quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A DIDÁTICA NO CONTEXTO EDUCACIONAL ATUAL


Este texto pretende explorar, de maneira breve, o conceito de Didática e sua aplicação no contexto educacional atual. Como lidar com os novos paradigmas que surgem a cada momento e com as situações de disparidade social, na qual os menos favorecidos cada vez têm menos acesso e menos preparo para o processo de aprendizado? Tenta-se articular o pensamento de autores na área de educação com o do economista Amartya Sen , principalmente com relação à sua idéia de desenvolvimento como liberdade, tanto do meio social quanto do indivíduo.

Contudo, cabe antes fazer realizar algumas conceituações, para posteriores associações com a realidade material. Pois bem, eis o primeiro conceito: “A Didática é uma seção ou ramo específico da pedagogia e se refere aos conteúdos do ensino e aos processos próprios para a construção do conhecimento. Enquanto a Pedagogia pode ser conceituada como a ciência e a arte da educação, a Didática é definida como a ciência e a arte do ensino.” (HAIDT, 2006, p. 13)

A partir do conceito, pode-se dizer que a Didática tem um caráter mais instrumental, que material, tal como se diferencia o Direito Processual do Direito Material. A Didática tem como objeto de estudo o ensino. E o ensino pode ser aplicado a diversas áreas do conhecimento. Então, a Didática se ocupa das formas ou maneiras de se ensinar. Entretanto, o ensinar não pode ser considerado em separado do aprender. Ensino e aprendizado, então, são duas faces da mesma moeda. Caso fosse focada somente no ensino, haveria um viés autoritário, tendo o professor como diretor de todo o processo de transmissão de conhecimento.

Ao se dar também enfoque na aprendizagem, abre-se uma perspectiva para que o educando também participe do processo educacional, que não se resumirá, inclusive, à simples transmissão do conhecimento, mas também à construção colaborativa do conhecimento. Nesse sentido, para Regina Célia Cazaux Haidt (2003, p. 13), “podemos afirmar que Didática é o estudo da situação instrucional, isto é, do processo de ensino e aprendizagem, e nesse sentido ela enfatiza a relação professor aluno”.

Num primeiro momento, a Didática tinha no aluno um sujeito a ser modelado, ou seja, a ser preenchido com informações, que seria submetido a baterias de exercícios e memorização de fórmulas e conceitos. Posteriormente, a Didática teve no aluno um ser a ser capacitado para ser livre. A mudança de enfoque é fundamental já que a Educação pode ser utilizada tanto para o controle social (PILETTI, 2006, p. 139-150) quanto para a transformação social ((Idem, 153-161).

Atualmente, no cenário de mudanças tecnológicas muito rápidas, o indivíduo deve aprender a aprender para não ficar ultrapassado e perdido diante da avalanche informacional que se lhe apresenta a cada fração de segundo. E ainda uma pessoa capaz de lidar com paradoxos tais como a fantástica qualidade de vida e de capacitação proporcionada pela acumulação de renda e por novos meios de comunicação como a internet e a exclusão social, a fome e a falta de oportunidades de emprego e ensino vistas nos países de terceiro mundo, como o Brasil. (MORAES, 2003, p. 113-116)

Há de se preparar o indivíduo para as transformações e para lidar com as contradições apresentadas pela contemporaneidade. De qualquer maneira, mesmo que se critique a realidade, os alunos deverão ser formados para lidar com ela, por mais que a critiquem. E os seus professores não estão isentos de uma formação num ambiente que leva em conta uma escolha ideológica. “Conforme o modelo de sociedade e de ser humano que defendemos, não atribuiremos as mesmas finalidades à escola e, portanto, não definiremos da mesma maneira o papel dos professores. (PERRENOUD, 2002, p. 12)

Uma vertente poderia defender que a educação deveria ser voltada para preparar indivíduos para o mercado de trabalho, então, a Didática assumiria a ideologia das corporações, como uma linha de montagem em massa de automóveis. Outra vertente poderia, por sua vez, salientar que o ser humano não pode ser tratado como um objeto, uma peça da engrenagem e que, por isso mesmo, deveria ser capaz de se mobilizar, por meio de uma educação libertadora, que requereria uma Didática que quebrasse o esquema das relações meio-fim das corporações, para que esse sujeito se veja como um fim em si mesmo.

Diante da realidade, obviamente não se poderia optar somente pela segunda vertente, pois contos de fadas não existem. Há de se tentar conjugar ambas para que o indivíduo seja eficiente para o mundo profissional e também seja crítico ao que vê em seu redor, para que não seja um mero repetidor de rotinas. Caso assim o seja, não terá como enfrentar as mudanças repentinas de paradigmas a que se submeterá em sua vida.

É notória a falta de conhecimento que assola o País. A quinta edição do Indicador Nacional de Analfabetismo (Inaf), divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa, contém números assoladores:

“No Brasil, 75% das pessoas na faixa etária dos 15 aos 64 anos não conseguem ler e escrever plenamente. O número inclui os analfabetos absolutos – sem qualquer habilidade de leitura e escrita – e os 68% considerados analfabetos funcionais. Estes identificam letras e palavras, mas não conseguem utilizá-las no cotidiano e têm dificuldades para compreender e interpretar textos. Apenas um em cada quatro brasileiros consegue ler, escrever e utilizar essas habilidades para continuar aprendendo.” (LOIOLA, 2006, grifos nossos)

O educador brasileiro contemporâneo deve ter uma Didática que leve em conta esses dados, só assim poderá elaborar estratégias que possam “resgatar” o sujeito preso pela apatia e por anos de falta de exercício mental. Para a compreensão desse quadro, a doutrina de Amartya Sen tem muito a colaborar. Como diz Sen (2000, p. 53): “O processo de desenvolvimento, quando julgado pela ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação da privação dessa pessoa.”




Para Sen, a falta de liberdade substantiva relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que priva “as pessoas de saciar a forme, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico“. E ainda: “Em outros casos, a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social, como, por exemplo, a ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.” (SEN, 2000, p. 18).

Com relação ao conceito de liberdade substantiva, Sen afirma que são aquelas liberdades exigidas para o indivíduo ter uma “vida que tenha razão de valorizar” (2000, p. 94). Leva em conta as oportunidades reais de os indivíduos atingirem seus objetivos, que exige, além dos bens primários, uma série de “características pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos”. (SEN, 2000, p. 95)

Na doutrina de Sen, as pessoas são dotadas de funcionamentos , que contêm estados (beings) e ações (doings) que influenciam no modo em que vivem. “Os funcionamentos relevantes podem variar desde coisas elementares como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e da morte prematura, etc., até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade, e assim por diante.” (SEN, 2001, p. 79)

A combinação dos funcionamentos – não necessariamente todos ao mesmo tempo – é chamada de capacidade (capability). Ademais, não se trata de qualquer combinação de funcionamentos. São combinações alternativas de funcionamentos cuja realização seja possível para a pessoa. Para Sen (2000, p. 95), a capacidade é a “liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos”. Um adendo para expormos um exemplo no intuito de apresentar o conceito de “conjunto capacitário” .

Assim, “conjunto capacitário” consiste nos “vetores de funcionamentos alternativos dentre os quais a pessoa pode escolher”. (SEN, 2000, 96) O conjunto capacitário seria a liberdade que uma pessoa teria para escolher as combinações alternativas dentre funcionamentos. Tomando como base o exemplo anterior, o conjunto capacitário do primeiro sujeito é maior que o do segundo sujeito. No primeiro, há possibilidade de escolher as combinações de funcionamentos, na segunda, não. Esta empreitada tem vital importância, pois as combinações de funcionamentos, segundo Sen, refletem as suas realizações efetivas (o que a pessoa realmente faz), enquanto o conjunto capacitário aponta as alternativas que se tem (oportunidades reais para obter bem-estar). Com relação às capacidades, na realização do bem-estar, Sen explica:

“A relevância da capacidade de uma pessoa pra seu bem-estar surge de duas considerações distintas porém inter-relacionadas. Primeiro, se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (quer dizer, todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade da pessoa – as oportunidades reais – para ter bem-estar. Essa liberdade de bem-estar (well-being freedom) pode ter relevância direta na análise ética e política. (...) A segunda conexão entre bem-estar e capacidade consiste diretamente em fazer o próprio bem-estar realizado depender da capacidade para realizar funcionamentos. Escolher pode em si ter uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolha genuína com opções representativas pode ser concebida – por essa razão – como mais rica. Nesta concepção, pelo menos alguns tipos de capacidade contribuem diretamente para o bem-estar, tornando a vida da pessoa mais rica de oportunidades de escolha refletida. Mas mesmo quando a liberdade na forma de capacidade é valorada apenas instrumentalmente (e o nível de bem-estar não é visto como dependente da extensão da liberdade de escola como tal), a capacidade para realizar funcionamentos deve ser, ainda assim, uma parte importante da avaliação social. O conjunto capacitário fornece informação sobre os vários vetores de funcionamentos que estão ao alcance de uma pessoa, e esta informação é importante independentemente de como exatamente o bem-estar é caracterizado.” (SEN, 2001, p. 80-81)

Numa conclusão preliminar, portanto, dir-se-ia que a Didática no contexto atual deve conjugar a preparação do indivíduo para o mercado de trabalho e, ao mesmo, tempo para ter consciência crítica sobre o que se passa em seu redor. A doutrina de Amartya Sen claramente explica que o indivíduo, no contexto contemporâneo, sem se capacitar e sem ter o mínimo de educação não é livre. No entanto, há de se fazer a devida adaptação da sua doutrina, assim como as demais advindas do exterior, para abarcar a realidade brasileira. E tudo isso deve ser feito levando em consideração o educando não como um objeto, mas um ser pensante que precisa desenvolver suas capacidades, e continue a desenvolvê-las por si mesmo.


BIBLIOGRAFIA

HAIDT, Regina Cèlia Cazaux. Curso de Didática Geral. 7. ed. 8. reimp. São Paulo: Ática, 2006.
LOIOLA, Mariana. Longo Aprendizado. Ajuda Brasil. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2006. Disponível em: http://www.ajudabrasil.org/noticias.asp?idNoticia=772. Acesso em 15 de novembro de 2006. 15h38’.
MORAES, Maria Cândida. O Paradigma Educacional Emergente. 9. ed. Campinas: Papirus, 2003.
PERRENOUD, Philippe. 10 Novas Competências para Ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.
____; THURLER, Mônica Gather; MACEDO, Lino de; MACHADO, Nilson José & ALESANDRINI, Cristina Dias. As Competências para Ensinar no Século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002.
PILETTI, Nelson. Sociologia da Educação. 18. ed. 7. reimp. São Paulo: Ática, 2006.
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como Liberdade. 5ª reimp. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão técnica Ricardo Donimelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Traduzido de: Development as Freedom.
____. Desigualdade Reexaminada. Tradução por Ricardo Donimelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001. Traduzido de: Inequality Reexaminated.

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