Visco das entranhas espalhava-se
pelo chão, numa mistura com sangue, fezes e outras substâncias típicas do
aparelho digestivo. Tal como uma cena grotesca de arte, enrolou-se um pedaço do
intestino em redor do pescoço do cadáver, como se aquilo fosse uma gravata da
mais recente moda. Era um espetáculo jamais visto antes. A parte inferior da
boca descolou-se do crânio, abrindo a boca até a metade do pescoço, num sorriso
macabro, sombrio e tenebroso.
Um filete
de voz ainda escapulia pela garganta do sujeito, demonstrando que, apesar de
todo o aparato sofisticado de tortura, o desgraçado ainda estava vivo. Sem os
dois globos oculares, que foram ocupados estrategicamente por bolinhas de gude,
e sem a parte inferior do torso, cuja mutilação deixava escorrer o restante das
vísceras pelo ambiente. E o odor se tornou fétido e imprestável.
Aquela
carcaça inútil ainda resistia, porém, não se sabia que poderia ter tamanha
vontade de viver. Como isso poderia se dar, já que não teria condições reais de
viver normalmente, sem nada que lhe impedisse de usufruir das delícias que
outrora provou.
Mesmo que
nada mais lhe restasse, a mente praticamente moribunda do quase cadáver
relampejava e insistia em manter e a enviar alguns sinais elétricos para as sinapses,
apesar do prelúdio da morte certa e imediata.
Um crime
com status estético, tal como aquele em que se seu caráter artístico àqueles
corpos de prisioneiros chineses embalsamados e fatiados, expostos como se
fossem obras de arte.
Jamais
tinha visto algo parecido na minha parca existência. Tudo refletia o que mais
de horrendo já havia percorrido a superfície terrestre. Um espetáculo além do
macabro, que ficaria para sempre na minha memória.
Nunca mais
conseguiria dormir sem antes sorver alguns goles de bebida alcoólica para
tentar apagar, da mente, aquela degradação que me invadia constantemente os domínios
do real e do imaginário.
Tinha que
me livrar daquilo, pois me lembrava outra faceta do meu ser que nunca enfrentei
antes. O lado obscuro da alma, que abraça a loucura e os demônios encalacrados,
insurgia-se, de tempos em tempos, para dar vazão ao ódio acumulado ao longo dos
tempos.
Aquela obra
de arte hedionda tinha um autor peculiar que custei a reconhecer. Mas ao
reconhecê-lo, tive sobressaltos de decepção. O ser nauseabundo e fétido era da
minha autoria. Eu, artista apocalíptico que esporrava a mais profunda raiva com
talhadeiras, furadeiras, serras e outros instrumentos típicos de carpintaria em
matéria orgânica que insistia em continuar viva.
Dificilmente
saberei dizer com todas as palavras os sentimentos que se apoderaram de mim
quando selecionei a minha presa e a entalhei com requintes de sensibilidade
barroca.
Por muito
tempo, aprendi a controlar as emoções, a ficar calado quando contrariado, numa
frieza que daria inveja ao mais articulado dos espiões. Mas isso de nada serviu
quando não consegui mais segurar a besta interior. Não tenho mais possibilidade
de saber se terei habilidade para controlá-la, no intuito de se evitar outros
massacres.
A vida de
seres como o que acabo por destruir é totalmente perecível e descartável, mesmo
com relação a um suíno. Pedófilos não são pessoas, e sequer podem ser
considerados humanos. Não há parâmetros para suportar animais desse porte que
destroem de dentro para fora a infância que deveria ser sagrada a toda e
qualquer criança.
Em todos
seus crimes, o sacerdote seviciava os pequeninos com um crucifixo preto de
madeira, arrebentando-lhes as aberturas do ânus e da vagina das meninas e do
ânus e do pênis dos meninos. Os poucos que sobreviviam depois de horas de
brutalidade eram submetidos a cirurgias de reconstrução, porém, não teriam mais
possibilidade de controle do despejo dos seus excrementos e outras secreções.
Ele filmava
todas as sessões de “catecismo”, narrando detalhadamente cada uma das
atrocidades que cometia e ignorava, por completo, os clamores das vítimas pela
piedade e pela intervenção divina. Penetrava-as por todos seus orifícios,
lambuzando-os com seu sêmen. Gentilmente, após realizados os atos, banhava seus
corpos em água benta, no intuito de purificar as almas dos ingênuos e perdidos
pecadores.
Consegui
sobreviver, padre. Mesmo com meus órgãos baixos dilacerados e a dignidade
corrompida, Deus me deixou vivo para que eu pudesse me dar conta da minha
verdadeira missão nesta terra profana. Naquele dia, padre, o senhor e seu
crucifixo me levaram ao inferno e não mais retornei. De acordo com a doutrina,
mesmo sendo vítima, tornei-me um pecador.
Sim, padre.
Igual ao senhor, também sou um pecador. Porém, um pecador contra minha vontade.
Lembra-se quando eu lhe ajudava nos preparativos da missa e todos meus amigos
do orfanato sentiam orgulho? Poucos sabiam, padre, ou queriam não acreditar,
que naquela minha dedicação, havia grilhões em minha alma que me aprisionavam diretamente
ao senhor.
Inúmeras
vezes, padre, o senhor me seviciou com as garrafas do vinho com que celebrava a
missa, mastigava as óstias e me cuspia dentro do intestino, como se eu fosse um
peru sendo recheado para a ceia natalina. Não percebia meu choro calado e as
lágrimas secas que encharcavam o ambiente.
O senhor me
tornou servo do demônio, padre. Num lugar onde esperava salvação, como outros
garotos miseráveis do meu bairro, o senhor me destruiu no primeiro momento em
que me forçou suas carícias. Em outra paróquia, foi o digno defensor da virtude
e da castidade. Mas aquela era uma paróquia de ricos, senhor. Padre, o senhor
violou justamente as crianças depauperadas de dinheiro e de afeto. Aquelas que
mais queriam o seu puro amor.
Não que
haja diferenças morais por se nascer rico ou pobre. Juízos morais não se
proferem com base em propriedade ou posse de bens materiais. Porém, éramos os
que mais necessitavam da sua proteção, pois nas nossas casas, escolas e outros
recintos sociais estávamos sujeitos a sermos violados. E não na casa do nosso
Senhor.
Na sua
chácara de final de semana, padre, o senhor passou um pouco dos limites e
estraçalhou as minhas carnes. Deixou-me junto ao córrego carregado de esgoto
para, simplesmente, morrer, totalmente lambuzado com suas secreções. Não
parecia que ia sobreviver, padre. Mas a cúpula da ordem já estava de olho no
senhor, acompanhando os seus passos, coletando provas, para que o Sumo
Pontífice firmasse sua convicção com certeza.
Todos os
membros da força tarefa da ordem que deveriam lhe capturar se compadeceram
diante dos meus restos vivos e começaram me acudir, para me tentar reanimar,
enquanto o senhor, padre, fugia como um anjo caído se apavora diante da luz do
Sol.
Morri naquele dia por sua obra,
padre. Renasci das cinzas junto à ordem, que não poupou esforços para
reconstruir cirurgicamente meu corpo. Não deveria voltar a andar, falar, ler,
ouvir ou escrever. Por isso, a ordem fez crer, assim como eu, padre, que minha
sobrevida foi um milagre.
Fui rebatizado. Lembrei-me do
senhor, padre, que me fez o primeiro batismo, a primeira comunhão e a crisma.
Precisava, contudo, ver-me redefinido, junto com a fé que o senhor me ensinou,
mas que o senhor mesmo traiu. Meu corpo é uma aberração, um misto de músculos,
ossos e aparatos mecânicos, sem os quais não poderia sequer respirar. Seu
estrago em meu corpo e meu espírito foram devastadores, padre. Isso me queima
até hoje.
Porém, o fogo que o senhor ateou
no meu espírito, padre, é mais incandescente e doloroso que toda fustigação a
que me sujeitou. A remoção cirúrgica das minhas partes estraçalhadas, da minha
masculinidade e de outras partes vitais, padre, me arde menos que a decepção
que o senhor me causou e aos outros inocentes.
Os anos de recuperação e de
fisioterapia, além do treinamento de soldado da fé, padre, em vez de me
auxiliarem a recuperar a fé no Senhor, Nosso Deus, me alimentaram o ódio e o
desejo de vingança contra a sua pessoa. Deram-me a extrema unção quando me
encontraram no córrego de esgoto em que me deixou para morrer, padre. Mas algo
brilhou no fundo do meu ser, algo que não me deixou esmorecer, de forma alguma.
Aquela extrema unção tornou-se algo que me fez viver, sentir-me com um motivo
de perseverar diante de toda aquela adversidade.
Sobrevivi e fui reconstruído pela
ordem, padre. Porém, creio que ainda estou morto, tal como o senhor me havia
quase deixado. As próteses metálicas, com funções também beligerantes, são tão
frias quanto aquilo que um dia foi o coração de um menino cheio de expectativas
com o futuro.
Não vejo
esperanças num mundo que mascara esse tipo de atividade insensata e insana,
muito menos de fiéis que acobertam os crimes de um sacerdote, que usa da fé e
da confiança para atraiçoar aqueles que deveria proteger. Rezar e idolatrar a
divindade e se dizer pregador da sua palavra para milhares de pessoas ao longo
dos anos, com atividades secretas com algumas delas, selecionadas especialmente
para outros fins, assemelha-se a um pastor que sevicia as crias do rebanho, sem
que haja possibilidade de reação.
A decepção
é insuportável. Nossa ordem sempre primou pela aplicação correta da palavra
divina, sem que houvesse aberrações ou distorções contra os mais fracos, que
não têm possibilidade de se defender. De um lado a cruz e, do outro, a espada para
fazer valer os desígnios de Deus numa terra infestada pelas intenções e ações
malévolas.
Certamente,
a espada pode ser substituída por qualquer outro tipo de armamento, até mesmo
por aqueles que são improvisados, mas que são extremamente letais se empregados
por profissionais experientes contra qualquer tipo de ser vivo.
A arte de
matar parece contradizer o mandamento cristão de preservar, a qualquer custo, a
vida. No entanto, o mundo não é preto e branco, com fronteiras bem definidas.
No discurso religioso, isso é possível, entretanto, no mundo real, tudo é
pincelado em tons cinzentos, sem que haja distinção nítida entre o que é certo
e o que é errado.
Para
combater os que violam o ordenamento social, não bastam somente boas intenções.
Há necessidade de emprego de força, ou mesmo passar por cima dos princípios
que, outrora, juramos defender. Ficamos encarregados de limpar a terra com
nossos atos concretos, enquanto os sacerdotes e os fiéis se encarregam das
orações.
Oficialmente,
não existimos. Oficialmente, seremos execrados se formos pegos. E, sem dúvida,
abandonados por nossos superiores e por nossos comuns. Apesar de desempenharmos
nossas funções com propriedade, o anonimato é essencial para a existência da
ordem.
Não há
liberdade de expressão nesse âmbito, muito menos de solidariedade. Aprendemos a
matar, um ofício solitário e sensível, com a trilha sonora das orações e dos
cânticos sagrados. O assassinato justificado, por assim se dizer, de pessoas
que se tornaram indesejáveis perante o mundo, mas que as autoridades
religiosas, políticas e econômicas não têm coragem de se livrar delas.
Somos nós
que fazemos o trabalho sujo que mancha de sangue nossas almas para que as dos
demais permaneçam imaculadas à espera da salvação prometida nos templos. Os
cavaleiros devem ficar ocultos e exclusivos aos desígnios da ordem, tal como
androides sem convicção, além de cumprir exemplarmente aquilo que lhes fora
designado.
Nascemos
mortos e sabemos de antemão que seremos amaldiçoados por tudo aquilo que fizemos
por nossa passagem terrena. Iremos direto para o inferno. Um paradoxo, já que
lutamos para fazer valer os mandamentos de Deus, embora, na verdade, utilizemos
o ferramental do demônio.
- Bang. É o
estampido seco do tiro bem no meio da sua testa. São os últimos sons que ouviu,
padre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
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