terça-feira, 18 de agosto de 2009

RAZOÁVEL EM VEZ DE VERDADEIRO: O CONSTRUTIVISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS




I - INTRODUÇÃO

Neste texto, tentar-se-á associar a problemática da verdade com o neocontratualismo de John Rawls. Trata-se de uma empreitada entre a teoria do conhecimento e a filosofia política, demonstrando-se que as verdades absolutas no âmbito prático da vida cotidiana podem causar intolerância e conflitos. De acordo com Philippe Van Parijs
[i] construtivismo “se define pelo recurso à construção de situações hipotéticas tais que o resultado das escolhas dos atores nelas imersos é necessariamente justo”. Trata-se de se construir um procedimento de “barganha” adequado, que teria, segundo Van Parijs, o formato de uma teoria em duas etapas. Na primeira etapa, os contratantes fariam uma especificação daquilo que teriam como a “base de comparação não-cooperativa julgada pertinente”, ou seja, o “estado de natureza”, enquanto, na segunda, as partes determinariam qual seria o procedimento adequado para dividir o excedente ocasionado pela cooperação (em outras palavras, os termos do contrato).[ii] A imparcialidade teria função de perseguir a universalidade, com regras de respeito mútuo igual e de igual consideração pela pessoa humana:

“Na tradição da imparcialidade, a perspectiva construtivista consiste em construir uma situação que incorpore uma exigência de universalidade. Ela pode repousar, como em Harsanyi (1953), Rawls (1971), ou Sterba (1980), sobre a construção de uma posição ‘posição original’ em que cada agente persegue seu interesse pessoal sob um ‘véu de ignorância’ que o impede de conhecer suas características particulares; ou como em Mead (1934) ou Kohlberg (1973) reapropriados por Habermas (1983), sobre um jogo de papéis que consiste em cada um adotar o ponto de vista do outro; ou ainda como em Ackerman (1980), sobre um diálogo neutro submetido a regras que impõem não somente um igual respeito pelas diversas concepções da boa vida, mas também a exigência de não considerar que ninguém valha menos do que outro.” (Van Parijs, 1997, p. 218, grifo nosso)


II - O CONSTRUTIVISMO

A metáfora da “construção” foi usada largamente no século XX, nos escritos e na teoria filosófica. Numa simples argumentação, a título demonstrativo, é um pensar que certas entidades são complexos, compostas por outras entidades mais elementares. O construtivismo de Rawls articula três concepções-tipo: concepção política de pessoa, concepção de sociedade bem ordenada e a concepção da “posição original”, que faz a interface entre as duas primeiras. A “posição original”, portanto, pode ser concebida como um procedimento de construção para justificar os princípios da justiça, comenta Onora O’Neill. Ao longo de sua obra, John Rawls desenvolveu sua teoria e modificou suas visões de como os princípios éticos poderiam ser construídos, como a “posição original” poderia ser plausível e aceitável, e quais audiências poderiam ser oferecidas razões para aceitar a “posição original”.
[iii]
As justificações fundamentais para a “posição original”, para os princípios e instituições da justiça, podem ser elaboradas por indivíduos com doutrinas morais abrangentes variadas (que podem contrastar sobremaneira).
A “posição original”, então, seria o objeto da contingência, já que o “consenso por justaposição” (“overlapping consensus”) não teria forças suficientes no intuito de garantir convergências nas razões para a afirmativa dessas doutrinas. Uma total falta de razões compartilhadas para aceitar a “posição original” poderia destroçar a vida política, mas, por outro lado, os cidadãos – diante de práticas democráticas – podem apoiar-se num rol mais limitado de estratégias justificatórias, que são “políticas”, em vez de fundamentais.
[iv] Aí, se tem também a idéia de razão pública, que é primordial num regime democrático constitucional, de uma sociedade bem ordenada:

“A justiça como eqüidade, conforme ele (Rawls) argumenta no seu trabalho mais recente, deve ser vista como uma concepção ‘free-standing’, que está em equilíbrio reflexivo não somente com várias doutrinas morais compreensivas, mas com idéias centrais de uma cultura democrática pública na qual uma forma de razão pública deve ser compartilhada (e possivelmente somente por) colegas cidadãos (fellow citizens). Esta concepção de razão pública providencia a moeda em comum usada nos argumentos relativos à justiça, entre os colegas cidadãos (fellow citizens), mas não se constitui numa moeda corrente universal.”
[v]

O construtivismo, revisto por Rawls em “Liberalismo político”, é político, e não metafísico.
[vi] Sua teoria da justiça como eqüidade, então, distanciou-se de ser uma doutrina moral abrangente, como fora preconizado em “Uma teoria da justiça”. Percebe-se, ademais, um maior grau de pragmatismo e realismo na reformulação teórica de Rawls, que fez uma adequação da sua obra à realidade política de uma sociedade munida de um regime democrático constitucional.


III - A VERDADE NO CONSTRUTIVISMO DE RAWLS

Esse novo posicionamento, por parte de Rawls, leva a novas considerações a respeito da teoria da justiça como eqüidade. A mais importante delas é que não se usa, nem se nega o conceito de verdade, mas se emprega o conceito de razoável, aquilo que possibilita um “consenso por justaposição” de várias doutrinas abrangentes razoáveis. Porém, que o construtivismo político não procura embates com qualquer das doutrinas abrangentes, “afirma somente que seu procedimento representa uma ordem de valores políticos que parte dos valores expressos pelos princípios da razão prática, conjugados com concepções de sociedade e pessoa, para chegar aos valores expressos por certos princípios de justiça política”.
[vii]

“A primeira característica, como já observamos, é que os princípios de justiça política (conteúdo) podem ser representados como resultado de um procedimento de construção (estrutura). Nesse procedimento, os agentes racionais, em seu papel de representantes dos cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios que regulam a estrutura básica da sociedade.
A segunda característica é que o procedimento de construção baseia-se essencialmente na razão prática, e não na razão teórica. Tendo em mente a forma como Kant faz essa distinção, dizemos: a razão prática preocupa-se com a produção de objetos de acordo com uma concepção desses objetos, como, por exemplo, a concepção de um regime constitucional justo considerado como o objetivo da atividade política – ao passo que a razão teórica diz respeito ao conhecimento de determinados objetos. Observe que dizer que o procedimento de construção se baseia essencialmente na razão prática não significa negar que a razão teórica tenha um papel. Ela dá forma às crenças e ao conhecimento das pessoas racionais que participam da construção; e essas pessoas também empregam suas capacidades gerais de raciocínio, inferência e julgamento ao selecionar os princípios da justiça.



A terceira característica do construtivismo político é utilizar uma concepção bem complexa de pessoa e sociedade para dar forma e estrutura à sua construção. Como vimos, o construtivismo político vê a pessoa como membro de uma sociedade política entendida como um sistema eqüitativo de cooperação social de uma geração para outra. Supõe-se que as pessoas disponham das duas faculdades (poderes) morais conjugadas a essa idéia de cooperação social – a capacidade de ter senso de justiça e concepção do bem. Todas essas estipulações e outras mais são necessárias para chegar à idéia de que os princípios de justiça resultam de um procedimento adequado de construção. (...)
Como antes, acrescentamos aqui também uma quarta característica: o construtivismo político especifica uma idéia do razoável e aplica essa idéia a vários objetos: concepções e princípios, juízos e fundamentos, pessoas e instituições. Em cada caso, também deve, é claro, especificar os critérios para julgar se o objeto em questão é razoável. No entanto, o construtivismo não usa (nem nega), como o faz o intuicionismo racional, o conceito de verdade: não questiona esse conceito nem diria que o conceito de verdade e sua idéia do razoável são a mesma coisa.” (LP, III, § 1, p. 138-139, grifos nossos)

A correção de um julgamento não tem como referencial um fim último (verdade absoluta), ou uma intuição de difícil conceituação. O julgamento correto assim o será porque resulta de um procedimento razoável e racional de construção, quando corretamente formulado e corretamente seguido.


IV - AS VERDADES ABSOLUTAS E AS MINORIAS

Sociedades que se edificam em torno de doutrinas religiosas e filosóficas dificilmente teriam uma concepção de justiça nos moldes do construtivismo político. As concepções de justiça dessas sociedades podem ser frágeis, porque certas regras e procedimentos poderiam estar conjugados - em vez a concepção política de pessoa e sociedade - a crenças religiosas, ou filosóficas, ou outras crenças públicas compartilhadas não razoáveis. Qual o perigo disso? Coloca-se em risco a integridade do indivíduo e das minorias, face à concepção de justiça que leva em consideração um fim último, cuja doutrina abrangente não é razoável, então, não compatível com uma concepção política de justiça. Em vez de legitimar um consenso, alerta Rawls, a ordem jurídica (as Leis) seria utilizada, nesta perspectiva, para coagir o indivíduo, não pela sua adesão consciente, mas por sua incapacidade de reagir. Na concepção política de justiça, oriunda do construtivismo político, os princípios da razão prática são conjugados com as concepções de pessoa e de sociedade, que adotam uma forma requerida pela razão prática para sua aplicação.


V - CONCLUSÃO

O construtivismo político não se propõe a explicar os valores morais, em geral, ou as questões da verdade. Diante da pluralidade de doutrinas e da possível “conciliação” com finalidades políticas, se tem – partir do construtivismo político – uma base pública de justificação. Há de se atentar para o caso das doutrinas abrangentes não-razoáveis, ou irracionais (às vezes, insanas), como diz o próprio Rawls, que podem minar esforços para se chegar a um “consenso por justaposição” de doutrinas razoáveis. O construtivismo político não realiza enunciados sobre a verdade moral, não a endossa, nem a rechaça. A conclusão, aliás não poderia ser melhor, pode ser delineada com as próprias palavras de Rawls:

“A vantagem de estar no âmbito do razoável é que só pode haver uma doutrina abrangente e verdadeira, embora, como vimos, existam muitas razoáveis. Depois de aceitarmos o fato de que o pluralismo razoável é uma condição permanente da cultura pública sob instituições livres, a idéia do razoável é mais adequada como parte da base de justificação pública de um regime constitucional do que a idéia de verdade moral. Defender uma concepção política como verdadeira e, somente por isso, considerá-la o único fundamento adequado da razão pública é uma atitude de exclusão e até de sectarismo, que, com certeza, fomentará a divisão política.” (LP, III, § 8, p. 176, grifo nosso)


VI - BIBLIOGRAFIA

O’NEILL, Onora. Constructivism in Rawls and Kant. In: FREEMAN, Samuel (ed.). The Cambridge companion to Rawls. 1. ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2003.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 1. ed. 2. reimpressão. São Paulo (SP): Martins Fontes, 1997.
____. Justiça e democracia. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2000.
____. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo (SP): Editora Ática, 2000b.
____. Justice as fairness: a restatement. Cambridge, Massachussetts e Londres, Inglaterra: Harvard University Press, 2001.
VAN PARIJS, Philippe. O que é uma sociedade justa? São Paulo (SP): Editora Ática, 1997.


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[i] Phillippe VAN PARIJS, O que é uma sociedade justa?, p. 217.
[ii] Ibid.
[iii] Onora O’NEILL, Constructivism in Rawls and Kant, in: Samuel FREEMAN (ed.), The Cambridge companion to Rawls, p. 349.
[iv] Ibid.
[v] “Justice as fairness, he argues in his later work, should be seen as ‘free-standing’ conception, which is in reflective equilibrium not only with various comprehensive moral views but with the central ideas within a public democratic culture within which a form of public reason may be shared by (and possibly only by) fellow citizens. This conception of public reason provides the common coin used in arguments about justice among fellow citizens, but it provides no universal currency.” (O’Neill, 2003, p. 349-350, grifo nosso)
[vi] LP, III, p. 135.
[vii] LP, III, p. 140.

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