarão a comunidade, deu importância ao hoje conhecido como “princípio da legalidade”, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de Lei, nas relações entre os particulares, e o Poder Público (em todos seus ramos) só pode realizar o que prescreve a Lei. Os legisladores deviam elaborar os atos normativos em conformidade à Lei Natural (pois ela é eterna, imutável e é para todos, incluindo os parlamentares). As Leis Positivas – emanadas pelo Parlamento – deveriam ter certa estabilidade, não poderiam alijar a propriedade de alguém sem seu consentimento, nem transferir sua competência legiferante (de fazer Leis) para outrem, pois o Poder Legislativo seria o delegado do povo e o delegado não poderia delegar.[53]
As Leis Positivas, produzidas pelo Parlamento, seriam mandamentos gerais e abstratos impostos à observância de todos – governantes e governados – devendo interpretar a Lei Natural. Além do já citado princípio da legalidade, em Locke, podemos aferir que o Estado é regido pelo Direito e sua ordem normativa. O direito (right) pode atender o requisito de precisão, enquanto o “bem” (good), não[54]. Isso marcou a noção de que – para os contratualistas, em geral - a sociedade humana não teria mais um fundamento teleológico – como para os gregos -, mas teria sua origem e manutenção em questões de pano de fundo normativo, ou deontológico, cujas relações humanas não estariam meramente circunscritas somente nos mandamentos da Lei Natural, pois além desta, deveria haver uma ordem normativa – com bases na racionalidade humana –, produzida pelo Estado, para reger as relações sociais mais importantes e dirimir conflitos de maneira imparcial, em conformidade com a Constituição Política que lhe deu origem.
Liberdade natural e liberdade civil em Rousseau
Jean-Jacques Rousseau fez importantes considerações sobre a passagem do estado de natureza para o Estado Civil e os princípios do Direito Político, em geral, em “O contrato social” (1762). À semelhança de Hobbes, Rousseau considerava que a passagem do estado de natureza ao Estado Civil implicava na perda dos Direitos Naturais para a aquisição dos Direitos Civis. Hobbes dizia que o preço da paz para aqueles que optaram pelo Estado era a servidão. Mas o franco-suíço, em oposição ao inglês, era um teórico da democracia e tentou conjugar a liberdade dos indivíduos com a paz do Estado Civil. Isso seria possível pela negação dos Direitos Naturais por um indivíduo em favor de todos, num pacto de associação, e não um pacto de submissão[55]. Melhor explicando: o indivíduo – considerado singularmente – alienaria seus Direitos Naturais para si mesmo, como membro da totalidade, o corpo político.[56] O contrato social de Rousseau consistiria numa união de forças, pelo concurso de muitos, para “vencer a resistência, com um só móvel, pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia”[57], como um mecanismo de transformação moral, que iluminaria a condição humana.[58]
Ao submeter-se às cláusulas do contrato social, o indivíduo deveria estar ciente de que adquiriu compromisso duplo. O primeiro seria com os demais contratantes; o segundo seria como membro do corpo político em sua relação com a soberania, cuja origem e exercício estariam no povo. O acordo do indivíduo seria com o corpo político do qual se tornou membro e também com a soberania, na qual possuiria uma personalidade moral.[59] Nessa passagem do estado de natureza para o Estado Civil[60], a justiça tomaria o lugar dos instintos, dando moralidade às ações do homem, e mais: “a voz do dever sucede ao impulso físico, e o direito ao apetite; o homem que até ali só pusera em si mesmo os olhos vê-se impelido a obrar segundo outros princípios, e a consultar a razão antes que os afetos.”[61]
Em “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1755), Rousseau reconstruiu hipoteticamente a história da humanidade (sobre a real veracidade dos fatos seria muito difícil comprovar), que culminou na desigualdade, num processo em que o homem se transformou pela perda da liberdade que o levou à servidão[62]:
“Tal como foi, ou deve ter sido, a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves ao fraco e deram novas forças ao rico, destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma astuta usurpação um direito irrevogável e, para o proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas outras e como, para enfrentar forças unidas, foi preciso unir-se por sua vez. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, logo cobriram toda superfície da terra, e não mais foi possível encontrar um único recanto no universo onde se pudesse escapar ao jugo e livrar a cabeça do gládio, freqüentemente malconduzido, que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre si. Tendo o Direito Civil[63] tornado-se a regra comum dos cidadãos, a lei da natureza não teve mais lugar senão entre as diversas sociedades onde, sob o nome de direito das pessoas, ela foi moderada por algumas convenções tácitas, para tornar possíveis as relações e suprir a comiseração natural que, perdendo de sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem a homem, só reside ainda em algumas grandes almas cosmopolitas, que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou, abrigam todo o gênero humano em sua benevolência.” (DOD, p. 100-101)
Se em DOD, Rousseau discorreu – ainda que hipoteticamente – sobre as causas que corromperam o homem na sociedade civil[64], em CS, o autor apresentou o “dever ser” de toda ação política, estabelecendo as condições de um pacto legítimo.[65] O contrato social de Rousseau converteria a sociedade civil, corrompida pelos interesses egoístas, num corpo político justo, realizando um Estado Moral, a República.[66] Rousseau não se valeu do modelo diádico para uma concepção do desenvolvimento histórico da humanidade como seus antecessores, no esquema estado de natureza – Estado Civil, sendo o primeiro a fase negativa e o segundo, a positiva. Sua concepção, segundo Bobbio, foi triádica: estado de natureza, sociedade civil e República. O momento negativo (estado de guerra) estaria entre dois momentos positivos[67]. O homem era feliz e pacífico no estado de natureza, que não poderia durar por causa das inovações, como a instituição da propriedade, degenerando na sociedade civil[68], de onde seria resgatado pelo contrato social:
“O que importa é que, também para ele, como para todos os jusnaturalistas, o estado que precede o estado de razão, o estado no qual a humanidade deverá encontrar a solução de seus próprios problemas mundanos, surge como antítese ao estado precedente: a diferença de Rousseau e os outros é que, para esses, o estado precedente é o estado de natureza – seja esse estado de guerra efetiva (Hobbes e Spinoza) ou de guerra potencial (Locke e Kant), seja um estado de miséria (Pufendorf) -, enquanto que para Rousseau é a ‘société civile’”. (Bobbio & Bovero, 1994, p. 56)
Para Rousseau, a República seria todo Estado regido por Leis[69], independentemente de qual forma e regime adotasse, pois para governar só o interesse público e a coisa pública representariam algo: “Todo Governo legítimo é republicano.”[70] Pelo contrato social deu-se vida ao corpo político, então, pela legislação lhes seriam conferidos movimento e vontade. A Lei, emanada da “vontade geral”, faria parte do Estado, cujo objeto seria sempre geral e abstrato, abrangendo sob sua influência, além dos cidadãos, os governantes. E o povo que a ela se submeteu, obviamente, devia ser seu autor.[71] Sendo o povo o titular da “vontade geral”, que deu ânimo à Lei e, dessa forma, fez parte do Estado, Rousseau conseguiu conciliar liberdade e Estado, ao contrário de Hobbes, cujo preço do Estado e sua paz era a liberdade. Se na teoria do inglês os homens abandonavam sua liberdade pela servidão civil, em Rousseau, os homens abandonavam a “liberdade natural” pela “liberdade civil”[72] (no Estado) – superior e com maior plenitude - e a propriedade de tudo o que possuía. A “liberdade natural” teria como fronteiras as forças do indivíduo isolado, já a “liberdade civil” estaria limitada pela “vontade geral”, tal como o exposto: “Além do sobredito, pudera-se ajuntar à aquisição do Estado Civil a liberdade moral, que só faz o homem verdadeiramente senhor de si; pois o único estímulo do apetite é a servidão, e a obediência à Lei prescrita é liberdade (...).”[73]
A importância da Lei Positiva, para Rousseau, era clara e auto-evidente. O “contrato social” podia ser entendido também como um acordo para estabelecer as regras. O legislador devia ser, para atender estas exigências, um homem extraordinário[74], extremo conhecedor do povo. Rousseau olhava com ressalvas a representação política, tanto que não a admitia em nível da soberania. Se a vontade geral fosse exercida por meio de representantes, haveria sobreposição de vontades. E ninguém poderia querer por um outro. Entretanto, isso inviabilizaria a movimentação do corpo político, portanto, admitiu a necessidade de representantes para o Governo. Para evitar que esses representantes se tornassem usurpadores do soberano e se mantivessem quase que infinitamente nos claustros do poder, Rousseau sugeriu que fossem trocados freqüentemente.[75]
O Poder Legislativo, pertencente ao povo, seria a vontade do corpo político e o Poder Executivo, a força.[76] O Governo nada mais seria que um corpo administrativo do Estado, um mecanismo para colocar a máquina política em funcionamento, um corpo intermediário entre os vassalos e o soberano. Dessa forma, o Governo seria um funcionário do soberano, cujos representantes deveriam ser constantemente vigiados, para evitar que, em vez de submeter-se ao povo, tomassem o seu lugar, fazendo-se passar por soberano:
“Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar Leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas Leis signifique, na verdade uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos.” (Nascimento, 1996, p. 196)
Esta preocupação de Rousseau também pode ser vista em John Rawls. Para o norte-americano uma sociedade justa proíbe qualquer tipo de violação dos direitos de uma minoria, mesmo que seja levada a cabo pelos representantes da maioria em cargo político responsável pela condução do órgão estatal. Vemos também que a sociedade civil, em Rousseau, é o estado de guerra. Rawls, de certa maneira, compreende o caos da sociedade contemporânea (permeado de desigualdades, violências num plano sofisticado, como foi destacado outrora nesta dissertação) como um momento negativo, tal como a sociedade civil de Rousseau, que deve ser mudado para um momento positivo, a República. Neste ponto, ambos os autores mostram uma preocupação em mudar o status quo, em busca de justiça social.
As teorias do “contrato social”[1], como as de John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804), têm como componente essencial a idéia de que a sociedade política (ou civil) seria um ente artificial originado de um acordo geral realizado por pessoas livres e iguais. Embora alguns desses autores modernos ainda não se tenham desvinculado totalmente do “divino” (para justificar, em última instância, o que é justo e o que é injusto, diante do referencial dos Direitos Naturais, por exemplo), percebe-se que o homem – o ser humano – passa a ser o regente do seu destino, pois é o agente principal das transformações no mundo temporal. O contrato social é o pacto em que o homem forma a sociedade e delega o poder a um terceiro (ou representantes), o Estado soberano ou o corpo político, por meio de uma justificação racional. Entretanto, o que é o contrato social e como ele se aplica a nossos dias? Quais suas implicações com a justiça e com a formação de uma Constituição que reconheça e garanta, igualmente, direitos e deveres fundamentais, tanto no plano normativo quanto no plano substantivo?
Nos dias atuais, o contrato social não é apenas um pacto para a formação da sociedade política e de justificação do poder político. Requer a solução de outros problemas para resolver materialmente as deficiências sociais. A defesa da liberdade acompanha uma reivindicação por justiça nas sociedades políticas democráticas açoitadas pelas desigualdades (violências num plano sofisticado). Verificam-se desigualdades de status (sobre quem é ou não membro, ou sobre como participar da sociedade política, perante a distribuição de direitos, deveres e privilégios); desigualdades de prestígio (quem tem poder de influenciar as decisões importantes); desigualdades de fortuna (diferenças socioeconômicas, que dividem as classes sociais, um obstáculo material para a efetiva liberdade dos menos favorecidos); e diferenças de poder (representantes políticos e agentes da máquina estatal podem elevar-se acima dos anseios do povo, apesar de serem portadores de um mandato provisório).[2] Essas desigualdades são inevitáveis e sua eliminação ou atenuação não são impossíveis. Um regime democrático, se realmente está preocupado com a justiça, deve conciliá-la com a liberdade e procurar evitar essas desigualdades.
Para Christian Delacampagne (1948-), “pensar a ‘justiça’ no centro da democracia equivale a pensar, simultaneamente, o conceito de ‘igualdade’ e o de ‘contrato’”[3], embora não seja tão simples mostrar as conexões entre essas três concepções. Segundo ele, a igualdade é essencial para garantir a justiça e a justiça é o meio de perpetuar a igualdade, de acordo com esse raciocínio:
“Ambas pressupõem, além disso, o estabelecimento de ‘contratos’. Com efeito, a igualdade é o que resulta de um contrato feito entre A e B, pois, se estes aceitaram assinar esse contrato livremente e de comum acordo, fizeram-no com a finalidade de instituir entre si uma relação mútua, na qual cada um deles encontra uma vantagem igual. E a justiça é aquilo pelo qual, ou em vista do qual, os contratos são assinados, pois, pelo simples fato de que são assinados, A e B se comprometeram a não exigir, doravante, mais do que a parte que lhes é devida em virtude do contrato. A idéia segundo a qual uma comunidade desejasse fazer reinar no seu seio a igualdade, a justiça, e por conseguinte a democracia, deveria ser fundada sobre um contrato não é portanto muito original. Todavia, não é uma idéia ‘evidente’ na medida em que pressupõe, por sua vez, uma hipótese prévia: o caráter ‘artificial’, não ‘natural’, da sociedade política.” (Delacampagne, 2001, p. 88)
Linhas básicas do contratualismo moderno
Embora tenha raízes na Grécia antiga, a tradição do contrato social, seja histórico ou hipotético, sedimentou-se na idade moderna, com as obras de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), Locke, Rousseau e Kant, vindo a influenciar, sobremaneira, o pensamento político e as democracias constitucionais até os nossos dias. As teorias contratualistas modernas, surgidas num horizonte de ruptura com a visão teocrática de mundo, colocaram o homem no centro das discussões como agente e planejador da sua vida, seja no âmbito particular ou no âmbito público. Ou seja, o contratualismo “inaugurou um debate que até hoje perdura, na prática e no conhecimento político, acerca do ideal da razão como orientação para o comportamento político, e do acordo entre os indivíduos como fundamento da legitimidade do Estado”[4]. Em muitos casos, recorreu-se à figura divina ou mesmo à religião, entretanto, isto o foi realizado dentro de um prisma racional, e não mais teológico. Freqüentemente estes autores citaram termos como “estado de natureza”, “estado de guerra”, “Estado Civil” e “contrato social” como recurso para explicar a formação da sociedade política, cujo princípio legitimador repousaria, conforme esta doutrina, no consenso entre seres humanos livres e iguais, que teriam direitos (naturais), anteriores até mesmo à formação do Estado, cuja inviolabilidade estaria intrínseca à qualidade humana. Paradoxalmente, não houve um consenso entre os autores contratualistas clássicos acerca destes termos, assim como a abrangência das suas concepções e da racionalidade das pessoas, embora todos manifestassem “uma busca de garantias básicas para o exercício da liberdade, tratando de especificar as regras e processos instrumentais do ordenamento político que consideraram adequados para tal objetivo” [5], como será visto ao longo deste texto.
Em geral, os contratualistas modernos eram pensadores que tinham, em maior ou menor grau, crença na autonomia do indivíduo e numa série de “Direitos Naturais”[6] (jus naturale) que lhes seriam inerentes. O jusnaturalismo marcou passagem na Antiguidade Clássica, mas foi na Idade Moderna, entre os séculos XVII e XVIII, que mais se desenvolveu e se difundiu entre os círculos intelectuais. A obra marco do jusnaturalismo moderno foi “De iure belli ac pacis”, de 1625, de autoria de Hugo Grotius (1588-1625). O cessar da predominância desta corrente de pensamento, ao contrário do seu início, não teve uma data clara. Sabe-se que uma das causas da sua decadência foi o historicismo jurídico, da Alemanha, principalmente, após a publicação de “Ueber die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechtes”[7], em 1802, do então jovem Georg. W. Hegel (1770-1831), que submeteu a uma crítica tanto o jusnaturalismo quanto as filosofias do Direito de Grotius, Kant e Fichte, explica o italiano Norberto Bobbio (1909-2004).[8]
De acordo com Hans Kelsen (1881-1973), a doutrina do Direito Natural, ou jusnaturalismo, tinha a pretensão de encontrar uma resposta que pudesse dar fim aos questionamentos quanto à definição de justiça e do seu alcance, naquilo que apontaria e daria delimitações do que é certo e do que é errado, com base numa possibilidade de se avaliar quais seriam as condutas humanas naturais e as não-naturais. As primeiras teriam correspondência com a natureza, pois estariam em conformidade com ela. As segundas, contrárias à natureza e, portanto, proibidas por ela.[9]
Kelsen classificou a doutrina do Direito Natural como uma ideologia, ou seja, “uma justificação racional de um postulado baseado num julgamento subjetivo de valor”[10]. Daí, seu caráter teleológico, pois previa um “ordenamento definitivo” da conduta humana, oriundo da natureza, da razão humana ou da divindade. Conforme essa doutrina, tal ordenamento seria superior, anterior, mais válido e justo que o Direito Positivo. As Leis Naturais seriam conseqüência da vontade de Deus, que se espelharia, por conseguinte, na natureza e nas regras que a regulam. O Direito Positivo seria a expressão de um ato de vontade de um legislador constituído como autoridade humana.[11]
Na interpretação de Bobbio, para os juristas-filósofos – Pufendorf, Thomasius e Wolff -, o Direito Natural dispunha de princípios de Direito Público e de Direito Privado (mais deste que do primeiro). Por sua vez, os três grandes do contratualismo moderno – Hobbes, Locke e Rousseau – utilizaram-se do Direito Natural para enfatizar questões mais de Direito Público, cuja principal preocupação era a fundamentação e a justificação da natureza do Estado.[12] Havia, então, uma doutrina jurídica e uma doutrina política do contratualismo moderno, mas ambas convergiam num princípio de unificação para o estudo do Direito, da ética e da filosofia prática, que se dava num método[13]:
“O método que une autores tão diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve permitir a redução do Direito e a moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa. Em outras palavras: tanto os seguidores quanto os adversários consideram-se autorizados a falar de ‘escola’ enquanto esta constitui uma unidade não ontológica, não metafísica nem ideológica, mas sim metodológica. A melhor prova disso, de resto, é o fato de ter prevalecido o uso (pelo menos a partir da crítica da escola histórica) de chamar o Direito Natural moderno de ‘Direito Racional’: temos aqui um indicador do fato de que aquilo que caracteriza o movimento em seu conjunto não é tanto o objeto (a natureza), mas o modo de abordá-lo (a razão), não um princípio ontológico (que pressuporia uma metafísica comum que, de fato, jamais existiu), mas um princípio metodológico.” (Bobbio & Bovero, 1994, p.15-16)
A proteção do indivíduo contra a autoridade também encontrou justificativas na teoria do Direito Natural. O poder do Estado seria limitado externamente, pois haveria uma esfera que não estaria sob domínio do príncipe, cuja vontade era a fonte do Direito Positivo de então. Esses limites estariam delineados pelos Direitos Naturais, que seriam de todos os indivíduos, devido ao caráter da sua natureza humana, seja ou não participante de uma determinada sociedade política. “Esses direitos são Direitos Naturais que, preexistindo ao Estado, dele não dependem, e, não dependendo do Estado, este tem o dever de reconhecê-los e garanti-los integralmente. Os Direitos Naturais constituem, assim, um limite ao poder do Estado, pois este deve reconhecê-los e não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos cidadãos seu livre exercício.”[14] Esse suporte, para a doutrina contratualista, serviu para defender o Estado Liberal. No entanto, também fundamentou o Absolutismo, conforme visto na teoria hobbesiana[15], na qual os indivíduos despojar-se-iam voluntariamente de certos direitos em prol de um terceiro, por um pacto.
Quer seja encarada como princípio metodológico, nas palavras de Bobbio, ou como “ideologia”, conforme situou Kelsen, a doutrina do Direito Natural serviu como ponto de partida para que os contratualistas modernos investigassem a respeito da formação da sociedade política e da autoridade estatal, tendo como foco originário os atos da vontade humana. Os seres humanos, dotados de uma série de direitos fundamentados pela razão, encontrariam uma maneira de conviverem pacificamente ou de evitarem a destruição. Essa série de “convenções” visando à coletividade, a partir das decisões convergentes de simples membros da sociedade, ficou conhecida como “contratualismo”. O poder político não seria mais fundamentado na vontade divina ou na tradição, mas no acordo de vontades entre seres livres e iguais.
David Boucher e Paul Kelly dividem o contratualismo em três categorias: contratualismo moral, contratualismo civil e contratualismo constitucional. Em termos gerais, o contratualismo moral baseia-se na tese de que a moralidade é extraída de princípios baseados nos interesses dos indivíduos que refreiam seus comportamentos para maximizar interesses. O contratualismo constitucional invoca a Idade Média, na qual se entendia que as relações entre governante e governado eram pactos implícitos ou explícitos, que continham as cláusulas com os direitos e deveres dos contratantes.[16] Dentre estas categorias, a que nos interessa nesta discussão é o contratualismo civil.
Para os contratualistas civis – Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Rawls e Nozick, por exemplo – a questão primordial do acordo não seria necessariamente criar “moralidade”, mas instituir obrigações morais ou políticas, por meio de restrições morais e racionais nas condutas, que “não são meramente resultados de preferências, mas que são consolidadas, expandidas ou transformadas pelo contrato social”[17]. O contrato social, segundo os contratualistas civis, fixa as obrigações morais e políticas, não como conseqüência da vida em sociedade, mas como resultado e ratificação da Lei Natural da nossa racionalidade e sociabilidade[18], conforme exposto anteriormente, sendo ainda um pacto para estabelecer as regras entre seres humanos livres e iguais, elaboradas por eles mesmos.
Além da Escola Histórica, inaugurada por Hegel, outros críticos importantes do contratualismo foram os utilitaristas.[19] De acordo com Luis Alberto Peluso, o utilitarismo foi a primeira escola de pensamento anglo-americana e também ficou conhecido como moralismo britânico, pensamento radical, liberalismo clássico, ou, ainda, positivismo inglês. Esta vertente filosófica, segundo Peluso, teria sido fundada por Jeremy Bentham, um dos seus principais representantes. Em termos gerais, o utilitarismo defende que as ações individuais e as ações sociais são regidas pelo princípio da utilidade, cujo objetivo seria promover a maior felicidade para o maior número possível de pessoas, procurando, igualmente, minimizar o sofrimento. [20] Podemos verificar que para os utilitaristas, conforme Peluso, a tensão entre o indivíduo e o coletivo tem outra dimensão. Os interesses coletivos, ou públicos, nada mais seriam que o resultado conjunto dos interesses individuais, segundo o princípio da utilidade, em que a ação humana é motivada pela busca do prazer e pela fuga (ou eliminação) da dor:
“Nessa formulação, esse princípio deixa acentuado o caráter individual dos motivos ou forças que compelem os seres humanos à ação. Contudo, a interpretação desse princípio não pode ser dissociada da tese de que a utilidade, ou seja, a propriedade em virtude da qual algo pode produzir vantagens ou prazer existe nas coisas, pertencendo, portanto, ao mundo objetivo existente independentemente do sujeito moral. Além disso, há que se considerar a tese de que a comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas individuais. Dessa forma o interesse coletivo, ou a utilidade pública é apenas a soma dos interesses dos diversos membros que integram a comunidade.” (Peluso, 1998, p. 17)
Para os utilitaristas, os Direitos Naturais seriam apenas um disfarce para as aparências pessoais, pois não envolveriam certa evocação a um padrão externo, diz Philip Schofield.[21] Com essa argumentação, armou-se o ataque à doutrina contratualista de sustentação do Governo, que, em certa medida, tem na teoria dos Direitos Naturais (ou Direito Natural) a sua justificativa. No entender dos utilitaristas, a doutrina dos Direitos Naturais e o contratualismo teriam implicações radicais e anárquicas, que deveriam ser evitadas. Daí, a opção dos utilitaristas, alega Schofield, ao positivismo jurídico,[22] que teria o mérito de propiciar melhores Leis, “aquelas que fossem mais capazes de produzir a felicidade da comunidade em geral, e seria o dever dos legisladores fazerem a felicidade do povo os seus objetos”[23].
Os comentários de Bentham se resvalaram contra o contratualismo constitucional, de acordo com a classificação de Boucher e Kelly. Vejamos um exemplo, em conformidade com a conceituação que expusemos anteriormente: um acordo celebrado entre o povo e o rei, o primeiro promete obediência geral ao segundo, o segundo promete governar o primeiro, desde que este seja subserviente à sua felicidade. Mas e se uma das partes desrespeitasse o acordo original? Haveria necessidade de uma sanção, caso o inadimplente fosse o povo. E os reis só seriam obedecidos se governassem de modo a evitar o sofrimento do povo. Então, ao ver dos utilitaristas, a figura do acordo original, ou contrato social, não seria tão necessária ou tão fundamental assim (ou configuraria apenas mais um engenhoso artifício de ficção, próximo talvez, de uma realidade), porque a promessa que vincularia todos os contratantes não dependeria simplesmente de ter sido firmada, mas da sua utilidade, um princípio que forneceria uma razão única e suficiente para qualquer tipo de prática:
“A única razão para os homens respeitarem suas promessas seria que eles assim devem fazer posto que isto é vantagem para a sociedade, e nesse sentido a punição deveria ser empregada para fazê-los se comportarem de certa forma. Esta seria a mesma razão pela qual os reis deveriam evitar medidas em detrimento da felicidade de seus súditos e porque os súditos deveriam obedecer seus reis desde que eles se conduzissem nesse sentido – e acrescentou Bentham, ‘não mais que isto; porque eles devem obedecer desde que os prováveis prejuízos da obediência sejam menores do que os prováveis prejuízos da resistência: porque, em uma palavra, considerando todos juntos, é seu dever obedecer, desde que isto seja o seu interesse, e não mais do que isto’. Assim, seria desnecessário dizer que o rei prometia governar de uma certa forma, e que os súditos prometiam obedecer desde que ele continuasse a fazer isso. Certamente, que não existiria o dever de respeitar a promessa que resultasse em prejuízo. A validade de uma promessa não depende unicamente do fato de ter sido feita, mas, em vez disto, de sua utilidade.” (Schofield, 1998, p. 153)
Feito um pequeno intervalo para situarmos as críticas dos utilitaristas ao contratualismo e à doutrina do Direito Natural, retomemos o tema principal deste tópico. Como salientou Bobbio, para alguns jusfilósofos adeptos do contratualismo, o Direito Natural dispunha sobre princípios de Direito Público e de Direito Privado. Entretanto, o objetivo deste estudo não recai sobre normas que regulam as relações cotidianas entre os particulares, em situação de coordenação (Direito Privado), mas sobre as normas de caráter público – incluindo a relação de subordinação dos cidadãos ao Estado (ou como “terceiro” imparcial) – analisando a tensão entre o individual e o coletivo, tal como o papel do Direito Positivo neste processo.
Dos contratos ao contrato social: Johannes Althussius
Começaremos nossa breve explanação pelo pioneiro do contratualismo, o calvinista alemão Johannes Althussius (1557-1638). Os países europeus do tempo de Althussius passavam por revoluções antiabsolutistas, que dariam origem aos Estados Modernos. Inspirado pela revolução vitoriosa que desembocou na libertação dos holandeses do Império Espanhol, ele reformulou a doutrina absolutista, praticamente invertendo-a. Os monarcas, ou governantes, em geral, não mais teriam o “direito divino” sobre as vidas dos seus súditos ou governados. Pelo contrário, teriam o dever de zelar pelas vidas e necessidades comuns dos seus súditos e governados. Essa aliança seria renovada: “Althussius defendia a tese de um ‘contrato original’ entre o povo e seu governante livremente eleito (...) que deveria ser reafirmado, sempre, nas eleições de governos posteriores. Ou seja, condicionava o direito de sucessão ao consentimento dos governados. Explícita nesse contrato está a aliança com Deus, que obriga o governante a proteger a religião do seu povo, e o povo por sua vez a resistir ao governante que não faça isso.”[24]
Para Althussius, antes do contrato original – para formação do Estado-Nação – seriam necessários contratos em menor escala para regular a comunidade local, através de leis internas fundamentais, que incluíssem os indivíduos, as famílias e as corporações civis. Os contratantes do pacto original eram as províncias e as cidades, que eram constituídas de outros pactos de associações privadas (corporações), que eram, por conseguinte, oriundas de pactos entre famílias, que seriam fruto dos pactos entre os indivíduos. Nessa seqüência, montar-se-ia uma pirâmide acumulativa e sucessiva de contratos. Althussius já observou o caráter da especialização do trabalho e a importância da sociedade humana, na qual os homens são tidos como “simbiontes”, co-trabalhadores, cuja associação unificada por um acordo teria como fim a vida confortável da alma e do corpo, partilhada em comum, envolvendo bens, serviços e direitos comuns. [25] Nesta primeira etapa do contrato social, os seres humanos chegaram à conclusão que cada um deveria comprometer-se à solidariedade mútua, com igualdade de liberdade nas deliberações, firmando um “pacto de associação” (pactum societatis), no qual a “multitudo” se converteria num “populus”.
No contrato original, a autoridade política era delegada ao “supremo magistrado”, o governante máximo. Contudo, tratava-se de uma delegação condicionada, pois esse Governo só estaria legitimado se houvesse consentimento popular. O Governo, nas palavras do próprio Althussius, seria mantido pelo domínio e pela subordinação. Após o “pacto de associação”, seria firmado o “pacto de submissão” (pactum subiectionis), inaugurando o poder político, contando com a premissa inicial de que todos prestam compromisso de obediência à autoridade constituída, convertendo um “populus” numa “civitas”.[26] Sobre esses dois pactos distintos, porém, unificados, Bobbio definiu:
“1-) o pactum societatis. É o contrato por meio do qual os indivíduos isolados que vivem no estado de natureza, decidindo abandonar esse estado, instituem uma convivência regular entre si. Os sujeitos do acordo são os próprios indivíduos; o fim é a convivência pacífica. Através desse primeiro contrato uma multidão dispersa torna-se populus.
2-) o pactum subiectionis. É o contrato pelo qual os indivíduos que já constituem uma sociedade, como populus, decidindo oferecer uma estrutura estável mediante a organização de um poder coercitivo sobre a sociedade constituída, instituem aquela forma particular de sociedade, seguindo uma estrutura hierárquica, que é o Estado. Os sujeitos desse novo contrato são, de um lado, o populus, e, por outro lado, a pessoa ou as pessoas às quais é confiado o poder supremo. Com esse segundo contrato os indivíduos buscam a garantia de vida, dos bens e das pessoas, que somente por meio de um poder supremo provido de força coercitiva torna-se eficaz, em troca da submissão e da obediência. O pactum subiectionis é, em outras palavras, o pacto com o qual o povo e soberano estabelecem os recíprocos direitos e deveres.” (Bobbio & Bovero, 2000, p. 44)
Hobbes: do estado de natureza para o Estado Civil
O inglês Thomas Hobbes, por sua vez, não utilizou a figura do duplo contrato. Em sua teoria, havia somente um contrato social (pactum unionis), que marcava a passagem do estado de natureza (de guerra) para o Estado Civil e tinha como objetivo a preservação dos indivíduos contra a violência recíproca, através do medo da morte violenta. Numa sociedade, as associações são contratadas voluntariamente e os componentes têm como objetivo um bem. À primeira vista, à semelhança de Althussius, os homens se associam para o ganho ou para a glória, pelo amor que têm de si mesmos e não pelo amor do próximo. Mas essas sociedades não perduram, pois a glória se é de um é de todos, ou seja, “cada homem vale o quanto vale por si, sem a ajuda dos outros”[27]. A chave para as sociedades duradouras provém do medo que cada um tem do outro. Esse medo recíproco espelha a igualdade natural humana.
O Direito Natural, segundo Hobbes, consistia numa liberdade sem impedimentos exteriores, que cada indivíduo teria para proteger sua vida, com julgamentos e raciocínios que considerasse corretos para este fim.[28] Todo homem tinha o direito de julgar o que é necessário à sua própria preservação, incluindo o juízo que outro homem tinha sobre este assunto. A liberdade no estado de natureza era praticamente ilimitada; todos tinham direito a tudo, mesmo que isso implicasse seguir em conflito com quem julgasse necessário, para desfrutar ou usar o que quisesse. Nesse estado de natureza, “a medida do direito está na vantagem que for obtida”, mas esse direito de tudo a todos seria inútil, pois haveria incidência dos desejos de muitos sobre um único objeto, causando discórdia e violência.[29]
O estado de natureza, em Hobbes, era a situação em que se encontravam os homens antes da sociedade civil. Uma guerra de todos contra todos, na qual um contesta o outro pela força, seja nas palavras ou nos atos. A paz seria o tempo em que não se estivesse em estado de guerra. A paz seria momentânea, pois a guerra seria um estado perpétuo pela sua própria natureza e pela igualdade natural dos homens, que poderia ser colocado em estado latente pela vitória de uma das partes; porém, a ansiedade do derrotado em virar a mesa estaria esperando o momento certo para o contragolpe. O início da associação humana, para Hobbes, estaria no medo de uns contra os outros. Seria mais vantajoso congregar associados (fellows), porque – em hipótese de guerra -, que o conflito não se estendesse contra todos e que houvesse algum auxílio (possibilidade de alianças) contra o “inimigo”, pelo menos. A conservação dos homens em estado de natureza não podia ser duradoura pelo fato de todos os homens possuírem poderes iguais.[30]
Hobbes diferenciou o Direito Natural (jus naturale) da Lei Natural[31] (lex naturalis). A segunda, em contraposição ao primeiro, é delimitada dentro de um contexto, que permite fazer ou obrigar, ao contrário do Direito - a liberdade de fazer ou omitir. Em suma: “Aqueles que fazem voto de alguma coisa contrária à Lei Natural fazem voto nulo, pois cumprir tal voto seria injustiça. Se uma coisa for ordenada pela Lei Natural, não é voto, mas lei, que os vincula.”[32] A Primeira Lei Natural, ou preceito da reta razão, para o autor inglês, dispunha que os seres humanos deviam empenhar-se pela paz, dentro das esperanças que tiver para alcançá-la. Se isso não fosse possível, que se preparassem para a guerra, usando toda ajuda e vantagens. Como se vê, o Direito Natural não foi ignorado, foi incorporado nos seguintes termos: cuidar da própria defesa por todos os meios possíveis.[33]
A Segunda Lei Natural foi o moto originário da Primeira Lei Natural. Implicou em desistir do direito a todas as coisas, privando-se da liberdade de negar a outrem o seu próprio direito à mesma coisa. A desistência do direito poderia ser por renúncia (não se leva em consideração em favor de quem será transferido o direito) ou por transferência (beneficia-se determinada pessoa ou grupo de pessoas). Há uma classe de direitos que não poderiam ser renunciados ou transferidos (mesmo como ato de vontade, que exija, em contrapartida, um outro direito), como o direito à própria vida e autodefesa. Começamos a notar o caráter contratualista da teoria de Hobbes, que conceitua o contrato como a transferência mútua de direitos[34] , como forma de regulação de comportamentos.
Trata-se do velho brocardo latino “Pacta sunt servanda” (pactos devem ser cumpridos) a Terceira Lei Natural de Hobbes[35]. No entanto, haveria mácula de nulidade se pairasse desconfiança com relação ao cumprimento dos contratos, o que ocorreria no estado de natureza (guerra), pois se um cumprisse sua parte, não se teria certeza (garantia) quanto à contrapartida do outro. Hobbes chegou então à conclusão de que seria preciso uma força superior, no plano humano, que evitasse que os homens quebrassem os vínculos obtidos com suas promessas e não cedessem aos seus próprios interesses egoístas. Esse temor da promessa não cumprida só seria possível se houvesse um poder que coagisse os inadimplentes, o Estado Civil.[36]
A Lei Natural - apesar de oriunda da reta-razão - não tinha o caráter coativo, pois não emanava do Estado. Só a Lei Civil[37], elaborada pelo soberano em Poder do Estado, poderia compelir os homens ao cumprimento das obrigações. Os homens devem obedecê-la por fazerem parte de um Estado, a persona civitatis. Podemos dizer que as Leis Naturais não eram Leis propriamente ditas, mas princípios, pois não eram produzidas pelo Estado. Só o seriam se fossem declaradas Leis pelo mesmo. A Lei Civil apenas positiva a Lei Natural, ou nas palavras de Hobbes: “A Lei Civil e a Lei Natural não são gêneros, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil e a outra não é escrita e se chama natural. O Direito Natural, isto é a liberdade natural do homem, pode ser limitado e restringido pela Lei Civil.”[38]
A interpretação mais comum é a de que Hobbes, em suas principais obras - “Do cidadão” (1642) e “O Leviatã” (1651) -, justificou a formação e a permanência de um Estado Civil absolutista. Podemos dizer isso porque, em Hobbes, a Lei Civil vincula todos que estão sob o manto de um Estado, exceto o soberano, seja um homem ou uma assembléia, que só está obrigado perante si mesmo. Hobbes detalhou a formação do Estado Civil no capítulo XVII de sua célebre obra “O Leviatã”. No estado de natureza, as paixões desenfreadas levariam os homens inevitavelmente ao estado de guerra, pela ausência de uma “força invisível”, que causasse temor diante da quebra de barreiras. As Leis Naturais seriam contrárias às paixões, mas insuficientes para que houvesse confiança, exceto na própria força e capacidade, na luta de todos contra todos. Mesmo a concórdia de muitas pessoas não seria suficiente para formar e sustentar uma sociedade. Os homens deveriam ser forçados a isto pelo medo comum, pois entre eles – ao contrário dos animais – há: disputa por honra e precedência; insatisfação com o aquilo que anteriormente considerava bom para si e, daí, persegue também a coisa de outrem; uma situação de discórdia, que pode levar à guerra civil, porque, na multidão, uns consideram-se melhores que os outros, portanto, mais “merecedores” que os demais; a maledicência; a incapacidade de muitos de compreender a injúria e o dano. A formação de uma sociedade humana (civil), ao contrário do que pretendia Aristóteles, não é natural – como das criaturas brutas (os animais) -, mas artificial, acertada num pacto.[39]
Esse consentimento deveria ser reforçado pela união dos contratantes, na qual todos os direitos de todos os homens fossem transferidos a um só. Para que houvesse um acordo entre as vontades dos homens, era preciso que eles submetessem sua vontade a outrem (um indivíduo ou um conselho), que representasse a vontade única de todos na deliberação sobre o que deveria ser feito ou omitido. E que do deliberado pelos conselheiros[40], uma vez escolhidos por todos, estes se não poderiam opor às decisões. Isso era a união, conforme Hobbes:
“Embora a própria vontade não seja voluntária, mas apenas o começo das ações voluntárias (pois queremos o agir e não o querer), e por isso seja que todas as coisas a que menos pode ser objeto de deliberação e pacto, contudo aquele que submete sua vontade à vontade de outrem transfere a este último o direito sobre sua força e suas faculdades – de tal modo que, quando todos os outros tiverem feito o mesmo, aquele a quem se submeteram terá tanto poder que, pelo terror que este suscita, poderá conformar as vontades dos particulares à unidade e à concórdia.” (DC, V, § 7, p. 96)
Dessa união (pactum unionis), formou-se uma cidade, uma sociedade civil, uma pessoa civil, ou melhor, o “Leviatã”, o deus mortal a quem, abaixo do Deus Imortal, deveríamos nossa paz e defesa[41]. O representante do “Leviatã” era o soberano - que detinha poder absoluto sobre os súditos. O poder soberano era adquirido por aquisição ou por instituição. Na primeira alternativa, ocorria a submissão pela força, cuja recusa implicava na destruição dos resistentes. Na segunda, que mais nos interessa neste estudo, o poder soberano seria adquirido por instituição: havia concordância entre os homens de se submeterem a uma pessoa, ou uma assembléia, por sua vontade própria, para serem protegidos contra todas as adversidades. Todos deviam obediência a estes representantes, os que lhes votaram favoravelmente e os que votaram contra, já que aqueles estariam autorizados a realizar atos e tomar decisões como se fossem os próprios eleitores. Uma vez instituído o Estado Civil, não podiam os contratantes celebrar um pacto de submissão a outrem, sem permissão do soberano, assim como os pactos anteriores não teriam validade se contradissessem o pacto atual. O soberano está acima dos contratantes e não é parte no contrato social. Se fosse parte, teria que contratar com todos os súditos, com toda a multidão, e estaria vinculado às cláusulas do contrato, o que colocaria em risco sua soberania.[42]
Locke: a origem do poder somos nós mesmos
A teoria do inglês John Locke vislumbrou também a formação e justificação do Estado pela metodologia do contrato social, porém, com algumas diferenças, que o tornaram mais “palatável” a um regime democrático republicano, como podemos conferir em “Segundo tratado sobre o Governo” (1690). Locke, ao contrário de Hobbes, situou o poder não mais como absoluto, mas limitado, oriundo de um contrato realizado por seres humanos livres e racionais, com a fórmula: a origem do poder somos nós mesmos. A liberdade não seria mais absoluta e sem limites no estado de natureza, como em Hobbes; cada homem dependeria da Lei da Natureza e não da vontade de outro homem: “O estado natural tem uma Lei de Natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade, ou nas posses.”[43]
Nesse estado de natureza, Locke dizia que os homens tinham por obrigação conservar a si mesmos e por conseqüência preservar os semelhantes, pois os homens seriam providos de faculdades iguais e de uma natureza comum. A Lei Natural (Lei da Razão) tinha dois princípios: 1-) é proibida ao homem a autodestruição ou a destruição das suas propriedades; 2-) é proibido causar dano a outro homem e às suas propriedades.[44] Para tutelar esta ordem, estavam todos os homens encarregados de fazer cumprir a Lei da Natureza, todos os detentores do poder de punir os seus infratores, pois ela seria “letra morta”, se não houvesse alguém para reprimir os ofensores e preservar os inocentes. Nesta retribuição, ocorria a submissão de um homem a outrem, limitadamente; o transgressor sofria o castigo proporcional à sua falta, conforme os ditados da razão ponderada e da consciência. O primeiro princípio era intrínseco a cada homem, já o segundo tinha uma dimensão social. Ambos traduziam dois direitos: direito à própria liberdade e o direito de castigar os que lhes causassem dano, em violação da Lei Natural. No estado de natureza lockeano, de ‘perfeita liberdade’, os principais direitos básicos eram a vida, as liberdades, a propriedade e a segurança. O destaque, nesta acepção, foi o direito de propriedade[45], cujos limites seriam até onde se pudesse gozar dela (enjoy).[46]
Todos os homens teriam o Poder Executivo da Lei da Natureza, mas não seria plausível que eles fossem juízes dos próprios conflitos, pois tenderiam a beneficiar a si mesmos e a seus afetos, ou ainda tentar vingança pela injusta punição de outrem, gerando desordem e confusão. Por isso, a necessidade de um Governo, cujas origens estariam em Deus. O Governo Civil seria o remédio contra a “parcialidade” dos homens, que – numa situação de escolha – atuariam como juízes em causa própria, para decidir casos controversos.[47] O estado de natureza seria o ideal, contudo, só para seres racionais que dirimem suas condutas em conformidade com a Lei Natural. Por causa do juízo em causa própria, o estado de natureza – que deveria ser de paz perpétua – converter-se-ia num estado de guerra[48], um estado de inimizade e de destruição, cuja regra seria a do mais forte, nas palavras do próprio Locke.
Os Direitos Naturais fundamentais, a vida e a propriedade, são a razão da existência do Estado Civil, que teria tarefa primordial de conservá-los. A propriedade, em Locke, antecederia qualquer legislação civil, pois seria anterior ao Estado e surgiria da “atividade pessoal do indivíduo, o trabalho”[49]:
“Embora a terra e os frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver bastante e também de boa qualidade em comum para os demais.” (ST, V, § 27, p. 38)
O Estado Civil conservaria o que havia de melhor no estado de natureza, desde que a gênese da sociedade civil fosse um consenso e que uma minoria se submetesse aos desígnios da maioria. Em Locke, o consentimento da minoria já estaria implícito, se os seus membros concordassem em viver numa sociedade civil, em que vigorasse o princípio da regra da maioria. Por quê? Porque haveria divergências de opiniões, e como todos estariam sob o manto da Lei (que considera todos iguais), haveria de se constituir um instrumento prático para se tomar decisões legítimas. O voto das pessoas, segundo Locke, espelharia a defesa dos direitos e interesses do indivíduo.[50] Quando o indivíduo ingressou na sociedade civil, abdicou de seu direito de punir os que ofenderam a Lei da Natureza em favor da sociedade civil, na pessoa do Poder Legislativo[51], ou magistrados por ele nomeados, que seriam juízes com competência para resolver as demandas de conflitos de interesses.[52] As Leis feitas para e pela sociedade civil abarcariam a todos, inclusive os legisladores, magistrados e outros governantes, a ninguém seria facultado agir pela própria conveniência, o que levaria a um estado de anarquia.
A liberdade, a igualdade e o Poder Executivo que os homens, individualmente, teriam no estado de natureza seriam abandonados ao aderirem à sociedade civil, colocando-os sob os auspícios do Poder Legislativo, o poder supremo cujo modelo de constituição daria forma à comunidade. De alguma maneira, poderíamos dizer que Locke, ao priorizar o Poder Legislativo, por ser aquele que elabora as Leis que protegerão e ordenarão a comunidade, deu importância ao hoje conhecido como “princípio da legalidade”, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de Lei, nas relações entre os particulares, e o Poder Público (em todos seus ramos) só pode realizar o que prescreve a Lei. Os legisladores deviam elaborar os atos normativos em conformidade à Lei Natural (pois ela é eterna, imutável e é para todos, incluindo os parlamentares). As Leis Positivas – emanadas pelo Parlamento – deveriam ter certa estabilidade, não poderiam alijar a propriedade de alguém sem seu consentimento, nem transferir sua competência legiferante (de fazer Leis) para outrem, pois o Poder Legislativo seria o delegado do povo e o delegado não poderia delegar.[53]
As Leis Positivas, produzidas pelo Parlamento, seriam mandamentos gerais e abstratos impostos à observância de todos – governantes e governados – devendo interpretar a Lei Natural. Além do já citado princípio da legalidade, em Locke, podemos aferir que o Estado é regido pelo Direito e sua ordem normativa. O direito (right) pode atender o requisito de precisão, enquanto o “bem” (good), não[54]. Isso marcou a noção de que – para os contratualistas, em geral - a sociedade humana não teria mais um fundamento teleológico – como para os gregos -, mas teria sua origem e manutenção em questões de pano de fundo normativo, ou deontológico, cujas relações humanas não estariam meramente circunscritas somente nos mandamentos da Lei Natural, pois além desta, deveria haver uma ordem normativa – com bases na racionalidade humana –, produzida pelo Estado, para reger as relações sociais mais importantes e dirimir conflitos de maneira imparcial, em conformidade com a Constituição Política que lhe deu origem.
Liberdade natural e liberdade civil em Rousseau
Jean-Jacques Rousseau fez importantes considerações sobre a passagem do estado de natureza para o Estado Civil e os princípios do Direito Político, em geral, em “O contrato social” (1762). À semelhança de Hobbes, Rousseau considerava que a passagem do estado de natureza ao Estado Civil implicava na perda dos Direitos Naturais para a aquisição dos Direitos Civis. Hobbes dizia que o preço da paz para aqueles que optaram pelo Estado era a servidão. Mas o franco-suíço, em oposição ao inglês, era um teórico da democracia e tentou conjugar a liberdade dos indivíduos com a paz do Estado Civil. Isso seria possível pela negação dos Direitos Naturais por um indivíduo em favor de todos, num pacto de associação, e não um pacto de submissão[55]. Melhor explicando: o indivíduo – considerado singularmente – alienaria seus Direitos Naturais para si mesmo, como membro da totalidade, o corpo político.[56] O contrato social de Rousseau consistiria numa união de forças, pelo concurso de muitos, para “vencer a resistência, com um só móvel, pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia”[57], como um mecanismo de transformação moral, que iluminaria a condição humana.[58]
Ao submeter-se às cláusulas do contrato social, o indivíduo deveria estar ciente de que adquiriu compromisso duplo. O primeiro seria com os demais contratantes; o segundo seria como membro do corpo político em sua relação com a soberania, cuja origem e exercício estariam no povo. O acordo do indivíduo seria com o corpo político do qual se tornou membro e também com a soberania, na qual possuiria uma personalidade moral.[59] Nessa passagem do estado de natureza para o Estado Civil[60], a justiça tomaria o lugar dos instintos, dando moralidade às ações do homem, e mais: “a voz do dever sucede ao impulso físico, e o direito ao apetite; o homem que até ali só pusera em si mesmo os olhos vê-se impelido a obrar segundo outros princípios, e a consultar a razão antes que os afetos.”[61]
Em “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1755), Rousseau reconstruiu hipoteticamente a história da humanidade (sobre a real veracidade dos fatos seria muito difícil comprovar), que culminou na desigualdade, num processo em que o homem se transformou pela perda da liberdade que o levou à servidão[62]:
“Tal como foi, ou deve ter sido, a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves ao fraco e deram novas forças ao rico, destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma astuta usurpação um direito irrevogável e, para o proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas outras e como, para enfrentar forças unidas, foi preciso unir-se por sua vez. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, logo cobriram toda superfície da terra, e não mais foi possível encontrar um único recanto no universo onde se pudesse escapar ao jugo e livrar a cabeça do gládio, freqüentemente malconduzido, que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre si. Tendo o Direito Civil[63] tornado-se a regra comum dos cidadãos, a lei da natureza não teve mais lugar senão entre as diversas sociedades onde, sob o nome de direito das pessoas, ela foi moderada por algumas convenções tácitas, para tornar possíveis as relações e suprir a comiseração natural que, perdendo de sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem a homem, só reside ainda em algumas grandes almas cosmopolitas, que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou, abrigam todo o gênero humano em sua benevolência.” (DOD, p. 100-101)
Se em DOD, Rousseau discorreu – ainda que hipoteticamente – sobre as causas que corromperam o homem na sociedade civil[64], em CS, o autor apresentou o “dever ser” de toda ação política, estabelecendo as condições de um pacto legítimo.[65] O contrato social de Rousseau converteria a sociedade civil, corrompida pelos interesses egoístas, num corpo político justo, realizando um Estado Moral, a República.[66] Rousseau não se valeu do modelo diádico para uma concepção do desenvolvimento histórico da humanidade como seus antecessores, no esquema estado de natureza – Estado Civil, sendo o primeiro a fase negativa e o segundo, a positiva. Sua concepção, segundo Bobbio, foi triádica: estado de natureza, sociedade civil e República. O momento negativo (estado de guerra) estaria entre dois momentos positivos[67]. O homem era feliz e pacífico no estado de natureza, que não poderia durar por causa das inovações, como a instituição da propriedade, degenerando na sociedade civil[68], de onde seria resgatado pelo contrato social:
“O que importa é que, também para ele, como para todos os jusnaturalistas, o estado que precede o estado de razão, o estado no qual a humanidade deverá encontrar a solução de seus próprios problemas mundanos, surge como antítese ao estado precedente: a diferença de Rousseau e os outros é que, para esses, o estado precedente é o estado de natureza – seja esse estado de guerra efetiva (Hobbes e Spinoza) ou de guerra potencial (Locke e Kant), seja um estado de miséria (Pufendorf) -, enquanto que para Rousseau é a ‘société civile’”. (Bobbio & Bovero, 1994, p. 56)
Para Rousseau, a República seria todo Estado regido por Leis[69], independentemente de qual forma e regime adotasse, pois para governar só o interesse público e a coisa pública representariam algo: “Todo Governo legítimo é republicano.”[70] Pelo contrato social deu-se vida ao corpo político, então, pela legislação lhes seriam conferidos movimento e vontade. A Lei, emanada da “vontade geral”, faria parte do Estado, cujo objeto seria sempre geral e abstrato, abrangendo sob sua influência, além dos cidadãos, os governantes. E o povo que a ela se submeteu, obviamente, devia ser seu autor.[71] Sendo o povo o titular da “vontade geral”, que deu ânimo à Lei e, dessa forma, fez parte do Estado, Rousseau conseguiu conciliar liberdade e Estado, ao contrário de Hobbes, cujo preço do Estado e sua paz era a liberdade. Se na teoria do inglês os homens abandonavam sua liberdade pela servidão civil, em Rousseau, os homens abandonavam a “liberdade natural” pela “liberdade civil”[72] (no Estado) – superior e com maior plenitude - e a propriedade de tudo o que possuía. A “liberdade natural” teria como fronteiras as forças do indivíduo isolado, já a “liberdade civil” estaria limitada pela “vontade geral”, tal como o exposto: “Além do sobredito, pudera-se ajuntar à aquisição do Estado Civil a liberdade moral, que só faz o homem verdadeiramente senhor de si; pois o único estímulo do apetite é a servidão, e a obediência à Lei prescrita é liberdade (...).”[73]
A importância da Lei Positiva, para Rousseau, era clara e auto-evidente. O “contrato social” podia ser entendido também como um acordo para estabelecer as regras. O legislador devia ser, para atender estas exigências, um homem extraordinário[74], extremo conhecedor do povo. Rousseau olhava com ressalvas a representação política, tanto que não a admitia em nível da soberania. Se a vontade geral fosse exercida por meio de representantes, haveria sobreposição de vontades. E ninguém poderia querer por um outro. Entretanto, isso inviabilizaria a movimentação do corpo político, portanto, admitiu a necessidade de representantes para o Governo. Para evitar que esses representantes se tornassem usurpadores do soberano e se mantivessem quase que infinitamente nos claustros do poder, Rousseau sugeriu que fossem trocados freqüentemente.[75]
O Poder Legislativo, pertencente ao povo, seria a vontade do corpo político e o Poder Executivo, a força.[76] O Governo nada mais seria que um corpo administrativo do Estado, um mecanismo para colocar a máquina política em funcionamento, um corpo intermediário entre os vassalos e o soberano. Dessa forma, o Governo seria um funcionário do soberano, cujos representantes deveriam ser constantemente vigiados, para evitar que, em vez de submeter-se ao povo, tomassem o seu lugar, fazendo-se passar por soberano:
“Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar Leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas Leis signifique, na verdade uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos.” (Nascimento, 1996, p. 196)
Esta preocupação de Rousseau também pode ser vista em John Rawls. Para o norte-americano uma sociedade justa proíbe qualquer tipo de violação dos direitos de uma minoria, mesmo que seja levada a cabo pelos representantes da maioria em cargo político responsável pela condução do órgão estatal. Vemos também que a sociedade civil, em Rousseau, é o estado de guerra. Rawls, de certa maneira, compreende o caos da sociedade contemporânea (permeado de desigualdades, violências num plano sofisticado, como foi destacado outrora nesta dissertação) como um momento negativo, tal como a sociedade civil de Rousseau, que deve ser mudado para um momento positivo, a República. Neste ponto, ambos os autores mostram uma preocupação em mudar o status quo, em busca de justiça social.
Kant: liberdade é agir segundo as leis
Immanuel Kant fez algumas afirmações importantes acerca do conhecimento, em “Fundamentação da metafísica dos costumes” (1785), na qual defendeu que a liberdade seria objeto de estudo da filosofia moral (ética). A ética, em Kant, tinha foco nas leis da liberdade, enquanto a física, nas leis da natureza[77] (ou leis da necessidade). Como em Hobbes, Locke e Rousseau, Kant viu na problemática da liberdade a questão primordial para definir o indivíduo, suas relações e a constituição da sociedade política. As leis da liberdade, segundo Kant, poderiam ser dividas em leis internas (relativas ao forum internum do indivíduo) e leis externas (relativas ao forum externum). Essa divisão, aliás, deu nova dimensão ao jusnaturalismo, pois delineou os limites do poder político e afirmou a inviolabilidade do indivíduo[78], além de diferenciar a legislação moral da legislação jurídica e, conseqüentemente, as ações morais das ações jurídicas. Em qualquer dessas duas legislações, Kant, como Rousseau, salientou que liberdade é agir segundo as leis:[79]
“Cada coisa na natureza atua segundo certas leis. Só um ser racional possui a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, por princípios, ou, só ele possui uma vontade. Se a razão determina infalivelmente a vontade, então as ações de tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, ou seja, a vontade é a faculdade de não escolher nada mais que a razão, independentemente da inclinação: conhece-a como praticamente necessária, quer dizer, como algo bom.” (FMC, p. 43)
O filósofo de Königsberg desenvolveu sua filosofia política, moral e jurídica em torno da idéia de que as pessoas são seres morais, que deviam organizar-se “segundo o Direito, adotar a forma republicana de Governo e estabelecer a paz universal, porque tais comandos são a priori da razão”[80]. A doutrina do imperativo categórico delineou o caráter deontológico da filosofia moral e política kantiana. De acordo com essa doutrina, toda norma moral teria a forma de um imperativo categórico[81], que contém um comando que prescreve uma relação entre um “dever ser” (sollen), definida objetivamente pela razão, e os móveis humanos, de origem subjetiva que não conduziriam a fortiori à realização do fim moral prescrito[82]. Kant definiu o imperativo categórico assim: “Age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”[83] Em outros termos, Kant dizia que a natureza racional existia como fim em si mesma. Dessa idéia, Kant constatou que, devido à sua universalidade, as normas morais que regem o comportamento seriam elaboradas pelos seres humanos, somente enquanto seres racionais. Cada homem e a humanidade seriam fins em si mesmos, como prescrito na formulação do imperativo prático: “Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.”[84] Aqui, Kant deu destaque à dignidade[85] do indivíduo, demonstrando que este seria o fundamento do seu direito inato à liberdade, que, tal como visto anteriormente, seria agir segundo as leis, num prisma objetivo:
“Todo os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Decorre daí, contudo, uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, isto é, um reino que, justamente porque essas leis têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meios, pode ser chamado de reino dos fins (desde que não passe de um ideal).
Um ser racional pertence ao reino dos fins na condição de membro quando nele é legislador universal, ainda que igualmente submetido a essas leis. Pertence-lhe na condição de chefe quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro. O ser racional tem de se considerar sempre como legislador em um reino de fins possível pela liberdade da vontade, seja como membro, seja como chefe. Mas o lugar desse último não o pode assegurar só pela máxima da sua vontade, mas tão-somente ao se fazer um ser totalmente independente, sem necessidade nem restrição de uma faculdade adequada à vontade. (...) O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida.” (FMC, p. 64)
Podemos estabelecer um paralelo um pouco mais preciso sobre a diferença entre a legislação (ação) moral e a legislação (ação) jurídica, a partir da primeira parte da “Metafísica dos costumes”, intitulada de “Doutrina do Direito” (1797). No quesito formal, distinguem-se moralidade e legalidade. A ação moral em Kant, segundo Bobbio, teria três requisitos fundamentais:
“1-) ação moral é a realizada não para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente para obedecer à lei do dever. Existem ações que aparentemente são honestas, mas não podem ser chamadas morais, porque são cumpridas por impulsos diversos daquele do cumprimento do dever (...);
2-) ação moral é aquela que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina. Em outras palavras, a ação moral não deve ser determinada por um objeto qualquer da nossa faculdade de desejar (por exemplo, pelo fim da felicidade, ou da saúde, ou do bem-estar), mas unicamente pelo princípio da vontade;
3-) a ação moral é aquela que não é movida por outra inclinação a não ser o respeito à lei. Na conduta moral, cada impulso subjetivo deve ser excluído; o único impulso subjetivo compatível com a moralidade é o sentido de respeito à lei moral, que deve vencer qualquer outra inclinação.” (Bobbio, 2000, p. 87-88)
A ação moral seria cumprida por dever, sendo inadmissível que tenha sido executada devido a uma inclinação ou interesse que seja diferente do respeito ao dever, sendo caso da legislação moral, portanto, demonstração de moralidade. Quando as ações se referissem à exterioridade, de simples conformidade da ação com a Lei, tratava-se da legislação jurídica (Direito), ou seja, um caso de legalidade. “E então se diz que a simples conformidade da ação externa com as leis jurídicas constitui a sua legalidade; sua conformidade com as leis morais é sua moralidade.”[86] Dentro deste esquema de dualidade, aquelas que fossem externamente promulgadas constituiriam o Direito. [87]
Tanto as leis morais quanto as jurídicas estabeleceriam deveres, mas só a estas poderiam exigir seu cumprimento coativamente, embora ambas tenham fundamento na vontade. Se na relação moral, havia responsabilidade do homem consigo mesmo, na relação jurídica, havia preocupação na relação externa com o outro. Com a mesma argumentação para definir a ação moral, Kant diferenciou a legislação interna da legislação externa, seguindo a tradição do jusnaturalismo e iluminismo alemão.[88] Ampliando esse raciocínio, diríamos que a liberdade teria dois significados, em Kant, a liberdade interna (moral) e a liberdade externa (jurídica). “Por ‘liberdade moral’ deve ser entendida, segundo Kant, a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; por ‘liberdade jurídica’, a faculdade de agirmos no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como nós, interna e externamente.”[89]
Na liberdade interna, ou moral, versava-se sobre uma relação do indivíduo consigo mesmo (consciência). Na liberdade externa, jurídica, dispunha-se de uma relação do indivíduo com os outros, na qual podia ser responsabilizado por uma ação diante dos outros, coletivamente considerados (o Estado representa essa vontade coletiva), que podiam compeli-lo a assumir tal responsabilidade. Na moral, embora a liberdade fosse considerada internamente, os outros não seriam ignorados por completo, seriam apenas vistos como objetos – ou referencial à ação – cuja valoração moral independeria de uma contestação. Por outro lado, no Direito, os outros não seriam objetos, mas sujeitos que exigiriam que o indivíduo cumprisse uma ação. Aí, notamos a figura da relação jurídica, um nexo de reciprocidade entre o dever (cumprir a Lei) e o direito como uma faculdade subjetiva de compelir ao cumprimento.[90]
A diferenciação entre moral e Direito teve também como critério os conceitos de autonomia e heteronomia. Autonomia seria a faculdade de se autolegislar, daí, a vontade moral seria uma vontade autônoma, por excelência. Ou seja: “A autonomia da vontade é a constituição da vontade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer).”[91] Desse conceito, definiu o de heteronomia: “Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não na aptidão de suas máximas para sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é sempre a heteronomia. Não é, pois, a vontade que dá a lei a si mesma, mas sim o objeto que por sua relação com a vontade dá a essa Lei.”[92]
O Direito, portanto, assumiu destaque principal na questão da formação e regulação do Estado (representante da vontade coletiva), em Kant, pois lidava com as relações exteriores e práticas de uma pessoa com outra, desde que houvesse uma influência (mediata ou imediata) de uma sobre outra; não indicava relação de desejos, porém, relação de arbítrios - de um agente para com outro; e a discussão se alentava tão somente sobre a forma e não sobre a matéria do arbítrio, ou seja, sobre o arbítrio das partes no aspecto da liberdade, de modo que a ação de um não constituísse empecilho à liberdade do outro, como prescrito por uma Lei geral.[93] Kant definiu o princípio universal do Direito: “É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais.”[94]
Nosso próximo passo é descrever a passagem do estado de natureza para o Estado Civil e sua evolução em torno do Direito Privado e do Direito Estatal[95], no contratualismo kantiano. O estado de natureza, para Kant, é o estado não-jurídico. As Leis Naturais derivariam de princípios a priori, não requerendo promulgação pública, constituindo o Direito Privado. Já as Leis Positivas dariam origem ao Direito Estatal, expressando a deliberação dos legisladores, representando a vontade geral do povo, unificada na sociedade civil.[96] Esta incompatibilidade, porém, seria apenas aparente, pois os Direitos Naturais, derivados de princípios a priori de uma Constituição Civil, não poderiam ser atacadas pelas Leis Positivas.[97]
A distinção entre Direito Privado, ou dos Privados, como prefere Bobbio, e o Direito Estatal seria mais no âmbito racional que empírico. Na primeira esfera, não haveria imposição de uma autoridade superior e os indivíduos isolados travariam as relações jurídicas, como num estado de natureza; na segunda, as relações jurídicas entre os cidadãos, ou entre os cidadãos e o Estado, seriam sistematizadas e reguladas por uma autoridade superior, configurando uma característica própria do Estado Civil.[98] Os membros reunidos numa sociedade civil seriam chamados de cidadãos, que teriam algumas faculdades indissociáveis dessa condição, como: a liberdade legal de só obedecer às Leis que tivessem dado seu sufrágio; a igualdade civil, de não reconhecer autoridade superior entre os seus pares, exceto daquele que estiver em posição de exigir juridicamente desde que também pudesse ser obrigado; a independência civil de ser devedor de sua existência e conservação, na sociedade civil, ser oriunda dos seus próprios direitos e faculdades e não de outra pessoa, possuindo personalidade civil que não poderia ser delegada a outrem, nos assuntos de caráter jurídico.[99] Observemos que, em Kant, a sociedade civil era vista como sendo daqueles que se relacionavam em conformidade com as Leis promulgadas publicamente; em sua visão de um todo, com relação aos individuais, a sociedade civil foi denominada de Estado. Sobre a transição do estado de natureza para o Estado Civil, Kant escreveu:
“É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como Seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um poder suficiente, que não é do indivíduo e sim de um poder exterior. Em outros termos, é preciso antes de tudo entrar num Estado Civil.” (DD, p. 150-151)
Se, em Rousseau, a sociedade civil corrompia os homens, que, no estado de natureza, seriam inocentes, em Kant, os seres humanos teriam potencial tanto para o bem quanto para o mal. Ele via os homens como seres fenomenais – determinados pela natureza – e como seres nomenais ou inteligentes – determinados pela escolha ou vontade. O contrato social kantiano, dessa maneira, seria uma idéia a priori da razão pura prática, que, sem a celebração do mesmo, seria impossível uma sociedade civil. Independentemente do regime de Governo adotado, portanto, o Estado seria algo que poderia ser desfrutado somente por seres físicos e inteligentes, cujo acordo foi realizado por pessoas livres e iguais. A explicação disso estaria no fato de que a razão seria uma forma de pensar universal, interpessoal e imparcial, não se restringindo a um ou outro indivíduo, mas repousando como base do “pensamento coletivo”. O contrato social criaria uma vontade geral unificada, que justificaria o uso da coerção legal, aproximando Kant do pensamento de Rousseau, no sentido de os cidadãos, no Estado Civil, disporem de uma liberdade com limites, que estaria ligada, inevitavelmente, com a possibilidade de punição, em caso de infrações, como maneira de se evitar comportamentos que pudessem interferir na cooperação social pacífica[100]:
“Entre todos os contratos pelos quais se liga uma multidão de homens se religa numa sociedade (pactum sociale), o contrato que entre eles estabelece uma constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma espécie tão peculiar que, embora tenha muito em comum, quanto à execução, com todos os meios (que visam a obtenção em comum de qualquer outro fim), se distingue, no entanto, essencialmente de todos os outros no princípio da sua instituição (constitutionis civilis). A união de muitos homens em vista de um fim (comum) qualquer (que todos têm), encontra-se em todos os contratos de sociedade; mas a união dos mesmos homens entre si mesmos é um fim (que cada qual deve ter), por conseguinte, a união em toda a relação exterior dos homens, em geral, que não podem deixar de se enredar em influência recíproca, é um dever incondicionado e primordial: uma tal união só pode encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num Estado Civil, isto é, constitui uma comunidade (gemein Wesen). Ora o fim, que em semelhante relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal (conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o Direito dos homens sob leis públicas de coação, graças às quais se pode determinar a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem.” (PP, p. 73-74)
O consentimento dos cidadãos (como seres iguais), como fundamento do contrato social que deu origem à sociedade civil e ao Estado, seria também justificativa para que os contratantes vigiassem as ações dos legisladores e outros agentes públicos no controle da máquina estatal. Então, os legisladores e demais agentes públicos deveriam assegurar a maior discussão pública possível das políticas e novas Leis, no entanto, isso seria mais bem implementado se os legisladores e agentes públicos estimulassem o maior esclarecimento do seu povo, permitindo maior acesso à educação nos moldes acadêmicos. Para Kant, um reino filosófico, ou acadêmico, independente seria vital na sua concepção de Estado. Se o Estado foi originado por um contrato social, era evidente que a vigilância sobre o mesmo deveria ser realizada de maneira crítica.[101]
* Este texto é o capítulo I da dissertação de mestrado "A justiça além do discurso jurídico: ensaio sobre o neocontratualismo de John Rawls", de Roger Moko Yabiku.
Immanuel Kant fez algumas afirmações importantes acerca do conhecimento, em “Fundamentação da metafísica dos costumes” (1785), na qual defendeu que a liberdade seria objeto de estudo da filosofia moral (ética). A ética, em Kant, tinha foco nas leis da liberdade, enquanto a física, nas leis da natureza[77] (ou leis da necessidade). Como em Hobbes, Locke e Rousseau, Kant viu na problemática da liberdade a questão primordial para definir o indivíduo, suas relações e a constituição da sociedade política. As leis da liberdade, segundo Kant, poderiam ser dividas em leis internas (relativas ao forum internum do indivíduo) e leis externas (relativas ao forum externum). Essa divisão, aliás, deu nova dimensão ao jusnaturalismo, pois delineou os limites do poder político e afirmou a inviolabilidade do indivíduo[78], além de diferenciar a legislação moral da legislação jurídica e, conseqüentemente, as ações morais das ações jurídicas. Em qualquer dessas duas legislações, Kant, como Rousseau, salientou que liberdade é agir segundo as leis:[79]
“Cada coisa na natureza atua segundo certas leis. Só um ser racional possui a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, por princípios, ou, só ele possui uma vontade. Se a razão determina infalivelmente a vontade, então as ações de tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, ou seja, a vontade é a faculdade de não escolher nada mais que a razão, independentemente da inclinação: conhece-a como praticamente necessária, quer dizer, como algo bom.” (FMC, p. 43)
O filósofo de Königsberg desenvolveu sua filosofia política, moral e jurídica em torno da idéia de que as pessoas são seres morais, que deviam organizar-se “segundo o Direito, adotar a forma republicana de Governo e estabelecer a paz universal, porque tais comandos são a priori da razão”[80]. A doutrina do imperativo categórico delineou o caráter deontológico da filosofia moral e política kantiana. De acordo com essa doutrina, toda norma moral teria a forma de um imperativo categórico[81], que contém um comando que prescreve uma relação entre um “dever ser” (sollen), definida objetivamente pela razão, e os móveis humanos, de origem subjetiva que não conduziriam a fortiori à realização do fim moral prescrito[82]. Kant definiu o imperativo categórico assim: “Age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”[83] Em outros termos, Kant dizia que a natureza racional existia como fim em si mesma. Dessa idéia, Kant constatou que, devido à sua universalidade, as normas morais que regem o comportamento seriam elaboradas pelos seres humanos, somente enquanto seres racionais. Cada homem e a humanidade seriam fins em si mesmos, como prescrito na formulação do imperativo prático: “Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.”[84] Aqui, Kant deu destaque à dignidade[85] do indivíduo, demonstrando que este seria o fundamento do seu direito inato à liberdade, que, tal como visto anteriormente, seria agir segundo as leis, num prisma objetivo:
“Todo os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Decorre daí, contudo, uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, isto é, um reino que, justamente porque essas leis têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meios, pode ser chamado de reino dos fins (desde que não passe de um ideal).
Um ser racional pertence ao reino dos fins na condição de membro quando nele é legislador universal, ainda que igualmente submetido a essas leis. Pertence-lhe na condição de chefe quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro. O ser racional tem de se considerar sempre como legislador em um reino de fins possível pela liberdade da vontade, seja como membro, seja como chefe. Mas o lugar desse último não o pode assegurar só pela máxima da sua vontade, mas tão-somente ao se fazer um ser totalmente independente, sem necessidade nem restrição de uma faculdade adequada à vontade. (...) O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida.” (FMC, p. 64)
Podemos estabelecer um paralelo um pouco mais preciso sobre a diferença entre a legislação (ação) moral e a legislação (ação) jurídica, a partir da primeira parte da “Metafísica dos costumes”, intitulada de “Doutrina do Direito” (1797). No quesito formal, distinguem-se moralidade e legalidade. A ação moral em Kant, segundo Bobbio, teria três requisitos fundamentais:
“1-) ação moral é a realizada não para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente para obedecer à lei do dever. Existem ações que aparentemente são honestas, mas não podem ser chamadas morais, porque são cumpridas por impulsos diversos daquele do cumprimento do dever (...);
2-) ação moral é aquela que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina. Em outras palavras, a ação moral não deve ser determinada por um objeto qualquer da nossa faculdade de desejar (por exemplo, pelo fim da felicidade, ou da saúde, ou do bem-estar), mas unicamente pelo princípio da vontade;
3-) a ação moral é aquela que não é movida por outra inclinação a não ser o respeito à lei. Na conduta moral, cada impulso subjetivo deve ser excluído; o único impulso subjetivo compatível com a moralidade é o sentido de respeito à lei moral, que deve vencer qualquer outra inclinação.” (Bobbio, 2000, p. 87-88)
A ação moral seria cumprida por dever, sendo inadmissível que tenha sido executada devido a uma inclinação ou interesse que seja diferente do respeito ao dever, sendo caso da legislação moral, portanto, demonstração de moralidade. Quando as ações se referissem à exterioridade, de simples conformidade da ação com a Lei, tratava-se da legislação jurídica (Direito), ou seja, um caso de legalidade. “E então se diz que a simples conformidade da ação externa com as leis jurídicas constitui a sua legalidade; sua conformidade com as leis morais é sua moralidade.”[86] Dentro deste esquema de dualidade, aquelas que fossem externamente promulgadas constituiriam o Direito. [87]
Tanto as leis morais quanto as jurídicas estabeleceriam deveres, mas só a estas poderiam exigir seu cumprimento coativamente, embora ambas tenham fundamento na vontade. Se na relação moral, havia responsabilidade do homem consigo mesmo, na relação jurídica, havia preocupação na relação externa com o outro. Com a mesma argumentação para definir a ação moral, Kant diferenciou a legislação interna da legislação externa, seguindo a tradição do jusnaturalismo e iluminismo alemão.[88] Ampliando esse raciocínio, diríamos que a liberdade teria dois significados, em Kant, a liberdade interna (moral) e a liberdade externa (jurídica). “Por ‘liberdade moral’ deve ser entendida, segundo Kant, a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; por ‘liberdade jurídica’, a faculdade de agirmos no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como nós, interna e externamente.”[89]
Na liberdade interna, ou moral, versava-se sobre uma relação do indivíduo consigo mesmo (consciência). Na liberdade externa, jurídica, dispunha-se de uma relação do indivíduo com os outros, na qual podia ser responsabilizado por uma ação diante dos outros, coletivamente considerados (o Estado representa essa vontade coletiva), que podiam compeli-lo a assumir tal responsabilidade. Na moral, embora a liberdade fosse considerada internamente, os outros não seriam ignorados por completo, seriam apenas vistos como objetos – ou referencial à ação – cuja valoração moral independeria de uma contestação. Por outro lado, no Direito, os outros não seriam objetos, mas sujeitos que exigiriam que o indivíduo cumprisse uma ação. Aí, notamos a figura da relação jurídica, um nexo de reciprocidade entre o dever (cumprir a Lei) e o direito como uma faculdade subjetiva de compelir ao cumprimento.[90]
A diferenciação entre moral e Direito teve também como critério os conceitos de autonomia e heteronomia. Autonomia seria a faculdade de se autolegislar, daí, a vontade moral seria uma vontade autônoma, por excelência. Ou seja: “A autonomia da vontade é a constituição da vontade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer).”[91] Desse conceito, definiu o de heteronomia: “Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não na aptidão de suas máximas para sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é sempre a heteronomia. Não é, pois, a vontade que dá a lei a si mesma, mas sim o objeto que por sua relação com a vontade dá a essa Lei.”[92]
O Direito, portanto, assumiu destaque principal na questão da formação e regulação do Estado (representante da vontade coletiva), em Kant, pois lidava com as relações exteriores e práticas de uma pessoa com outra, desde que houvesse uma influência (mediata ou imediata) de uma sobre outra; não indicava relação de desejos, porém, relação de arbítrios - de um agente para com outro; e a discussão se alentava tão somente sobre a forma e não sobre a matéria do arbítrio, ou seja, sobre o arbítrio das partes no aspecto da liberdade, de modo que a ação de um não constituísse empecilho à liberdade do outro, como prescrito por uma Lei geral.[93] Kant definiu o princípio universal do Direito: “É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais.”[94]
Nosso próximo passo é descrever a passagem do estado de natureza para o Estado Civil e sua evolução em torno do Direito Privado e do Direito Estatal[95], no contratualismo kantiano. O estado de natureza, para Kant, é o estado não-jurídico. As Leis Naturais derivariam de princípios a priori, não requerendo promulgação pública, constituindo o Direito Privado. Já as Leis Positivas dariam origem ao Direito Estatal, expressando a deliberação dos legisladores, representando a vontade geral do povo, unificada na sociedade civil.[96] Esta incompatibilidade, porém, seria apenas aparente, pois os Direitos Naturais, derivados de princípios a priori de uma Constituição Civil, não poderiam ser atacadas pelas Leis Positivas.[97]
A distinção entre Direito Privado, ou dos Privados, como prefere Bobbio, e o Direito Estatal seria mais no âmbito racional que empírico. Na primeira esfera, não haveria imposição de uma autoridade superior e os indivíduos isolados travariam as relações jurídicas, como num estado de natureza; na segunda, as relações jurídicas entre os cidadãos, ou entre os cidadãos e o Estado, seriam sistematizadas e reguladas por uma autoridade superior, configurando uma característica própria do Estado Civil.[98] Os membros reunidos numa sociedade civil seriam chamados de cidadãos, que teriam algumas faculdades indissociáveis dessa condição, como: a liberdade legal de só obedecer às Leis que tivessem dado seu sufrágio; a igualdade civil, de não reconhecer autoridade superior entre os seus pares, exceto daquele que estiver em posição de exigir juridicamente desde que também pudesse ser obrigado; a independência civil de ser devedor de sua existência e conservação, na sociedade civil, ser oriunda dos seus próprios direitos e faculdades e não de outra pessoa, possuindo personalidade civil que não poderia ser delegada a outrem, nos assuntos de caráter jurídico.[99] Observemos que, em Kant, a sociedade civil era vista como sendo daqueles que se relacionavam em conformidade com as Leis promulgadas publicamente; em sua visão de um todo, com relação aos individuais, a sociedade civil foi denominada de Estado. Sobre a transição do estado de natureza para o Estado Civil, Kant escreveu:
“É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como Seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um poder suficiente, que não é do indivíduo e sim de um poder exterior. Em outros termos, é preciso antes de tudo entrar num Estado Civil.” (DD, p. 150-151)
Se, em Rousseau, a sociedade civil corrompia os homens, que, no estado de natureza, seriam inocentes, em Kant, os seres humanos teriam potencial tanto para o bem quanto para o mal. Ele via os homens como seres fenomenais – determinados pela natureza – e como seres nomenais ou inteligentes – determinados pela escolha ou vontade. O contrato social kantiano, dessa maneira, seria uma idéia a priori da razão pura prática, que, sem a celebração do mesmo, seria impossível uma sociedade civil. Independentemente do regime de Governo adotado, portanto, o Estado seria algo que poderia ser desfrutado somente por seres físicos e inteligentes, cujo acordo foi realizado por pessoas livres e iguais. A explicação disso estaria no fato de que a razão seria uma forma de pensar universal, interpessoal e imparcial, não se restringindo a um ou outro indivíduo, mas repousando como base do “pensamento coletivo”. O contrato social criaria uma vontade geral unificada, que justificaria o uso da coerção legal, aproximando Kant do pensamento de Rousseau, no sentido de os cidadãos, no Estado Civil, disporem de uma liberdade com limites, que estaria ligada, inevitavelmente, com a possibilidade de punição, em caso de infrações, como maneira de se evitar comportamentos que pudessem interferir na cooperação social pacífica[100]:
“Entre todos os contratos pelos quais se liga uma multidão de homens se religa numa sociedade (pactum sociale), o contrato que entre eles estabelece uma constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma espécie tão peculiar que, embora tenha muito em comum, quanto à execução, com todos os meios (que visam a obtenção em comum de qualquer outro fim), se distingue, no entanto, essencialmente de todos os outros no princípio da sua instituição (constitutionis civilis). A união de muitos homens em vista de um fim (comum) qualquer (que todos têm), encontra-se em todos os contratos de sociedade; mas a união dos mesmos homens entre si mesmos é um fim (que cada qual deve ter), por conseguinte, a união em toda a relação exterior dos homens, em geral, que não podem deixar de se enredar em influência recíproca, é um dever incondicionado e primordial: uma tal união só pode encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num Estado Civil, isto é, constitui uma comunidade (gemein Wesen). Ora o fim, que em semelhante relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal (conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o Direito dos homens sob leis públicas de coação, graças às quais se pode determinar a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem.” (PP, p. 73-74)
O consentimento dos cidadãos (como seres iguais), como fundamento do contrato social que deu origem à sociedade civil e ao Estado, seria também justificativa para que os contratantes vigiassem as ações dos legisladores e outros agentes públicos no controle da máquina estatal. Então, os legisladores e demais agentes públicos deveriam assegurar a maior discussão pública possível das políticas e novas Leis, no entanto, isso seria mais bem implementado se os legisladores e agentes públicos estimulassem o maior esclarecimento do seu povo, permitindo maior acesso à educação nos moldes acadêmicos. Para Kant, um reino filosófico, ou acadêmico, independente seria vital na sua concepção de Estado. Se o Estado foi originado por um contrato social, era evidente que a vigilância sobre o mesmo deveria ser realizada de maneira crítica.[101]
* Este texto é o capítulo I da dissertação de mestrado "A justiça além do discurso jurídico: ensaio sobre o neocontratualismo de John Rawls", de Roger Moko Yabiku.
[1] TJ, I, § 3, p. 12.
[2] Christian DELACAMPAGNE, A filosofia política hoje, p. 86-87.
[3] Ibid., p. 88.
[4] Paulo KRISCHKE, O contrato social ontem e hoje, p. 27.
[5] Ibid.
[6] Grafaremos expressões como “Direito Natural”, “Lei Natural”, “Direito Positivo” e “Lei Positiva”, entre outras do tipo, em letras maiúsculas, quando se referirem ao Direito ou à Lei, em seu aspecto objetivo ou se referirem ao nome de uma teoria. Quando entendermos se tratar de direito ou lei, em sentido comum, adotaremos a grafia em letras minúsculas.
[7] Em português: “Sobre os diversos modos de tratar o direito natural”, como ensinam Norberto BOBBIO & Michelangelo BOVERO, Sociedade e estado na filosofia política moderna, p. 14.
[8] Ibid., p. 13-14.
[9] Hans Kelsen, O que é justiça?, p. 137.
[10] Norberto BOBBIO & Michelangelo BOVERO, Sociedade e estado na filosofia política moderna, p. 12.
[11] Ibid., p. 13.
[12] Ibid., p. 14.
[13] Ibid., p. 15.
[14] Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 25.
[15] Ainda neste capítulo, no item 1.3, examinaremos um pouco mais a fundo as diferenças entre o Direito Natural e a Lei Natural em Hobbes.
[16] David BOUCHER & Paul KELLY, The social contract and its critics, in: ____. The social contract from Hobbes to Rawls, p. 3-11.
[17] Ibid., p. 4.
[18] Ibid.
[19] Ressaltemos que nosso objetivo, nesta dissertação, não foi nos aprofundarmos com relação ao utilitarismo, mas tão-somente marcar passagem com relação às suas críticas ao contratualismo, já que para uma maior análise do positivismo inglês seria necessária uma outra pesquisa, também em profundidade, para que não cometêssemos deslizes conceituais. Por esse motivo e também pela dificuldade de encontrar originais das obras de pensadores como Jeremy Bentham, optamos por nos ancorar em interpretes dos utilitaristas, membros da International Society for Utilitarian Studies (ISUS).
[20] Luis Alberto PELUSO, Utilitarismo e ação social, in: ____. Ética e utilitarismo, p. 13.
[21] Philip SCHOFIELD, O positivismo jurídico e a rejeição da teoria contratualista, in: Luis Alberto PELUSO (org.), Ética & utilitarismo, p. 152.
[22] Ibid., p. 166.
[23] Ibid., p. 163.
[24] Paulo KRISCHKE, O contrato social ontem e hoje, p. 28.
[25] Johannes ALTHUSSIUS, Política e associação humana, in: Paulo KRISCHKE, O contrato social ontem e hoje, p. 38-60.
[26] Paulo KRISCHKE, O contrato social ontem e hoje, p. 28-29.
[27] DC, I, § 1, p. 28.
[28] LT, p. 101; DC, I, §§ 7-8, p. 31.
[29] DC, I, §§ 10-12, p. 32-33.
[30] Ibid., §§ 13-14, p. 34-36.
[31] No Direito Natural, o homem utiliza a razão para satisfazer-se como indivíduo, no exercício da sua liberdade. Na Lei Natural, não se fala de razão ‘egoísta’, mas de uma ‘reta razão’, que está em conformidade com um mandamento que não pode ser violado, ou seja, que condiciona a liberdade. “No curso desse processo os homens eram guiados para buscar sua liberdade original, visando somente a satisfação das suas paixões individuais, mas eles devem ser guiados não somente pela razão – no sentido de cálculos para prover o próprio interesse -, mas pela reta razão, na forma das Leis da Natureza”, conforme nossa tradução de Murray FORSYTH, Hobbes’s contractarianism – a comparative analysis, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.), The social contract from Hobbes to Rawls, p. 43.
[32] LT, XIV, p. 107.
[33] Ibid., p. 101-102.
[34] Ibid., p. 102.
[35] Para Hobbes, a Terceira Lei Natural – os pactos devem ser cumpridos por aqueles que os celebrarem – é a fonte e a origem da justiça. Injustiça é não cumprir o acordado. (LT, XV, p. 111)
[36] Ibid, p. 106.
[37] Por Lei Civil entende-se norma emanada de órgão estatal competente, em geral, e não somente as normas que compõem o Direito Civil e regem as relações entre os particulares, como conceituam os juristas contemporâneos. No nosso entendimento, a Lei Civil hobbesiana é o Direito Positivo, produzido por quem tiver competência legislativa para tal, que salvaguarda a Lei Natural (da “reta-razão”).
[38] Ibid., p. 199. Em vez de lei escrita, pensamos que seria mais oportuno se Hobbes utilizasse o termo “Lei Positiva”, para não criar confusão entre os dois grandes sistemas jurídicos, a “Common Law” - cujas fontes do Direito, em grande parte, não são escritas –, empregado usualmente nos países de influência inglesa, e a “Civil Law”, cuja fonte imediata é a lei escrita, com tradição fortemente arraigada no Direito Romano-Germânico.
[39] DC, V, §§ 5-6, p. 94-95.
[40] O conselho hobbesiano num primeiro momento exerce função de uma Assembléia Constituinte e, num segundo momento, parece a ter uma função semelhante a do Poder Legislativo, numa democracia representativa. O Parlamento (bicameral ou unicameral), constituído de representantes do povo, delibera sobre assuntos de interesse nacional e faz as Leis que regem as relações entre as pessoas (seja entre elas mesmas e entre o Estado).
[41] DC, V, § 9, p. 97; LT, XVII, p. 131.
[42] LT, XVIII, p. 131-134.
[43] ST, II, § 6, p. 24.
[44] Mariano GRONDONA, Os pensadores da liberdade, p. 21.
[45] Em certos momentos, alguns autores interpretam a “propriedade”, de Locke, num sentido amplo, que congregaria o conjunto dos direitos do indivíduo, avalia Mariano GRONDONA, Os pensadores da liberdade, p. 25. Locke escreveu que o maior e principal objetivo do Governo seria a preservação da propriedade. (ST, IX, § 124, p. 92)
[46] Mariano GRONDONA, Os pensadores da liberdade, p. 21-24; ST, V, §§ 25-51, p.37-50.
[47] ST, II, § 13, p. 28-29.
[48] ST, III, §§ 16-21, p. 31-34.
[49] Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 60.
[50] Mariano GRONDONA, Os pensadores da liberdade, p. 24.
[51] Ao consagrar o Poder Legislativo nas mãos de grupos de homens, Locke preferiu a democracia representativa – em regime parlamentarista, diga-se de passagem, no qual o Poder Executivo é um apêndice do Legislativo - face ao absolutismo. (ST, VII, § 94, p. 73-74) “A oposição de Locke ao absolutismo é baseada na idéia de que o Governo é fundado no consentimento individual e que há limites claros nas vontades dos indivíduos ou quando devem dar seu consentimento e a quem ele se dirige. (...) O contrato social representa os direitos individuais contra o Governo no sentido de se ter uma luz sobre quais limites teriam sido consentidos para sair do estado de natureza”, conforme trecho que traduzimos de Jeremy WALDRON, John Locke: social contract versus political anthropology, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.), The social contract from Hobbes to Rawls, p. 54.
[52] ST, VII, §§ 88-89, p. 70.
[53] Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 63-64.
[54] Mariano GRONDONA, Os pensadores da liberdade, p. 28-30. A questão da prioridade do “direito” (right), ou justo, sobre o “bem”, também foi fundamental no trabalho de John Rawls. (CP, p. 449-472; TJ, I, § 6, p. 34; JD, VI, p. 291-331; LP, V, p. 221-261)
[55] Jeremy JENNINGS, Rousseau, social contract and the modern Leviathan, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.), The social contract from Hobbes to Rawls, p. 117.
[56] A conciliação das dimensões privada e pública dos interesses do indivíduo, vista por Rousseau como um contrato de alienação dos próprios direitos, tem nova interpretação na contemporaneidade. Na teoria de John Rawls, esses poderes (faculdades) morais da pessoa, como ser político, são: que cada indivíduo tenha capacidade para ter “uma noção de bem” e que tenha capacidade para ter “um senso de justiça”. (CP, p. 96-116; LP, I, § 5, p. 72-78; JFR, I, § 7, p. 18-24)
[57] CS, livro I, VI, p. 31.
[58] David BOUCHER & Paul KELLY, The social contract and its critics, in: ____. The social contract from Hobbes to Rawls, p. 6-7.
[59] Jeremy JENNINGS, Rousseau, social contract and the modern Leviathan, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.). The social contract from Hobbes to Rawls, p. 117-118.
[60] Para evitarmos confusão, entenderemos que o “pacto social entre ricos e pobres”, na segunda parte de DOD, que teve como resultado histórico o Estado, foi maculado com engano, sendo, então, nulo. Já o “contrato social”, do livro homônimo, seria uma idéia reguladora da razão pela qual o homem reencontraria a felicidade, que fora perdida ao ser corrompido pela sociedade civil, tal como é a idéia de Norberto BOBBIO & Michelangelo BOVERO, Sociedade e estado na filosofia política moderna, p. 64-65. No mesmo sentido versa a nota 122 de DOD, p. 100.
[61] CS, livro I, VIII, p. 34, grifo nosso.
[62] Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.). Os clássicos da política, v. 1, p. 194-195; DOD, p. 97-101.
[63] Cremos que talvez fosse mais adequado o emprego do termo Direito Positivo, em vez de Direito Civil.
[64] O contrato celebrado em DOD, segundo Rousseau, foi um “contrato dos ricos”, distinto do “verdadeiro contrato” preconizado em CS.
[65] Ibid., p. 195.
[66] Ibid.; CS, livro I, VI, p. 32.
[67] “Erguia-se entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante um conflito permanente que só terminava por meio de combates e de assassinatos. A sociedade em formação foi substituída pelo mais horrível estado de guerra: o gênero humano, aviltado e arrasado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições que fizera, e trabalhando apenas para sua vergonha, pelo abuso das faculdades que o dignificaram, colocou-se às vésperas de sua ruína.” (DOD, p. 98)
[68] Norberto BOBBIO & Michelangelo BOVERO, Sociedade e estado na filosofia política moderna, p. 55-56.
[69] Escreveremos Lei em letras maiúsculas sempre entendermos haver referência a ato legislativo produzido por órgão estatal em conformidade com o figurino do Direito Positivo.
[70] CS, livro II, VI, p. 48.
[71] Ibid., p. 47-49.
[72] Jeremy Bentham, por sua vez, entendia que a liberdade era apenas uma idéia negativa, incompatível com a Lei, então, não teria sentido dizer que a segunda protegeria a primeira, assim como falar em “liberdade civil e política”. “Bentham rejeitou esta proposta de apresentação porque considerou incoerente tal formulação da liberdade civil e política. Se a liberdade era uma idéia totalmente negativa, concebida como a ausência de coerção, nem a liberdade civil nem a política que dependiam da coerção poderiam ser consideradas liberdades. Bentham propôs que as idéias eram tão diferentes que não era possível utilizar o mesmo termo ‘liberdade’ para fazer referência às duas. Em lugar de ‘liberdade’, que ele limitou em significado à idéia puramente negativa, entendida como ausência de coerção, escolheu o termo ‘segurança’ como o mais apropriado para designar aquilo que tradicionalmente se entendia como liberdade civil e política.” (Rosen, 1998, p. 55)
[73] CS, livro I, VIII, p. 35, grifo nosso; “Obedecer à lei que prescreve a si mesmo é um ato de liberdade. Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant.” (Nascimento, 1996, p. 196)
[74] CS, livro II, VII, p. 50-51.
[75] Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 1, p. 197-198; CS, livro III, XIII, p. 95-97.
[76] CS, livro III, I, p. 63-67.
[77] Observamos que aqui as leis da natureza seriam aquelas que descrevem os fenômenos do universo natural não tendo a mesma significância de Lei Natural (que prescreveriam comportamentos enunciados na razão), seja na teoria de Hobbes ou de Locke, interpretou Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 86.
[78] Reginaldo Castro de ANDRADE, Kant: a liberdade, o indivíduo e a república, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 2, p. 51; “Os membros reunidos de tal sociedade (societas civillis), isto é, de uma cidade para a legislação, chamam-se cidadãos (cives) e seus atributos jurídicos inseparáveis de sua natureza de cidadão são: primeiro, a liberdade legal de não obedecer a nenhuma outra Lei além daquelas a quem tenham dado seu sufrágio; segundo, a igualdade civil, que tem por objeto o não reconhecer entre o povo nenhum superior além daquele que tem a faculdade moral de obrigar juridicamente da mesma maneira que, por sua vez, pode ser obrigado; terceiro, o atributo da independência civil, que consiste em ser devedor da sua existência e de sua conservação, como membro da República, não ao arbítrio de outro no povo, mas sim aos seus próprios direitos e faculdades, e por conseguinte em que a personalidade civil não possa ser representada por nenhum nos assuntos de direito.” (DD, p. 153, grifos nossos)
[79] “This is Kant’s rendering of Rousseau’s statement in the Social Contract, Book I, Chapter 8, paragraph 3: ‘car l’impulsion du seul appétit est esclavage, et l’obéissance a la loi qu’on s’est prescrite est liberté’.” (HMP, p. 204).
[80] Reginaldo Castro de ANDRADE, Kant: a liberdade, o indivíduo e a república, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 2, p. 51; FMC, p. 42.
[81] As aulas de John Rawls, das quais podemos tirar lições valiosas sobre o imperativo categórico de Kant, foram sistematizadas e publicadas em HPM, p. 163-216.
[82] FMC, p. 52.
[83] Ibid., p. 51.
[84] Ibid., p. 59.
[85] Ibid., p. 65.
[86] DD, p. 23.
[87] Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 1, p. 51-56; DD, p. 30-31.
[88] Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 93.
[89] Ibid., p. 95-96.
[90] Ibid., p. 97-100.
[91] FMC, p. 70.
[92] Ibid., p. 71.
[93] DD, p. 44-45.
[94] Ibid., p. 46.
[95] Preferimos utilizar o termo “Direito Estatal”, em vez de “Direito Público”. Entendemos “Direito Público” como sistema de normas de “Direito Estatal” que envolvem – em geral – a constituição e regulação do Estado e suas relações com os particulares, a exemplo do Direito Constitucional, do Direito Administrativo, do Direito Penal, entre outros. “Direito Estatal” seria o Direito Positivo elaborado pelo Estado, conforme processo legislativo, que abrangeria o “Direito Público” e o “Direito Privado”. Note-se que, em Kant, muitas vezes “Direito Privado” é uma referência ao Direito que pré-existia ao Estado (Direito Natural), nem sempre coincidindo com o “Direito Privado Positivo”, cuja principal ramificação é o Direito Civil.
[96] Milton Meira do NASCIMENTO, Rousseau: da servidão à liberdade, in: Francisco C. WEFFORT (org.), Os clássicos da política, v. 1, p. 56; DD, p. 55-56.
[97] DD, p. 77-79.
[98] Norberto BOBBIO, Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, p. 138.
[99] DD, p. 153.
[100] Howard WILLIANS, Kant on the social contract, in: David BOUCHER & Paul KELLY (org.), The social contract from Hobbes to Rawls, p. 134-138.
[101] Ibid., p. 140.
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