quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Conto de Natal


A mesa é farta, com peru, leitoa, maionese, frutas, panetone e outras iguarias inerentes ao feriado cristão. Também há refrigerantes, vodca, uísque e outras bebidas, as mais variadas possíveis. Mas nada disso mata a fome ou a sede. Sentado numa cadeira, num canto escuro, mesmo a presença das pessoas ao meu redor não sacia a solidão. Na penumbra, o pensamento voa, enquanto encho o meu copo com uísque e três pedras de gelo. É um copo daqueles usados para embalar requeijão, com uma estampa que faz apologias ao seriado “Malhação”, aquela coisa ridícula. Não ligo, luxo ou finesse não estão no meu repertório.
Faces serenas, levemente alcoolizadas, esboçam ares de felicidade. Noite feliz, noite de amor. Mas durante aquela noite calorenta e abafada pelos vapores de chuva de verão, nem todos estão felizes. Do interior de sua cela, o detento vê a lua dentre as grades da janela. Pensa nos filhos e na mulher, que estão em algum lugar da periferia abandonada, a dedo, pelo poder público. Afinal, o pessoal de fora só presta atenção no centro, todo enfeitado. Assim, a cidade parece um fruto com boa aparência, disfarçando o miolo podre.
Nas proximidades do pleito eleitoral é boa hora para começar a melhorar as coisas por aquelas bandas, dizem os políticos. Este é o método de reprodução do clientelismo: sacanagem em cima da falta de mobilização dos pobres.
O detento tem consciência de que é um cidadão de segunda classe por não poder pagar um bom advogado. Seu único crime era ser pobre e honesto. O início de sua perdição foi ter dito “não” ao defender seu direito de cidadão de não querer ser extorquido, por tubarões de costas quentes. E o pobre diabo suburbano até hoje apodrece em vida ao lado de 19 outros colegas, numa cela com espaço projetado para seis pessoas. Guarda em si o ódio e a vontade de destruir o sistema que acreditava ser justo. “No dia que sair daqui, vou botar para foder com todo mundo.”
Naquele mesmo momento, novos ricos entediados exibem seus pertences a amigos e parentes menos afortunados. Tudo é motivo de falatório seguido de exibicionismo, desde a bebida importada diretamente da Escócia ao carro importado, novinho em folha. Assim como suas vidas, seus diálogos são vazios, baseados nas aparências e na oportunidade de sentir-se melhor por meio da difamação e desgraça alheia.
Um homem negro, vestido em trapos, com uma garrafa de pinga na mão é avistado na esquina. Os anfitriões e seus convidados sentem seus estômagos, cheios de iguarias e hipocrisia, revirarem. Não suportam ver aquela figura miserável que desponta aos poucos e se arrasta pela frente da mansão. A anfitriã, indignada, desabafa aos berros: “Desgraçado, sem-vergonha! Vá vestir uma roupa decente! A Prefeitura deveria tomar uma providência a respeito disso. Coisas assim só servem para deixar a cidade mais feia!”
Nos bairros de classe média para cima, pais reproduzem em seus filhos a crença ilusória num velhinho bonachão que distribui presentes para todos que se comportaram bem ao longo do ano. As crianças aprendem a não questionar coisa alguma, na esperança de ter a visita do Papai Noel, que lhes deixará algo desejado. Desde pequenos aprendem a ser comprados, sem remorso ou reflexão. É tudo na base da recompensa.
Lá na periferia, o caçula de uma família de oito irmãos sente-se culpado por não ter recebido sequer um mísero presente. “Fui um mau menino este ano. No ano que vem vou ser um menino bom”, pensa na pequenez de seus sete anos. Ainda não sabe que com dinheiro todo mundo é bonzinho.



Não tem Papai Noel no mundo que não é de mentirinha. Uma prova é a praça central, na qual os menores aprendem a ser gente grande do jeito errado. Meninos e meninas esturricam-se de aguardente e tentam esquecer a fome, cheirando cola de sapateiro ou fumando um baseado e pedras de crack. Bem na sua frente está a Catedral. Naquela noite, o sacerdote celebra a missa dando graças a Deus por tudo que ele e os participantes receberam durante o ano. Do lado de fora, nas vielas entre o templo e um prédio, um protótipo de mulher, de 12 anos, seduz um cliente. Experiente nas artimanhas do amor pago, espera que pelo menos no Natal alguém lhe trate com carinho e lhe pague uma refeição quente. “Amém”, encerra o homem sagrado, enquanto ela segura a mão do homem com idade para ser o amigo mais velho do seu pai, com duas vezes o tamanho dela, e caminha na direção daquele pulgueiro, cujo letreiro insiste em ser classificado como hotel. Sei que verei estas cenas com mais freqüência do que imagino.
Mais uma dose de bebida destilada e surge na mente que tudo poderia ser diferente. Apago a prostituta mirim da mente e invoco os resquícios de outra uma fêmea, aquela que um dia considerei a mulher da minha vida. Se ela ao menos tivesse me dado uma oportunidade, poderia ter lhe mostrado que ainda podemos ter esperança e confiança em alguém. Queria uma chance, por menor que fosse, de provar-lhe que era diferente dos demais canalhas que a decepcionaram. Nem tudo ocorre como a gente planeja. Ainda lembro do seu toque em meus lábios e dos seus braços me envolvendo, numa volúpia ardente muito maior que a paixão.
Os cabelos lisos e cheirosos deslizavam pelas minhas mãos como fios de seda fina. Seus olhos de fêmea, com trejeitos de menina, me desarmaram. Bons momentos passei ao seu lado. Contudo, descartou-me como um pedaço de papel higiênico usado. Enfiou sua mão no meu peito e arrancou meu coração. No fundo sabia que ela era igual aos canalhas dos quais reclamava. Nosso desfecho já estava escrito, não era para ser. Ring, ring, tocou o telefone. “Meu namorado voltou ao Brasil. Não podemos mais nos ver”, deu-me a punhalada de misericórdia e sumiu como seu nunca tivéssemos existido, sem se dar conta da sangria provocada pelo seu golpe.
Esta noite era para ser especial. Planejei tudo, nos mínimos detalhes. Tanto esforço para nada, foi tudo em vão. Fui passar o Natal com a família novamente. Pego meu copo com uísque até a boca e me acomodo ainda mais em meu canto escuro. Imagino como seria se a escolha dela fosse contrária. Aos poucos vou liquidando a bebida. Volto e completo meu copo novamente. Quando o relógio anuncia a meia-noite, fogos de artifício despontam no céu. O barulho de rojões e o cheiro de pólvora empestam o ar. Recolho-me ao meu canto em sombras, mas antes trago a garrafa. Repito o ritual. Tomo um gole largo e descanso o copo no meu colo. Fecho os olhos, lentamente, e tento vislumbrar o dia em que todos seremos felizes.

Um comentário:

Carol Bonando disse...

Adorei seu texto!
Ha certos detalhes muito comuns as pessoas nesta data. Sempre acontece algo parecido, repetido, peculiarmente triste em comparação ao resto do ano triste tb.
hehehe
abraco meu amigo, saudade!