sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O sono


O calor faz o suor sair lentamente da minha pele, não em gotas, mas como uma fina camada de sereno, que recobre o exterior e me faz sentir ensebado, sujo, indigno e exilado. Fecho as janelas e as vidraças para impedir a entrada do ar fresco da matina. Quero isolar-me do mundo exterior e recolher-me ao meu recanto seguro, sem luz, nem vozes, num vazio aconchegante, para tentar abafar o crescente desespero. Deito-me na cama e puxo o cobertor até metade da cabeça. O aumento da temperatura fustiga o corpo e os líquidos elevam suas temperaturas com maior avidez.

Peço pelo sono, mas ele não me vem anestesiar, nem carregar para fora as máculas deste mundo. Sinto o bafo do demônio logo nas minhas costas, regurgitado pelos sonidos incólumes e indescritíveis que alimentam ainda mais meu medo. Estou paralisado, sem ação alguma, nem vontade de reagir. Fui fustigado pelo desânimo que me levou a alma, deixando-me como um morto-vivo, sem motivo algum para continuar a viver.

O demônio ganha vulto e força pelas maquinações e desproporcionalidades da imaginação. Grito, mas as cordas vocais estão congeladas. Soco-lhe, porém, os braços permanecem imóveis. As pernas, inertes, são inválidas em qualquer esboço de qualquer coisa pensada. Deste holocausto, sou a oferenda, o objeto de sacrifício e a coisa a ser colocada em cima do altar.
Tentei viver e reconciliar-me com o mundo. Só atritos e desavenças pelos corredores da existência que me fizeram perder a crença em algum fim último que pudesse justificar a minha estada neste reles planeta. Como manda o manual, fui bom filho, bom estudante, bom cidadão, mas deu tudo errado, todos os planos, todas as expectativas. Tudo foi esmagado como um pedaço de merda embaixo de uma sola de sapato.

Minha vida não passou de um pouco de resto orgânico digerido, defecado e decalcado no pé de algum filho da puta que nem conheço, que, no entanto, sempre torceu para eu me foder legal. Que prazer imenso deve ter sentido ao me dar uma pisada bem em cima da minha personalidade, dando também aquela típica viradinha com o pé, como se estivesse falando: “Seu bosta, isto é para você aprender a ficar no seu canto.”

Diálogo de um só ou monólogo esquizofrênico? Falar comigo mesmo faz parte da dialética de argumentos ou é delírio de um louco prisioneiro em sua própria carcaça? Uma singular resposta não serve, daí, fomenta outras perguntas, que dão em outras respostas e mais milhares de perguntas.

Um turbilhão de pensamentos forma uma nuvem enegrecida que impede a comunicação entre os neurônios, levando-me à inércia generalizada. Não bebo álcool, nem consumo drogas. A droga sou eu mesmo.

Comunicar é tornar comum, fazer-se inteligível a outrem. Contudo, ninguém compreende o que falo ou escrevo. Sou esfaqueado com prazer sádico por quem menos espero. Amor não existe, nem respeito. É tudo fachada para não nos matarmos como animais que mutilam em caça predatória. Um observatório de hipócritas; canibais famintos pelo sangue alheio.

Bebericar e saborear a fina iguaria vermelha. Sentir apossar-se da força do outro. Vampirismo, porra nenhuma. Matar ou morrer, correr ou morrer, murmurar para morrer. Nada de nada, tudo de tudo, sem forma no formato do gosto do desgosto. Não tem mais nada que falar, esgotou-se o repertório, juntamente com o paladar da vida.

No meu leito, divido o espaço com meus livros. Mudos, eles me respondem as dúvidas em seu ritmo pausado e sonolento, sem extravagâncias. Somos cúmplices no nosso mútuo encarceramento, semelhante às relações entre os vermes e a carne morta. Num esforço quase sobre-humano, tiro minha camiseta. Fico quase desnudo embaixo do cobertor. Se morasse sozinho, ficaria pelado, numa boa. Mas não tenho assim tanta privacidade. Os fios da coberta me acariciam o torso, quase que fazendo cócegas.




Não queria brigar com ninguém, nem causar ódio em ninguém. Só queria fazer as coisas bem feitas, para ajudar as pessoas e, em dado momento, me sentir feliz e produtivo com alguns feitos. Se tenho amigos, ainda não se manifestaram, porque eu sinto seus golpes invisíveis e olhares de ferocidade, embora não lhes tenha feito coisa alguma. Paciência, estas porcarias ocorrem o tempo todo, sem que sequer houvesse manifestação mínima da minha personalidade.

Prefiro ficar no meu canto, como um repolho fedido, em conserva no ácido acético, um picles perfumado e quase podre, esquecido num recanto de prateleira de um boteco de péssima categoria.

As problemáticas nos envolvem como uma bola de neve, encurralando-nos como feras acuadas nas jaulas dos zoológicos maltrapilhos. Não vejo saída, por causa desta condição que não contempla, o mínimo que seja, de uma saída plausível para uma vida normal. Estas palavras, pseudo-inspiradas, saem como cálculos renais, pela uretra, queimando-lhe toda sua extensão devido ao atrito sem lubrificação.

Num estado de maior lucidez, sem as complicações perversas deste estado mental, tudo é mais fácil, inclusive a redação desta porcaria ridícula. Os ensaios bem-humorados são como portas abertas para a vida. Por meio da alegria, a vontade de viver e a esperança queimam a lenha que libera os espíritos, que mostra a verdadeira vida nos aspectos minúsculos do cotidiano.

Viver um grande amor, tal como sonhamos desde sempre é fechar os olhos para as oportunidades. Se nos fixamos muito nele, ele nos foge e nunca o encontraremos, bem debaixo do nosso nariz. O macro é composto de milhares de micros. Os micros compõem o macro. Então, o pequeno e o macro, se vistos da maneira certa, se tornam um só. Uma visão sistêmica, ampliada e sem obscuridades, que congregue o uno e o todo.

Como se vê o tudo, se vê o nada. A escuridão não existe para o cego que aproveita, no cotidiano, a esperança e o vigor da existência neste plano terreno. O alimento para o cérebro não é o mesmo que revigora o corpo e a alma. Mente sana e corpo são, tal como o emblema de conhecida sociedade desportiva.

Se eu amordaço minha dimensão física e me dedico somente ao espiritual, ocorre o desequilíbrio. Caso me dedique somente ao corpo, desligando-me da consciência superior, serei, com certeza, um animal, um morto-vivo. A inteligência, contudo, é tirana se não houver harmonia, com relação aos demais.

Às vezes, a mente comanda o espírito e o corpo. Por outras, o corpo guia a mente e o espírito. Nas demais, o espírito se sobreleva ao espírito e ao corpo. Uma dialética tríplice, cada ponto determinando as demais circunstâncias, em momentos oportunos. Caso um deles sobreponha-se aos demais, instala-se a desordem, e os maus fluídos carregam os poros, dos mais minúsculos aos mais visíveis.

Quando pensamos ser invisíveis somos monstros, cuja capacidade de destruição é indescritível e, no mínimo, abominável. Sentimo-nos assim quando estamos isolados de um mundo que não nos é ensinado e, portanto, esta disparidade entre o que se pensa e o que se vê é o que se chama de loucura.

Desatinos e aforismas brotam da mente desacostumada com o aflorar das realidades até então ocultas. Tudo o que acreditávamos era uma ilusão, porque, detrás desta ordem, existe algo diferente e dinâmico, sem igual, uma malha de comunicação jamais vista, outrora, pelo menos por mim.

Os números de telefone e as redes de internet são manipuláveis, como móveis levados de um lugar a outro, ou plumas de aves, sopradas pelo vento. Tudo, apesar do aparente caos, é completamente controlado, processado e posto em prática. Facções diferentes, discursos diferentes, apenas momentâneos e aparentes. O consenso vigora, debaixo das convenções.

Muitos estão envoltos nesta malha e sabem como articular-se nela. Entretanto, não me foi permitido o aprendizado destas sutilezas, vedando-me o contato com a sociedade. Fui escolhido para dar de cabeça na parede, tal como um bode estraçalha seu oponente, num ritual de pré-cópula selvagem.

Esta dislexia com o meio social é algo que me deixa pasmo e alheio ao que está em meu redor. Esta linguagem, este código esotérico restrito, que nunca me fora ensinado, nunca me fora apresentado, salta à minha realidade como um assassino que ronda sua vítima, dando-lhe somente espaço para perceber os seus últimos minutos de agonia diante do fim inevitável.

Talvez seja uma jornada imposta para testar o valor e as capacidades de adaptar-me a uma realidade, na qual tudo aparenta o mero acaso, apesar de estar tudo previamente planejado, pelo Deus superior, que é a humanidade.

Estas pedradas na alma e os flagelos incorpóreos mostram-me que toda minha educação foi calcada num ideal sem nexo com a vida em si. Aquilo que nomeamos, que falamos, que escrevemos contém uma mensagem oculta, que escondida no tão óbvio, é impossível de ser decifrada.




Desde o nascimento fui exilado deste mundo simples, mas complexo, cuja estrutura ainda não consigo compreender. É uma prisão sem grades, que eu pensava ter sido feita para eu perder. Estes espinhos eram e são, no entanto, sinais para despertar-me para a vida como ela é, sem os formalismos impostos pelo cientificismo. “Estude teologia”, dizem-me os próximos.

De que adianta dizer-me algo, num código que não consigo decifrar? Tudo o que eu acreditava foi destruído como um pedaço de areia que se desfaz com o choque provindo de uma onda furiosa do mar. Mais que um peixe fora da água, sou um molusco imerso em ácido sulfúrico.

As queimaduras são como goles deste mesmo líquido corrosivo adentrando goela abaixo, sem impedimento algum para afastá-lo das minhas entranhas. Meus inimigos eram fantasmas, criados pela minha própria falta de adequação. Era uma paranóia sem sentido, para os inclusos na sociedade, porém, algo totalmente diverso para mim.

A racionalidade técnica me foi colocada como suprema, daí, as negativas com relação às demais coisas. Um questão de ordem cartesiana e positivista fez-me crer mais nos livros que na própria humanidade. Meus livros foram meus amigos a todo momento, domesticando-me e amoldando minha mente, até que não pudesse ver mais nada à frente, afincando uma cerca de medo, com relação aos demais.

Tudo o que eu acreditava ser correto era apenas mera ilusão, coisas que não tinham princípios motores, nem sentido com relação a coisa alguma. Estou cercado de todos os lados e nem sei como pedir ajuda, como assimilar e adaptar-me a tudo. Há uma multidão de furiosos, uma turba revoltada com meus atos impensados.

Fui pego nesta armadilha e não sei como escapar, nem como viver diante de tantos olhares, risos e vocábulos estranhos. Tenho apenas dois meses de sobrevivência nesta selva. O erro não estava nos outros, estava em mim mesmo, e ninguém me alertou a este respeito. Todos tiranos consideram-se vítimas quando são arremessados para baixo do cadafalso do poder.

O ser humano, em si, considera-se correto, mesmo ao cometer atrocidades e incorrer de paixão avassaladora na defesa de uma fé cega, mesmo científica, que lhe veda acesso a altares mais sagrados e elementares da contemplação da vida.

Tenho pouco tempo para continuar e para sobreviver diante desta nova perspectiva que se abre diante do meu mundo. Já fui condenado e nem sei se me cabe recurso, com relação às cláusulas descumpridas por imperícia, negligência ou imprudência. Estou crucificado com o olhar de desprezo das pessoas que nem mesmo conheço e com o sentimento de pesar que causei àqueles que mais amo, por causa da minha beligerante e insensata ignorância.

Em cada ponto, as pessoas se mostram, vêm em fluxos contínuos, como multidões de anônimos que se agrupam à espera de sinais mais ou menos reconhecíveis. Sei, no entanto, que meu fracasso é geral e retumbante, um castelo de areia a ser devassado em época de tormenta, pela minha inadequação em encontrar meios para adequar-me a coisas novas.

Estranho batismo de fogo que corre pelas plantações e ceifa, sem pestanejar, as características que considerava, anteriormente, virtudes. O corpo, carbonizado pelas chamas, ainda insiste em manter-se com todas suas funções, as que não foram danificadas, em reles manutenção.

Conforme Platão, se fôssemos invisíveis, faríamos atrocidades porque nos consideraríamos imunes à ira da coletividade. Nunca estamos invisíveis, nem com falsos nomes, nem com a aparente inviolabilidade do nosso lar, nem com nada. Tudo está perfeitamente vigiado, num sistema de controle, que transcende minha reles inteligência. Não sou e nunca estive invisível, na massa, tal como acreditava.

Aqueles olhares e intenções que me penetravam eram reais mesmo, nada era fruto da imaginação. Loucura nenhum pouco válida, a não ser que fosse uma conspiração contra minha sanidade. Aliás, quem não ficaria louco diante de tanta coincidência?

Apesar de traçar os referenciais, não estou e nunca estive certo, mesmo quando a certeza se apresentava como evidente. Os referenciais são móveis, nunca estáveis, muito menos palatáveis. Eles simplesmente são e se mostram por si mesmos, uma cabal aparição travestida de acaso.
Nunca estive em ascensão. Sempre fui a queda lenta e vagarosa que faz o desejo da morte ser algo muito natural. Odeiem-me, vocês têm toda razão para isto. E quando se cansarem de me odiar, matem-me e vilipendiem-me o cadáver aos quatro ventos. O povo necessita de uma válvula de escape, eu sou o brinquedo, para esta empreitada, mais do que perfeito. Que se faça, então, o plano de execução. Uma vez expulso não há mais retorno, certo? Embora não tenha a qualidade necessária, sou o cordeiro deste sacrifício. Saciem sua fome de vingança. Estou pronto para o meu destino. Enfim, estarei livre, como um pássaro sem asas, que está frio como um cadáver já putrefeito.

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