quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
O enigma de 'D'
Naquela rua de terra, o prédio tipo sobrado desponta com luzes neon e um bocado de carros estacionados na frente. Estacionamos ali mesmo, com cuidado para não tapar a saída de outros veículos e à vista o bastante para não sermos vítimas de algum tipo de emboscada. O corredor de entrada está vazio e a pintura é decadente.
– Qual o esquema da casa? – pergunta meu amigo.
– São R$ 15,00 de consumação fora o programa -, responde o leão de chácara que faz as vezes de porteiro.
Pegamos as comandas e entramos no local. Aquilo era uma discoteca. Hoje, um estabelecimento de entretenimento adulto de não tão alta qualidade. Da entrada, se caso se siga reto, há uma porta que dá para as acomodações das moças. Ao virar à direita, entra-se para o salão. Na entrada do salão, se virar à esquerda desponta uma escadaria que leva a um mezzannino com mesas, sofás e quartos. É o setor de swing, presumo, desativado, pois a escada está barrada com uma corrente.
No salão, bem ao meio uma passarela de concreto, com um cano no meio, onde elas desfilam, despem-se e se dependuram para o deleite dos olhares famintos por satisfação. Contíguo ao salão, está o bar. Não há bebidas caras. Em redor da passarela de concreto, há mesinhas e cadeiras com armações de ferro fincadas no chão. As tampas das mesas e das cadeiras são de madeira pintada e repintada de vermelho. Se não tivessem essas tampas, pareceriam “gaiolas”, brinquedos de parques para crianças.
Instintivamente, entramos no salão direto ao bar. Pegamos, cada um, uma lata de cerveja. A consumação dá direito a três. A presença alta, esquia e esbelta se aprochega ao meu lado e esboça uma conversação. De saltos altos, pernas longas e carnudas, camisa amarrada e uma discreta corrente com a letra “D” no pescoço, a loira de olhos azuis e presença espiritual me convida para sentar. Meu amigo fica recostado ao balcão.
Antes, já tinha feito a varredura visual do ambiente. Com certeza, ela é a moça mais atraente da casa. Aceito o convite. Ela me leva pela mão até um conjunto de mesa e cadeiras com tampa de madeira sobre as armações metálicas. Olho com receio para o apetrecho.
– Não tem perigo desse treco cair? - indago ironicamente.
– Se você cair, eu lhe seguro, meu anjo. – responde angelicalmente.
Parece que o timbre e o tom da voz dela são articulados minuciosamente, no intuito de causar encanto e ao mesmo tempo sedução. As aparências nesses lugares, como em outros, são tudo. O que importa é a primeira impressão, o que vem depois não tem mais importância, já queimou o filme.
Nesse joguete de ser e não ser, de ter e não ter, de parecer e não parecer, da vida, a inconstância é constante e tudo nada mais é que pura ilusão. É a ilusão do primeiro encontro que ela tenta simular para me abarcar diretamente para o ninho de negócios. Isso não tem a ver com amor, absolutamente. São transações comerciais, minuciosamente tratadas, com intuito de lucro, de um lado, e prazer, de outro. Não é dinheiro fácil, exige-se profissionalismo nos atos libidinosos e nas conjunções carnais. Cliente não satisfeito queima o filme do estabelecimento, não só da moça. As moças, nesse meio, são descartáveis, aliás, como tudo na vida. Mas aqui parece que se descartam as pessoas com maior facilidade, maior liquidez.
Elas falam de tudo, com naturalidade, com desenvoltura, como se acreditassem realmente em tudo o despejam em nossos ouvidos. Não estou acostumado a ouvir elogios. Quando os elogios me chegam fácil, desconfio profundamente. É a frieza que se enrijeceu implacavelmente na minha existência.
Fazemos os cumprimentos iniciais, em que cada um diz o seu nome. “D” sabe conduzir o ritmo da conversa. Não se aproxima com vulgaridades típicas de outras pessoas do ramo. É bem suave. Pergunta se sou casado, se tenho namorada, ou algo similar.
– Não. – respondo secamente.
– É que você é muito tímido. Costuma sair? – retoma.
– Não. – repito a ladainha.
- Desse jeito, como você pensa que vai se casar ou arranjar uma namorada? – repete incisivamente.
- Olha, realmente, nunca pensei nisso. Acho que nasci para ficar sozinho. E aqui, sinceramente, não é lugar para arranjar esposa ou namorada.
- Ai, como você é grosso!
Percebo a gafe e peço desculpas. Não há necessidade de se humilhar os outros, muito menos prostitutas. Dou uma passada no banheiro. Meu amigo pergunta se vou transar com a “cavala”. Digo que estou sem dinheiro. Ele disse que pagaria por mim, que o programa ficaria na faixa. Desconfio que há algo de muito errado nisso, que ele já conhece demais o esquema daquela casa, tendo como comparsas outras pessoas que já conheço. Mantenho a frieza. Retorno ao banco para conversar com a minha “amiga”.
- Você é bonito – diz “D”.
Perto do nível dos homens que estão no local, devo ser Brad Pitt mesmo. Imagino que ela deve estar acostumada com velhos carecas e gordos, ou pessoas com falta de higiene. Devem aturar muito desaforo. Algumas conhecidas, que faziam programa em tempo de vacas magras, ficavam revoltadas no dia seguinte, tratavam os homens com desprezo, como se tivessem nojo de tudo quanto é coisa que tivesse pinto. O idiota aqui sempre foi bode expiatório dessas moças. Talvez o motivo seja a minha incrível cara de imbecil, de songo, como freqüentemente me fala uma amiga.
- Nossa, acho que você deveria usar óculos, ein. Eu, bonito?
Ela dá uma gargalhada estrondosa, me mostra uma tatuagem no pescoço e me fala mais sobre sua vida particular.
- Fui caixa num hipermercado. Depois de uma semana fui promovida a atendente.
- Você tem boas qualificações, além de muito bonita é inteligente.
- Mas sempre me chamavam atenção porque eu ficava conversando com os clientes e a fila não andava – cutucou-me com uma indireta. Queria me levar para o nicho, daquele moquifo, o mais rápido possível e fazer alguma grana em cima de uma pessoa com cara de nerd, como eu.
- Cobro R$ 150,00. Faço tudo.
- Infelizmente, não vim com dinheiro para isso hoje. Saí para jantar com o meu amigo. E só isso.
- Espera um pouquinho aí, meu amor. Vou ao banheiro.
Termino de beber o restinho de cerveja. Aprecio as belas formas da mulher. Realmente, é a mais bonita da casa. Mas tem algo de muito estranho em tudo isso. Parece uma armação. Linda. Mas ela tem pequenos pneuzinhos ao longo do abdômen - sinal de que é mulher mesmo, só travestis ou mulheres com quilometragem de cirurgia plástica têm formas perfeitas. Nisso, estou fora. Não recomendo, nem aprecio. Mulher tem que ser mulher, no original.
- Meu amor, fui com o seu santo. Fizeram uma armação para você. No quarto tem uma câmera. Você é uma simpatia de pessoa, meio tímido, mas gente boa. Queriam nos filmar fazendo amor para colocar no Youtube, da internet – revela “D”, ao sair do banheiro. – Vou escrever, num pedaço de papel, o meu MSN Messenger e o meu nome completo para você me adicionar no Orkut.
- Obrigado pela sinceridade. Não me esquecerei disso.
- Gostei muito de você, mas eu preciso ir falar com outro cliente. Ou vão dizer que fiquei uma hora inteira com você para não ter resultado algum e não me deixam trabalhar de novo aqui.
- Vai lá, faça a sua parte. Outra hora nos falamos longe deste ambiente infecto e nauseabundo.
“D” se despede de mim com um selinho. A única coisa doce que meus lábios receberam nesses dias, para barrar o amargo da cerveja de quinta categoria que bebi durante a noite. Preciso pensar rapidamente no que fazer para me livrar dessa palhaçada toda. Cansei de ser idiota, a piada da cidade. Não devo, contudo, ser precipitado. Entretanto, o sangue está fervendo. E hoje o pau vai comer. Sabia que seria revistado. Então, a arma ficou na blusa, dentro do carro. Fazer escândalo dentro da boate é besteira. Só tenho que acertar as contas com esses energúmenos sem noção de vergonha na cara.
Estava desconfiando mesmo desse povinho. No trabalho, telefonemas com obscenidades. Prostitutas pagas para me telefonarem e falarem porcarias. Tenho jeito e voz de idiota. Prefiro assim. – Songo – diz uma amiga. Tenho boa-fé. É diferente de ser songo, ou bestão. Dou uma chance para as pessoas, sempre. Mas tenho pé atrás. Não dá para saber o que se passa na cabeça dos outros, principalmente hoje em dia. Eu e meu amigo pagamos a conta. Vamos em direção ao carro.
- Você devia ter comido aquela cavala – diz ele. Sabe que eu bancava tudo.
- Fica para a próxima. Não me senti bem no lugar. Estava muito vazio, parecia que se eu subisse as escadas para comer ela, logo depois que descesse, o povo ia ficar me olhando para aplaudir.
- Impressão sua, deixa de ser encanado – completa, assim que arranca com o carro. – O negócio lá era só fazer sexo e boas.
- Bom, você que pensa.
Minha arma está carregada. Vamos nos encontrar com uma galera. O local combinado é um bar de rock, com temática de motoqueiros. Chegamos ao local com uma faixa com os dizeres: “Finalmente, perdeu o cabaço.” E ainda por cima tinha o meu nome. Estouro de champanhe e muita gritaria. Espero estacionar o carro, para entrar no bar abraçado com o meu amigo, que está com um sorriso de orelha a orelha. Entro no clima. Dou uma de idiota, para variar. Ninguém me revistou, nem nada. A festividade é me fazer de imbecil, a piada local. Cambada de gentinha, lixo humano. Ainda abraçado com meu amigo, retiro a pistola e a posiciono contra a sua têmpora. Um só disparo e pedaços de crânio e massa encefálica se espalham pelo local, em cima dos convidados, inclusive.
Gritaria e correria recheadas de pânico dão colorido especial ao final de madrugada. Descarrego o pente de balas, recarrego a pistola e volto a atirar. O sangue está fervendo e não quero saber se alguém é inocente, ou não. Para mim, todos os presentes nessa porcaria são culpados, sem exceção. Melhor sair logo dessa bagunça, antes que me trancafiem na cadeia e joguem a chave fora. Não quero publicidade. Esse meu trabalho noturno é discreto. Ninguém precisa saber. Nem “D”, aliás. Vou para casa, tiro completamente as roupas. Enfio no saco de lixo. Amanhã penso num lugar para incinerá-las. Ligo o computador e crio uma identidade falsa no Orkut. Deixo um recado para “D”: - Quero lhe encontrar oportunamente, de maneira discreta. Está resolvido aquele probleminha. Ninguém mais vai espiar a gente.
Cabaço é o caralho. Mas melhor que pensem assim. Ninguém iria investigar um Zé Mané como eu pelas minhas atividades de matador.
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