sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O mito e os avatares contemporâneos

Prof. Ms. Roger Moko Yabiku

Ao se falar em mito, muitas vezes se pensa em povos não tão civilizados quanto os que vivem nos ambientes urbanos, ou mesmo rurais, dotados de aparatos estatais como escolas, Estado e apetrechos tecnológicos, como televisão, computador e internet. Porém, há de se desprender dos preconceitos, para que não se classifique de modo prejudicial outros povos, ou pessoas, que vivem ou concebem o mundo de uma maneira diferente.
Os povos tribais muitas vezes são vistos como inferiores, o que justificaria, de certo modo, a imposição cultural, econômica e ideológica de povos vistos como “superiores”, que teriam a missão de lhes levar progresso e a religião escolhida como a melhor.
Durante séculos, os colonizadores – europeus, principalmente, durante as grandes descobertas levadas a cabo dos séculos XV ao XVI – tiveram essa visão a respeito dos povos “conquistados”. Num primeiro momento, o objeto das navegações de descoberta era a Índia. Ao se chegar às Américas, porém, pensavam estar na Índia. Daí, denominaram os aborígenes locais de índios.



Para evitar equívocos, alguns escolheram o termo “indígena” para denominar os povos nativos americanos. O antropólogo Claude Lévi-Strauss dizia que se deveria colocar “aspas” na palavra “primitivo”, para evitar que se entendam esses povos como inferiores. Não são inferiores, no seu entendimento, são diferentes.
Há de se respeitar esses povos diferentes, com estágios de desenvolvimento tecnológico em descompasso com os das demais nações “civilizadas”, para que se evite o extermínio etnológico, cultural ou mesmo se justifiquem genocídios.
Os “civilizados”, ao contrário dos “primitivos”, perderam muito das suas percepções sensoriais, ou seja, de sentidos como a visão e a audição que permitem identificar plantas e animais, ou mesmo situações que não são comuns no território urbano.
Quem assistiu o filme “Avatar”, de James Cameron, pode perceber nitidamente os problemas que o personagem Jake Sully tem para se adaptar ao modo e vida dos humanóides Na’vi. Jake Sully é um fuzileiro naval que perdeu o movimento das pernas (paraplégico). É escolhido para substituir seu irmão gêmeo (falecido) num experimento colonizatório na lua Pandora do planeta Polifemo.
A companhia mineradora deseja extrair a maior quantidade possível do metal “unobtanium” de Pandora. Porém, encontram resistência dos Na’vi, humanoides de pele de cor azul com feições de felinos e extremamente afeitos à natureza. Para tentar se aproximar dos Na’vi, cientistas da companhia criam os “avatares”. Tratam-se de seres híbridos entre humanos e Na’vi, que são “pilotados” pelas consciências de humanos.
Jake Sully – ao incorporar seu avatar – entra em contato com os Na’vi e, após se entrosar, incorpora seus hábitos e modo de viver. Os Na’vi, semelhantemente aos “indígenas”, possuem explicações míticas para o mundo.



Mas, enfim, o que seria o mito? Ensina Marilena Chauí (Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 34) que o mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. É feita em público com base na autoridade e confiança que se deposita no autor (nem sempre conhecido, especialmente no caso de narrativas folclóricas). O estudo dos mitos é chamado de mitologia.
Embora academicamente, a mitologia grega – fundadores da Filosofia – seja a mais conhecida. Não há de se ignorar como esses mitos gregos antigos, ou mesmo mitos de outras civilizações (romana, japonesa, chinesa, hindu, etc), são atuais e refletem na produção cultural de hoje.
Na mitologia grega, a origem do mundo, segundo Chauí (p. 35), era explicada de três maneiras principais: a-) o encontro do pai e da mãe das coisas e dos seres, forças divinas que, por meio de relações sexuais, davam origem a outros deuses, titãs (mestiços de deuses e humanos), humanos, metais, plantas, animais e qualidades; b-) rivalidade ou aliança entre deuses, que originam algo no mundo dos homens (o lado claro e o lado claro da força, nos filmes da série Guerra nas Estrelas, por exemplo); c-) encontro de recompensas ou castigos dados pelas divindades em virtude da sua obediência ou desobediência (a missão de Frodo em “O senhor dos anéis”).





De acordo com Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins(Filosofando. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003. p. 72), “os modelos de construção mítica do real são de natureza sobrenatural, isto é, recorre-se aos deuses para compreender a origem e a natureza dos fatos.”
Muitas vezes, o mito é permeado de ritos que lhe permitem sua transmissão. Repetem-se os gestos exemplares dos deuses (ou de costumes folclóricos), para que se leve adiante a tradição. Interessantes são os ritos de passagem. Como, como por exemplo, o da infância para a vida adulta. No filme “Avatar”, Jake Sully era visto como um “bebê”, até que aprendeu os costumes dos Na’vi e conquistou seu “ikran” (réptil alado), o que simbolizou a conquista da vida adulta e seu lugar entre os nativos. Mas esses rituais também são patentes no cotidiano, por meio das comemorações de aniversário, casamento, ritos de namoro, festas de formatura, trotes de calouros, entre outros.
Pode-se verificar que o mito pressupõe ingenuidade, sem problematização da realidade, com aceitação acrítica dos mitos e rituais. “A adesão ao mito é feita pela fé, pela crença. No universo cuja consciência é coletiva, a transgressão da norma ultrapassa quem a violou. Por isso a transgressão do tabu – proibição sempre envolta em clima de temor e sobrenaturalidade – estigmatiza a família, os amigos e, às vezes, toda a tribo. Daí os ‘ritos de purificação’ e os rituais do ‘bode expiatório’, nos quais o pecado é transferido para um animal.”
Lembram-se do filme “Apocalypto”, de Mel Gibson, em que, não raro, eram feitos sacrifícios humanos, inclusive, para se aplacara a ira da divindade? E no seu cotidiano, como isso se aplica? Muitas vezes, se escolhe uma pessoa ou grupo de pessoas para justificar uma situação desfavorável. Adolf Hitler e o regime nazista escolheram os judeus, “sacrificando-os” (no evento hoje conhecido como Holocausto), em prol da glória do III Reich. Para refrescar a memória, sugere-se ver o filme “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino.



O mito e a religião estão também de certa maneira entrelaçados. No começo, explicam Aranha e Martins, existe uma multiplicidade de deuses momentâneos, com valor medido pela emoção subjetiva e, ainda, pelo medo. Posteriormente, se descobre os sentimentos da individualidade do divino, dos elementos pessoas do sagrado. Cada atividade ganha seu deus funcional. Um exemplo patente são os santos e santas padroeiras, cada qual protetor de alguma atividade ou profissão, com um significado – que não poderia deixar de ser – religioso, que pode induzir a “rituais mágicos”, como as tradicionais simpatias.
Num terceiro momento, surge um deus pessoal, capaz de agir e sofrer como as pessoas, cuja proteção se amplia para o trabalho, para as atividades intelectuais e às artes. Nesse momento – dizem Aranha e Martins – substitui-se o mágico pelo ideal de justiça, assumindo um caráter mais racional que emocional.



Na antiguidade grega, a Filosofia, de acordo com Chauí, foi a primeira tentativa de explicar racionalmente a realidade, no Ocidente, rompendo radicalmente com os mitos. Hoje, se fala da Ciência como norte do conhecimento. Porém, há de se tomar cuidado, como alertam Aranha e Martins, para não se transformar a própria Ciência num mito. O positivismo de Augusto Comte (século XIX) afirmava que a maturidade do espírito humano dependia do abandono de todas as formas míticas e religiosas, tendo como a única forma de saber possível a Ciência. A Ciência desapegada da Ética e da Filosofia – e dos mitos e porquê não? – pode levar a atrocidades, como a criação de clones humanos – como gado – para a extração dos seus órgãos a serem transplantados em pessoas “originais”, como se vê no filme “A ilha”.



Há possibilidade de se viver racionalmente, porém, sem deixar de lado o mito e seus rituais. A dimensão humana não existe somente em função da ciência e do conhecimento racional. Daí, a necessidade da reflexão ético-filosófica e do cultivo dos mitos por meio das artes. Caso contrário, os humanos estarão cada vez mais “coisificados”, como partes ou peças de uma engrenagem de um sistema frio, mecânico e com raras possibilidades de discussões éticas ou estéticas. Aí, a vida fica muito sem graça, não?

Um comentário:

Eduardo J. S. Honorato disse...

Belíssimo texto. Parabéns!
Temática muito boa. Vou indicar aos meus alunos.

abs