sábado, 23 de maio de 2009

ENTRE LIBERDADE E NECESSIDADE: A RESPONSABILIDADE MORAL

ENTRE LIBERDADE E NECESSIDADE: A RESPONSABILIDADE MORAL[i]



PROF. MS. ROGER MOKO YABIKU
[ii]



I – INTRODUÇÃO


O que seria responsabilidade moral? Responsabilidade, em termos gerais, significa que alguma pessoa deve prestar contas por determinadas ações, atitudes, consequências e resultados, mediante algumas condições. Por exemplo, os pais são responsáveis pelos filhos menores de idade, tanto em termos morais, quanto jurídicos. Mas até que ponto os pais são responsáveis pelos atos dos filhos menores?
Esse dilema moral e jurídico acerca da responsabilidade moral traz à tona dois assuntos que lhes são vinculados: a necessidade e a liberdade. Só quando o agente possui liberdade de optar e decidir é que se pode falar em responsabilidade moral.
O assunto, porém, não é tão simples quanto parece. Não basta o exame somente da norma (moral ou jurídica). Faz-se necessária a avaliação da realidade concreta, a fim de verificar se existe possibilidade de escolha ou decisão, para que se possa responsabilizar moralmente alguém.
Isso causa dúvidas com relação a como se imputar a responsabilidade moral. Para que haja responsabilidade moral, há duas condições essenciais: “a-) que o sujeito não ignore nem as circunstâncias nem as consequências da sua ação; ou seja, que o seu comportamento tenha caráter consciente. b-) que a causa dos seus atos esteja nele próprio (ou causa interior), e não em outro agente (ou causa exterior) que o force a agir de certa maneira, contrariando a sua vontade; ou seja, que a sua conduta seja livre.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2004, p. 110)
Nessa perspectiva, a pessoa se exime de responsabilidade moral se for ignorante, de uma parte, e não estiver livre, de outra. Há legitimidade na responsabilidade moral se houver conhecimento por parte do agente e liberdade.

II – IGNORÂNCIA, COAÇÃO EXTERNA E INTERNA

Como responsabilizar uma pessoa com problemas mentais sérios? Agora, uma pequena analogia com o Direito. Não há como, tanto que no Direito Civil, as pessoas com esse tipo de necessidade especial são tidas como absolutamente incapazes, ou seja, totalmente inaptas para os atos da vida civil. E, no Direito Penal, são tidas como inimputáveis, ou seja, isentos de responsabilidade penal. Por exemplo, no âmbito civil, se uma pessoa totalmente insana assina um contrato, sem algum representante legal presente, esse contrato será nulo. A vontade da pessoa totalmente insana é viciada e não tem responsabilidade civil. Na esfera penal, se uma pessoa totalmente insana ou menor de 18 anos comete um crime, ela não será processada criminalmente, porque é inimputável, ou seja, não tem responsabilidade penal.
Só se pode responsabilizar moralmente um ser humano que pode escolher, decidir e agir de maneira consciente. Ou seja, quem é ignorante, em sentido amplo
[iii], não pode ser responsabilizado. Mas até que ponto a ignorância exime o sujeito de responsabildade? Exime-o de responsabilidade desde que esse mesmo sujeito não seja responsável pela causa da sua ignorância. Outra comparação com o Direito. Fala-se em culpa em sentido amplo, que abrange culpa em sentido estrito e dolo. No dolo há intenção de se praticar uma ação. Na culpa em sentido estrito não há necessariamente uma vontade de se praticar uma ação, seria o “foi sem querer, querendo”, como diria o personagem Chaves.
Há três modalidades de culpa em sentido estrito: imperícia (faz as coisas de modo incorreto), imprudência (faz o que não deveria fazer) e negligência (não faz o que deveria fazer). Nesse caso, o agente poderia ter evitado de ter feito algo, ou poderia ter feito, mas não fez. Há responsabilidade jurídica, e também responsabilidade moral. “Em resumo: a ignorância das circunstâncias, da natureza ou das consequências dos atos humanos autoriza a eximir um indivíduo da sua responsabilidade pessoal, mas essa isenção estará justificada somente quando, por sua vez, o indivíduo em questão não for responsável pela sua ignorância; ou seja, quando se encontra na impossibilidade subjetiva (por motivos pessoais) ou objetiva (por motivos históricos) de ser consciente do seu ato pessoal.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 113)
Para se falar em responsabilidade moral, também é preciso que a causa do ato de uma pessoa provenha de sua vontade livre, isto é, venha de dentro dela mesma, e não de fora, de alguém que o force a fazer algum ato. Ou seja, não pode haver coação externa (pressão – seja física ou psicológica - de fora, ou de algum fenômeno da natureza, por exemplo). Assim, se houver um acidente causado por motivo de força maior ou caso fortuito, a pessoa está isenta de responsabilidade moral. Se for forçada por outra pessoa a fazer algo que conscientemente não concorda e não faria se não fosse coagida, também é isenta da responsabilidade moral. Contudo, mesmo com coação externa, há vezes em que o agente tem possibilidade de escolher. Aí, pode ser responsabilizado moralmente.


III – RESPONSABILIDADE MORAL, NECESSIDADE E LIBERDADE
[iv]


Como se viu anteriormente, se o agente não tem liberdade de escolha ou decisão, não há como se falar em responsabilidade moral. Se tudo é determinado pelas necessidades humanas, não há liberdade e, dessa forma, não há de se falar em responsabilidade moral. Porém, esse assunto (a dialética entre a liberdade e a necessidade) é polêmico. Ao exame de três posições: “1º - Se o comportamento do homem é determinado, não tem sentido falar em liberdade e, portanto, em responsabilidade moral. O determinismo é incompatível com a liberdade. 2º - Se o comportamento do homem é determinado, trata-se somente de uma determinação do eu, e nisto consiste a sua liberdade. A liberdade é incompatível com qualquer determinação externa ao sujeito (da natureza ou da sociedade). 3º - Se o comportamento do homem é determinado, esta determinação, longe de impedir a liberdade, é a condição necessária da liberdade. Liberdade e necessidade se conciliam.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 120)
Examina-se, a seguir, essas três posições: o determinismo, o libertarismo e a dialética entre a liberdade e a necessidade.


IV – O DETERMINISMO ABSOLUTO


Tudo tem uma causa. Este é o princípio do determinismo absoluto. O método científico e o positivismo influenciaram deveras a maneira de se pensar no Ocidente. Os fenômenos poderiam ser observados e e confirmados cientificamente, principalmente na física, na química e na biologia. Essa metodologia das ciências físicas, químicas e biológicas – de maior exatidão, precisão e certeza – serviu de alicerce para o processo de constituição das ditas ciências humanas, como o Direito e a Ética.
Se tudo é causado, não há espaço para a liberdade. A livre escolha nada mais seria que uma ilusão. O determinismo absoluto recusa a existência da liberdade. Essa doutrina representada principalmente pelos materialistas franceses do século XVIII, como o barão d’Holbach, versa que os atos humanos são tão somente elos de uma cadeia universal, na qual o passado determina o presente. Se o passado determina o presente, numa cadeia de acontecimentos, não há como se admitir liberdade de escolha, muito menos intervenção livre do homem. Se tudo é causado, não existe liberdade humana e, por conseguinte, não há responsabilidade moral.
No entanto, ao tomar consciência dessas circunstâncias o ser humano pode decidir atuar de determinada maneira, mesmo diante de alternativas de escolhas que lhe são postas, e não escolhidas por ele mesmo. “Por ser dotado de consciência, pode conhecer a causalidade que o determina e atuar conscientemente, transformando-se assim num fator causal determinante. Assim, o homem deixa de ser um mero efeito para ser uma causa consciente de si mesmo e inserir-se conscientemente na trama causal universal.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 122)


V – O LIBERTARISMO

No sentido contrário do determinismo absoluto, há a corrente libertarista. Para o libertarismo, ser livre é poder decidir, escolher e operar como se quer. O homem poderia fazer as coisas de modo diferente do que fez, se assim o quisesse e decidisse. Isso contradiz a doutrina citada anteriormente de que tudo está determinado causalmente. A liberdade não poderia ser destruída, ou refutada, pela tese da causalidade, de que as ações humanas seriam determinadas por fora (meio ambiente, por exemplo), ou pelo seu interior (desejos, motivos ou caráter). “E, embora se admita que o homem esteja sujeito a uma determinação causal – por ser parte da natureza e viver em sociedade -, acredita-se que exista uma esfera do comportamento humano – e muito especialmente a moral – na qual é absolutamente livre; isto é, livre a respeito da determinação dos fatores sociais.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 124)
O libertarismo rompe com o princípio da causalidade (tudo é determinado), pois ser livre é ser incausado. E para essa autodeterminação ser pura é preciso também eliminar as causalidades no âmbito interno da pessoa, para que se possa ter liberdade genuína.
No entanto, essa doutrina também tem falhas, pois não consegue ser completa, assim como o determinismo absoluto não o é. A liberdade também pressupõe a necessidade causal, por dizer que tudo é possível, e se tudo é possível, não teria sentido falar em responsabilidade moral, pois as decisões e atos dos indivíduos seriam resultados do acaso.


VI – A DIALÉTICA ENTRE LIBERDADE E NECESSIDADE


Diante do dilema exposto, conclui-se que liberdade e causalidade não podem se excluir reciprocamente. Para haver reponsabilidade moral é preciso que o ser humano seja livre na escolha e na decisão, de modo a intervir conscientemente na sua realização. No entanto, para que se decida e escolha com conhecimento de causa é preciso que o comportamento se ache determinado causalmente. Há três posições interessantes a esse respeito, a de Burach de Spinoza, a de Georg Wilhelm Hegel e a de Karl Marx e Friedrich Engels.
Segundo o holandês Spinoza, o mundo exterior provoca no ser humano um estado psíquico chamado de “paixão” ou “afeto”. O homem estaria inserto na naturea e sujeito às suas leis da necessidade universal, não podendo escapar delas de modo algum. Se o homem é regido pelas paixões e afetos causados por motivos externos, ele não é livre, mas escravo. Entretanto, se o ser humano está sujeito à necessidade universal, como poderia ser livre? Para Spinoza, a liberdade seria ter consciência da necessidade e compreender tudo o que se passa. O homem livre seria diferente do escravo porque este não compreenderia a necessidade, estando-lhe cegamente sujeito. “Ser livre, portanto, é elevar-se da sujeição cega e espontânea à necessidade – própria do escravo – para a consciência desta; e, nesta base, para uma sujeição consciente. A liberdade humana reside, então, no conhecimento da necessidade objetiva.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 128)
A solução de Spinoza não é prática, vislumbra um mundo imaterial, na qual não se exige ação transformadora da realidade. O alemão Georg Wilhelm Hegel dá um passo a frente de Spinoza. Hegel diz que a liberdade é a necessidade conhecida, e relaciona isso com a história. A liberdade, para Hegel, é dividida em graus e no conhecimento da necessidade, conforme o estado histórico em que se encontra o espírito. “Vemos assim que para Hegel – como para Spinoza – a liberdade é um assunto teórico, ou da consciência, ainda que a sua teoria da liberdade se enriqueça ao colocar esta última em relação com a história e ao ver a sua conquista como um progresso ascencional histórico (a história é ‘progresso na liberdade’). (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, p. 129)
Os alemães Marx e Engels concordam com Spinoza e Hegel, num primeiro momento. Ademais, apesar de a liberdade ser a consciência histórica da necessidade, há necessidade de examinar isso sob o prisma do materialismo. A conceituação de Hegel transformava o homem de escravo inconsciente (sem noção) a escravo consciente. A liberdade, para Marx e Engels, consistiria num poder de domínio sobre a natureza e sobre a própria natureza humana. Liberdade não seria uma assunto meramente teórico, mas prático, pois o ser humano é transformador e criador e, com isso, transcende o mundo natural, remodelando-o conforme sua vontade. E isso também implica no conhecimento da sua necessidade, sem o qual não haveria liberdade. Esses níveis de conhecimento por parte dos seres humanos se dá por etapas históricas, porém, por relações materiais e não meramente abstratas. Assim, os contrários se conciliam dialeticamente.


VII – BIBLIOGRAFIA

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. 25. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 109-132.


ANEXO I


Decisão proferida pelo juiz Rafael Gonçalves de Paula nos autos nº 124/03 - 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO:
DECISÃO
Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional).
Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.
Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário.
Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de
Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia.
Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo?
Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.
Simplesmente mandarei soltar os indiciados.
Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás. Intimem-se
Palmas - TO, 05 de setembro de 2003.
Rafael Gonçalves de Paula
Juiz de Direito

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[i] Apostila da disciplina “Ética I” elaborada para o curso de Tecnologia em Comércio Exterior do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), baseada no capítulo V – “Responsabilidade moral, determinismo e liberdade”, do livro Ética, de Adolfo Sánchez Vázquez. Este texto não possui maiores pretensões acadêmias, muito menos está acabado para fins de publicação. Trata-se apenas de um recurso pedagógico.
[ii] Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, bacharel em Direito, formado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, especialista (MBA) em Comércio Exterior, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e mestre em Filosofia Ética. Visite: http://treeofhopes.blogspot.com
[iii] Incluir-se-á a coação interna como um tipo de ignorância. Por se entender que loucura total, por exemplo, uma coação interna seja um tipo de ignorância em sentido amplo.
[iv] Ler Anexo I.

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