terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

À espera de Justiça: introdução à Filosofia do Direito


Prof. Ms. Roger Moko Yabiku


Vive-se numa era de rapidez das transformações de conceitos, de pontos de vista, de estruturas e de verdades. Trata-se de um mundo imerso não na segurança sólida de antigamente, mas submerso naquilo que o sociólogo polonês Zygmunt Baumann denominou de modernidade líquida. Não há mais fronteiras tão bem definidas assim, e aquilo que se formou anteriormente se deteriora numa velocidade espantosa, como o líquido se amolda aos novos formatos.
Seres humanos são vistos e tratados por outros seres humanos como coisas, como peças da engrenagem de um imenso sistema. Essa visão fria e mecânica da realidade típica da razão instrumental das relações meio-fim para a realização de fins imediatistas (visando produtividade, economia, eficiência, para o mercado), dizem Carlos Eduardo Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, reduz o espaço para a reflexão.
A razão instrumental, nesta sociedade de controle, invade todas as esferas da existência humana, inclusive o Direito. “Trata-se de uma sociedade anestesiada pela forte presença do poder econômico, pela imperativa e sedutora determinação dos comportamentos a partir de modas e influências midiáticas, e, exatamente por isso, incapaz de reflexão”, escrevem Bittar e Almeida (p. 8).
O que provoca indagações e estimula o pensamento não é bem visto nessa sociedade permeada pela superficialidade que consagra como válidos os valores disseminados pelo mercado e que levam à satisfação em termos de consumo. A Filosofia é deixada de lado, pois provoca questionamentos. Para Theodor W. Adorno, da Escola de Frankfurt, a razão deve ser emancipatória, para, assim, haver autonomia do indivíduo.
Dotado de razão crítica, o ser humano é autônomo pela “produção de cultura, de saber e de domínio das explicações sobre os fenômenos, das forças naturais (heteronomia causal) ou das forças sobrenaturais (heteronomia teológica)”, ensinam Bittar e Almeida a respeito de Adorno (p. 9). “Um indivíduo autônomo é aquele que guarda o distanciamento necessário para se tornar autor de si mesmo, e, por isso, legislador pela sua racionalidade de sua própria condição.”
A Filosofia faz com que o indivíduo pense, no sentido de ser autônomo. Assim, ele incomoda, provoca, modifica, desestabiliza, causa distúrbios, questionando a ordem vigente e as hegemonias solidificadas. A Filosofia do Direito fornece um arsenal teórico para se questionar o ordenamento jurídico positivo vigente. Não se trata somente de se aprender e a se utilizar das normas produzidas e impostas coercitivamente à observância de todos num determinado território, mas de ir muito, mas muito além disso.
Da mesma forma que se assombra diante da realidade, o indivíduo se assombra daquilo que se lhe apresenta como “justo”, perante o Direito. Esse assombro leva-o a problematizar a realidade fragmentada até chegar a uma solução racional. A Filosofia do Direito, para o desembargador Rizatto Nunes (p.1), teria duas funções: “a-) estimular o pensamento; b-) fazer uma crítica do conhecimento jurídico imposto pela doutrina”.
Para Rizatto Nunes, aquilo que foi denominado de “Ciência do Direito” (p. 1) reduziu-se a uma técnica de controle a serviço do Estado. E que o estudo do Direito dissociado de uma racionalidade mais crítica se tornou um problema. “Trata-se do elemento mitológico da linguagem jurídica, que, em vez de tornar seus estudiosos conscientes de sua importante função social, alienou-os.” (p. 1)



Dura lex, sed Lex. A lei é dura, mas é a lei, salientavam os antigos romanos. Este parece ser o postulado do positivismo jurídico que se apresenta nos moldes tradicionais. Ou seja, a lei está vigendo e deve ser cumprida. Se é justa, ou não é justa, não interessa. “O positivismo legal defende uma concepção moralmente neutra do Direito”, assinala N. E. Simmonds (p. 439)
Não se discute – nessa perspectiva – a correção ou incorreção de uma determinada norma ou decisão com base na Filosofia Moral, ou em critérios de justiça, segundo postulados de validade ou de invalidade segundo um ordenamento jurídico fechado em si mesmo, como se preconiza, por exemplo, na doutrina do austríaco Hans Kelsen.
Mas o que tem esse positivismo a ver com o Direito? Bittar e Almeida (p. 38-39) explicam: “Durante longo período, entravada a reflexão jurídica pela névoa positivista, pregou-se a possibilidade de um parentesco entre o método das ciências naturais com as ciências humanas, nestas últimas incluídas as ciências jurídicas. Esse prejudicial raciocínio tornou viável a sustentação de que o raciocínio e a lógica jurídica obedecem ao mesmo grau de certeza dos saberes naturais, que se estruturam a partir das categorias da causa e do efeito. Passou-se a estabelecer semelhanças que retiraram das ciências jurídicas seu caráter de ciência valorativa, desnaturando sua principal característica, a saber, a de estar constantemente assolada pela possibilidade de revisão de suas conclusões, a de ser dependente da moralidade social e dos hábitos costumeiros de uma sociedade, a de vaguear conforme as peculiaridades de casos concretos imprevisíveis a priori.”
Kelsen – talvez fascinado pelas conquistas científicas do seu tempo, em que a razão parecia ser a salvadora da humanidade contra a ignorância e as incertezas dos outros tipos de conhecimento – quis dar maior segurança e estabilidade ao Direito. E, nisso, ao elaborar sua “Teoria Pura do Direito” (Reine Rechtlehre), separou completamente Direito de moral.
O austríaco rejeitava as teorias de um Direito Natural, pois eram por demais incertas, sem qualquer validade científica. De acordo com Kelsen, o “discurso legal era baseado num pressuposto fundamental segundo o qual o regime que está no controle efetivo dentro de certo território deve ser obedecido”, narra N. E. Simmonds (p. 436): “Ele chamou esse pressuposto de ‘norma básica’. (...) Kelsen, no entanto, afirmava que esse pressuposto básico da ciência legal pode ser elaborado meramente para fundamentar uma cognição da lei positiva, sem diluir as questões de doutrina legal em questões morais sobre a justiça.”



Apesar de a norma fundamental (Grundnorm) ter semelhança com o imperativo categórico formulado pelo alemão Immanuel Kant, alguns séculos atrás, a mesma teria apenas função cognitiva, um primado racional mínimo para fundamentar positivamente o ordenamento jurídico. Isso daria sustentação a um ordenamento jurídico que teria uma hierarquia de normas, que teria a Constituição no topo. Não se discute, portanto, a justiça de uma norma ou decisão – em termos da Filosofia Moral – mas segundo sua conformidade ou não conformidade com o Direito.
H.L.A. Hart foi um positivista legal britânico, professor da Universidade de Oxford, porém, não muito estudado no Brasil. À semelhança de Kelsen, Hart também elaborou critérios de validade, naquilo que denominou de “regra de reconhecimento” básica, presente em todo sistema legal. Em suma, resume N. E. Simmonds (p. 439), Hart identifica as decisões judiciais ou promulgações legislativas como fontes do Direito: “Uma regra que emana de uma fonte apropriada é uma norma validade independentemente de sua justiça ou injustiça. De modo correspondente, uma regra que não emana de uma fonte apropriada não é uma norma válida, não importando quão justa ou razoável possa ser.”
Com todo o respeito, essa consideração com a elaboração das normas e seu critério de validação é semelhante a um esquema de montagem de uma unidade industrial, ou uma obra de engenharia, com predomínio da racionalidade instrumental. Nesses processos de ordem administrativa e de engenharia, há maior possibilidade de exatidão pela própria natureza das suas atividades, que podem ser quantificadas e mensuradas com base em modelos de ciências exatas.
Mas, no entanto, há necessidade de limitar os processos de ordem administrativa e de engenharia, por meio outras instâncias do conhecimento, já que – naquelas – não necessariamente se faz uma valoração moral. Somente se planeja e faz. E pronto. As considerações morais são tarefa da Filosofia, mormente da Ética. Daí, a intervenção de um mínimo ético contido no Direito para “frear” a voracidade desses processos.
O que seriam dos trabalhadores e do meio ambiente se não houvesse legislação específica para lhe tutelar os Direitos, protegendo-os contra a opressão do sistema econômico? Então, como pensar o Direito sem uma Filosofia do Direito?
Um Direito dissociado de justiça pode causar mais aberrações, em nome de uma legalidade, do que a desobediência às leis. Existe uma moral mínima no Direito que deve sempre ser lembrada, desde a sua elaboração e sua aplicação por parte do Judiciário. E o Direito não pode ser produzido ou simplesmente “pensado” como um sistema administrativo ou uma obra de engenharia, nos quais as variáveis podem ser calculadas. Caso contrário, como escreveu Karl Marx: “O Direito burguês é o tratamento igual dos desiguais.”



Eis algumas das metas e tarefas da Filosofia do Direito, segundo Bittar e Almeida (p. 56-57):

“1. proceder à crítica das práticas, das atitudes e atividades dos operadores do Direito;
2. avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte reflexivo ao legislador;
3. proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência jurídica e próprio comportamento do jurista ante ela;
4. investigar as causas da desestruturação, do enfraquecimento ou da ruína de um sistema jurídico;
5. depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos do Direito, bem como analisar a estrutura lógica das proposições jurídicas;
6. investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e seu compromisso com as questões sociais, seja no que tange a indivíduos, seja no que tange a grupos, seja no que tange a coletividades, seja no que tange a preocupações humanas universais;
7. esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas relações com a sociedade e os anseios culturais;
8. regatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurídicos, identificando a historicidade e a utilidade das definições, das práticas e das decisões jurídicas;
9. por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política e procedimental, auxiliar o juiz no processo decisório;
10. insculpir a mentalidade da justiça como fundamento e finalidade das práticas jurídicas;
11. estudar, discutir e avaliar criticamente a dimensão aplicativa dos direitos humanos;
12. abalar a estrutura de conceitos arcaicos, de hábitos solidificados no passado, de práticas desenraizadas e desconexas com a realidade sociocultural, na qual se inserem, de normas desconexas, e que atravancam a melhor e mais escorreita aplicação do sistema jurídico;
13. proceder à discussão das bases axiológicas, econômicas e estruturais que moram atrás das práticas jurídicas;
14. desmascarar as ideologias que orientam a cultura da comunidade jurídica, os pré-conceitos que orientam as atitudes dos operadores do Direito e descortinar as críticas necessárias para a reorientação da função de responsabilidade ético-social que repousa nas profissões jurídicas;
15. disseminar a cultura do humanismo, como forma ético-filosófica de resistência à tecnificação e pragmatização, à materialização e à alienação próprias da vida hodierna.”

Ah, quase que se esquece. Um aviso aos “práticos”. Agora, Filosofia do Direito é disciplina obrigatória para concursos de ingresso à magistratura no Brasil, nos termos da Resolução nº 75 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Por que será, não?


Leia mais sobre o assunto:

BITTAR, C.E.B.; ALMEIDA, G.A. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. aum. São Paulo: Atlas, 2010.
NUNES, R. Manual de Filosofia do Direito. 2. ed. ver. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
SIMMONDS, N.E. Filosofia do Direito. In: BUNNIN, N.; TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 434-459.

Um comentário:

Tiago Dantas disse...

Excelente abordagem mestre. Vale ressaltar que o direito não é um sistema mecânico, mas humano, de modo tal que é imprescindível resultados variados, de acordo com cada indivíduo presente na relação. Impossível seria sempre um mesmo fim para meios diferentes.

Tiago Dantas - discente do 3º A da Faculdade de Direito