- Sai da frente moleque desgraçado, que está atrapalhando o caminho!
- Calma aí, tio.
- Não sou seu tio, filho da puta, e vê se some rapidinho.
Juliano nem escutou direito as últimas palavras. Os dedos gordos do homem juntaram-se numa concavidade e ergueram-se numa trajetória lateral até a orelha esquerda do menino. - Plac. - foi o estampido do zumbido que ficou latejando por um bom tempo no tímpano dele. - Esse foi de graça, da próxima vez, sai mais caro.
Saiu rapidinho, por uma das vielas da Catedral, saindo da Praça Central para Rua Padre Luiz. De lá, ia dar uma passada na Concha Acústica. Já era noite e o calor insuportável de fim de dezembro engordurava sua pele morena e esquálida pela ação dos helmintos. O Centro estava vazio. As buzinas e os passos das pessoas pelas calçadas permaneceram mudos como um reflexo da ressaca do Natal. Juliano era miúdo. Apesar dos 14 anos, aparentava 11. Seus passos desanimados compensavam-se com o sonho de um dia ter uma vida normal. Nas costas, encobertas por uma camiseta de algodão bem justa e agarrada às formas do tórax, estava a cicatriz da navalhada, uma espécie de demonstração de afeto de sua primeira noite como prostituto mirim. Para disfarçar, tatuou um navio em cima do talho, em cima do pulmão direito. Seus olhos eram amarrados e distantes, como se quisessem partir desta dimensão para outra realidade mais acolhedora.
Ocorrência: 15 de novembro de 1998. Juliano Alves Pereira, data de nascimento: 7 de setembro de 1984. Idade: 9 anos. Escolaridade: 3ª série do 1º grau. Local de nascimento: Maringá, Paraná. Mãe: Matilde Alves Pereira. Pai: desconhecido. Estado civil da mãe: amasiada.
Juliano um pentelho vivo e inteligente fazia vida fácil na escola. Aprendia rápido um pouco de tudo e tirava boas notas. Não repetiu de ano nenhuma vez e por causa disso seus colegas eram mais velhos, maiores e mais fortes. Mas o bichinho sabia impor respeito. No pátio era o rei da conversa, um pouco assanhado e inocente, dizia: - Conhece a Sandrinha ? Ela é minha namorada, mas não fale nada porque ela não sabe ainda.
Naquele fim de tarde, saiu correndo da escola com o boletim na mão. Passou em tudo, com o calor úmido de fim de ano escorrendo em suor pela sua garganta. A mãe terminava de limpar o toalete, numa mansão do Jardim Santa Rosália. Toalete, explicou-lhe em certa ocasião, é o nome que os ricos dão ao banheiro. Assim como a privada recebe o nome quase científico de vaso sanitário. Tinha um tal de bidê, que Matilde nem sabia para que servia.
Trotando pelas ruas, coberto da terra vermelha que assola a região, Juliano tinha o documento nas mãos como se fosse um cavaleiro numa cruzada à Terra Santa. “Mãe, passei de ano ! Fui o primeiro da classe !” Em atrito com o asfalto de quinta categoria, seus tênis - imitação de um Nike de linha - produziam aquele ruído característico de quem arrasta os pés pelo chão. Avistou o casebre de dois cômodos, abriu a porta da cozinha-sala. Não encontrou Matilde. Porém, não desanimou. Mostrou, aos gritos, seus feitos ao padrasto, Zezo, que pendia cambaleante na poltrona semi-rasgada comprada num brechó no centro. A garrafa de aguardente já estava quebrada no canto do cômodo principal.
A euforia durou pouco. Juliano pensou por um décimo de segundo que seu padrasto ia ser bom para ele pelo menos naquela ocasião.
- Pensa que é mais esperto que eu, né ? Você ainda tem muito o que aprender... Muito mesmo. Essa porcaria de papel que você trouxe não quer dizer nada comparado ao que eu aprendi na vida. Entendeu ? Será que não aprende nunca, porra de moleque !
- Desculpa, não tive a intenção. - respondia Juliano num fiapo de voz.
- Cale a boca que agora não tem mais tempo de nada ! Vem cá, mulherzinha, que vou te ensinar a empinar pipa.
- Por favor, eu não sou mulherzinha. Sou homem. E homem não faz esses tipos de coisas que o senhor me obriga a fazer.
- Enquanto estiver morando aqui vai ser mulherzinha, porque eu mando, entendeu ?
- Agora, empine a pipa, viadinho !
- Não !
- Filho da puta, faça o que mando ! - gritava Zezo, já com a calça arriada e um ensaio de ereção, com os punhos cerrados sobre a vítima, entrelaçando os dedos das mãos na parte posterior da cabeça do menino, forçando-o a acomodar em sua boca seu falo fedido e ensebado dos não- adeptos do banho.
Juliano engasgava com o órgão em sua boca. Tentava gritar mas não conseguia.
- Desse jeito... Bem devagarzinho, do jeito que eu gosto. Isso, vai... Mexe com a língua bem naquele lugarzinho... Dá uma mordidinha...
As lágrimas corriam pelo rosto do menino e salgavam os pêlos do testículo do padastro, que ficava mais excitado.
- Agora bebe tudo, não deixe escapar nenhuma gotinha.
O menino obedecia. Já conhecia a seqüência de cor. Terminada a primeira fase, foi à geladeira e tirou o pacote de margarina. Esfregava nas bordas do ânus de Juliano, que ficava de quatro. O padastro vinha e o cobria, encostando a faca de cortar pão em seu pescoço. Ele não sabia o que era mais ameaçador, a ameaça de sua vida ou a brutalidade com que seu reto era violado.
- Agora eu te parto no meio ! - gritava o bêbado, que acelerava os movimentos copulatórios, num ímpeto animalesco.
Com os punhos serrados, Juliano ainda tinha o boletim, naquele momento todo amassado, entre os seus dedos. Aquela foi uma lição que não se aprende na escola. Com o corpo dolorido e um gosto terrível na boca, ele sentiu seu orgulho se partir. Matilde tinha o costume de chegar quase de noite. Banha-se, troca de roupa e vai ao culto. O garoto não tinha sequer coragem de mostrar o boletim. Aliás, nem tinha mais sentido. Sua mãe sabia de tudo, desde o começo, mas não fazia coisa alguma para defendê-lo. Então, naquela noite, enquanto o padrasto vislumbrava um sono etílico e sua mãe entoava os cânticos sagrados, Juliano preparou suas coisas e botou em duas sacolinhas plásticas de hipermercado. Não eram muitos pertences: um par de tênis, escova de dentes, três camisas, uma cueca e uma calça jeans. Do uniforme da escola, não ia mais precisar, assim como seus livros e cadernos.
Deixou um bilhete na cozinha, ao lado do pote de margarina, utilizado para fins profanos durante a tarde, para a mãe. Apenas dizia: “Vou embora, aqui não é meu lugar. A senhora é a mulher do Zezo e não eu. Cansei de ser mulherzinha. Eu sou homem.”
O índice de violência envolvendo menores já somava 70% das ocorrências policiais, motivo de sobrecarga às entidades estatais de cuidados à infância e juventude locais. Fruto de um sistema mal-planejado, as duas celas que serviam para acondicionar menores até o internamento numa instituição do governo estavam abarrotadas. No espaço projetado para quatro garotos, moravam 20. Todos misturados, sem levar em conta as diferenças de sexo.
O conceito de reeducação consistia na tortura do ócio, em que os prisioneiros juvenis matutavam a melhor maneira de passar o tempo e se divertir. Juliano sabe que não pode confiar nos seus companheiros. Aqui é cada um por si.
Depois de fumar crack naquela noite, na Concha Acústica, ele e mais dois amigos ficaram ligadões. Esperaram o horário de saída de uma escola particular ali perto, só de tocaia, para arranjarem um trouxa. Deram sorte, já era tarde e quase todo mundo tinha ido embora. Só ficou a loirinha, no estilo barbie girl, na frente do colégio, esperando o pai, obviamente atrasado.
Ela passava a escova nos cabelos e faz cara de tédio. Os três cercaram a garota e a tomaram de assalto. Pálida e assustada, não conseguia sequer gritar por socorro. Um deles pegou a bolsa dela e o outro passou a mão pelos seios. Mijou-se toda. Juliano, até então expectador, arrancou-lhe os sapatos brilhantes.
Os três postaram-se a correr. A viatura de Patrulhamento Tático Móvel (PTM) estava bem perto dali. Os policiais foram atrás. Sob efeito da droga, os moleques não tinham forças, nem coordenação, para correrem. Dançaram legal, com direito a umas bordoadas. Dos outros dois, em seguida aquela noite, Juliano nunca mais ouviu falar. Ele foi sozinho para a delegacia, é tudo o que lembra.
A vítima, já no plantão policial com o pai, reconheceu Juliano. E esboçou sua indignação de ter sido humilhada por pivetes tão magros e fedidos.
- Tem que matar gente desse tipo! – berrava na sala de espera. “Filho da puta, desgraçado, me fez andar descalça naquela rua imunda, igual a você.” – e perdeu a compostura angelical.
Lavrada a ocorrência, Juliano deu outro passeio de camburão e foi parar numa das duas celas especiais para menores infratores, em Votorantim. Na primeira noite, só quis dormir. Dormiu mesmo, atordoado pelas pancadas e pelo choque emocional de ser mais uma vez depreciado como um cachorro sem dono.
Dez pessoas no cubículo. Cheiro de peido, de mijo, de merda, de porra e de cigarro. É só ter uma graninha que eles dão um jeito de conseguir as coisas. É assim que roda o mundo, impulsionado a dinheiro ou favores. Ainda se sentindo anestesiado, Juliano notou seus companheiros. O maior já queria lhe tomar satisfações. Ele nem ligou mais. Nem dava mais bola para mais nada. Estar vivo já era uma recompensa, e ele nem sabia mais porque ainda vivia. Devia ser sorte, um plano divino ou uma piada de muito mau-gosto.
A comida, em marmitex, era uma porcaria, parecia já vir podre. De vez em quando, vinham umas fatias de mortadela, com um gosto especial, que ele nunca tinha provado antes. Ele gostou e esperava sempre por mais. Como uma sardinha, no seu cubículo, Juliano tinha vontade de comer mais uma vez aquela mortadela.
A mortadela Les enfants, apesar do nome francês, era fabricada em Sorocaba mesmo. Administrada por técnicas de gestão empresarial muito modernas, funcionava somente à noite, pois assim resolveriam outros assuntos durante o dia. A embalagem tinha a cara de um garoto moreno, de sorriso banguela e rosto magro. Sem estratégias chocantes de marketing, tomou o mercado local.
O município concedeu terreno, isenção fiscal por dez anos e ainda ajudou a empresa a obter o financiamento. Em troca, foram anunciadas 150 vagas de emprego. Na verdade, devido à automatização da produção e a necessidade de mão-de-obra especializada, empregava no máximo 40 pessoas da cidade. Recompensa chinfrim para tamanha badalação. A propaganda é a alma do negócio. E isso os políticos sabem fazer muito bem.
Les enfants. Juliano viu uma vez o rótulo da mortadela e desejou ser como o menino estampado nele: sempre alegre, sem preocupações com coisa alguma. Juliano ganhou um pacote da mortadela quando sua mãe veio visitá-lo. Guardou a embalagem. Bonito aquilo. Quando se entediava do nada, ficava olhando aquilo.
Mastigando um naco da mortadela, Juliano percebeu algo entre os dentes. Tirou da boca e viu algo que julgou ser uma unha. De gente mesmo, não de rato ou outros bichos. Limpou os resquícios de saliva e olhou melhor. Era de gente mesmo, de uma criança, pensou. Já tinha comido coisa muito pior. Continuou sua refeição.
Num gesto de extrema boa vontade, os menores custodiados na cadeia à espera de internação na Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) foram convidados para visitar a Fábrica de Mortadela Les Enfants. Curiosamente, receberam autorização das autoridades para fazê-lo. Juliano ficou eufórico. Adorava aquele petisco e queria saber tudo sobre aquela marca. Quem sabe ganharia um pacote da mortadela? Pois, sim, claro que ia. Afinal, tinha sido bem comportado por toda sua estadia na cela, junto com os outros dez menores infratores.
Sob o olhar vigilante de dois policiais armados com escopetas, protegidos com coletes à prova de balas, os garotos entraram num veículo besta para o passeio. Nem todos animados, nem todos contentes, mas felizes de alguma forma por estarem saindo da rotina do cubículo. A atmosfera chuvosa e as ameaças de chuva, deixavam o ar úmido e quente, muito mais abafado ainda, dentro da besta.
Juliano nem prestava atenção nisso. Só queria saber das mortadelas. Em 30 minutos de trajeto, chegaram ao local. Situava-se no terreno da antiga Chácara Sônia Maria. A fábrica em si postava-se bem no centro do terreno, preservando as árvores – frutíferas, em sua maioria – ao redor, gerando um clima de curiosidade e suspense acerca do que se processava além daquela muralha verde.
Ultrapassados os requisitos de segurança, adentraram os portões e penetrando numa sala de azulejos brancos, do chão ao teto. Um gás penetrou na sala, para fins de esterilização de microrganismos. No compartimento seguinte, cheio de armários, tiraram suas roupas para tomarem um banho. Vestiram macacões brancos e entraram no setor de produção.
Não viam a matéria-prima chegar. Viam somente a carne, já moída e triturada, sendo temperada e preparada para ser embutida. Uma parte dela era temperada e imediatamente enlatada, antes de cozer, como parte de um método para evitar contaminação.
O cheiro, foi isso que prendeu a atenção de Juliano. Só isso. Para ele, aquilo era o máximo. Comida à vontade, para forrar seu bucho esquálido e vazio. O guia, acompanhado dos policiais armados, mostrava tudo aos garotos, com detalhes, chamando atenção para os procedimentos de qualidade total, que previam a segurança dos procedimentos de produção, a higienização do local e a qualidade do produto.
De todos, Juliano era o mais atento de todos. Uma hora mais tarde, depois de visitarem os escritórios da administração, sentaram-se às mesas do refeitório. Como não podia deixar de ser, receberam sanduíches de mortadela, não da comum, mas do tipo for export, como uma pequena cortesia da companhia.
Já numa saleta, parecida como uma classe de aula, um homem parecido com um psicólogo distribuiu papel e caneta para os menores. Um tipo de teste. Muitos nem sabiam ler direito. Juliano, porém, sabia. Era esperto e sabichão, nestes termos. As perguntas falavam basicamente sobre os sentimentos deles, suas perspectivas de futuro e desejos.
Eles não sabiam definir nem o dia de amanhã. Juliano foi o único que ficou na saleta até o final. O resto foi direcionado para uma outra sala, idêntica a da entrada. Receberam outro sanduíche de mortadela e um copo de refrigerante. “Não tenha pressa. Responda tudo”, disse o homem para Juliano.
O garoto obedeceu. Já estava ali mesmo e não custava nada ficar mais um pouco. Entregou o papel com o teste e foi para uma sala. Sozinho. Seus companheiros não estavam lá. Teve receio e desconfiança, tinham sacaneado ele, é o que sentia. Em posição fetal, colado num dos cantos da sala, viu o homem aproximar-se com um sorriso.
Pegou-o pela mão e o levou escadas acima, para conversar com o diretor de recursos humanos (RH). Um homem de terno azul-marinho, todo arrumado e gestos enérgicos, olhou Juliano de cabo a rabo.
- Sente-se. – ordenou o diretor.
- Estamos procurando jovens com alto potencial para se juntarem a nossa empresa. – explicou. Nossos métodos de recrutamento não são convencionais, porque nossos negócios não são convencionais.
Juliano assentiu com a cabeça e firmou a atenção.
- Você, meu rapaz, tem o desejo de sair daquela cela em que vive como um animal?
- Sim.
- Seria capaz de cortar todos os relacionamentos anteriores com seus amigos, pais, clientes?
- Essa é a parte mais fácil.
- Gostei da disposição. Quer um emprego?
- Com certeza. Tudo para sair daquele inferno.
- Uma vez aceita a tarefa, você não pode mais sair, porque só de pensar nisso, nós lhe matamos.
Diante da afirmação de morte, Juliano engoliu um seco e revirou os olhos. Que coisa é essa? E eu estou aguardando sentença judicial. Não posso nem arrumar trabalho. O que é isso, meu Deus? Esse cara é doido? Um minuto de silêncio e Juliano aceitou o novo emprego.
- Mas agora eu tenho que voltar para a cadeia.
- Não precisa mais.- comentou o diretor. – A partir de agora, Estado requisita os seus trabalhos com exclusividade para esta fábrica. Todo o seu passado foi perdoado, desde que continue conosco para até quando julgarmos necessário.
Juliano foi encaminhado para uma área no subsolo da fábrica. Lá, conheceu outros garotos como ele. Finalmente, tinha um quarto só para ele.
- As aulas começam às 7 horas.- advertiu um instrutor.
Ele se deitou na cama e fechou os olhos. Inspirou o ar com força e sentiu o frescor do ambiente. Relaxou e dormiu. Sonhou que estava esquartejando seu padrasto. Ao som de uma sirene, levantou-se feliz. Foi ao banheiro, no próprio quarto, tomou banho e escovou os dentes. Vestiu um uniforme de foi para o pátio central.
Uma forte luminária simulava os efeitos da luz solar. Era a ginástica matinal. Corrida. Polichinelo. Flexões de braço. Abdominais. Juliano quase não conseguia acompanhar. Alongamento. Suas pernas pareciam que iam se separar do seu corpo.
Uma hora de exercícios. Suado, com direito a um copo de água, para não acostumar à moleza, Juliano tentou puxar conversa com um companheiro. Foi surpreendido. Era proibido. Ficou quieto.
Depois de outro banho, foi para o café da manhã. Mortadela Les Enfants, salada, pão, queijo, salame, frutas, suco, manteiga, geléia e bolo. Delícia, muito bom, empanturrou-se Juliano, com cuidado para não parecer um morto de fome.
E assim se foram os dias. Juliano ganhou corpo e exercitou o cérebro. Estudava muito porque os professores eram exigentes. De nada mais parecia com aquele farrapinho que entrou na fábrica, seis meses atrás. Aprendia oratória e tudo o que fosse conveniente para convencer uma pessoa.
Tinha até aula de etiqueta com um cara meio esquisito, com sotaque estrangeiro. O garoto se sentia mais poderoso e dono de si mesmo. Sua auto-estima elevou-se e o seu objetivo ficou mais definido: vencer na vida, a qualquer custo.
Após um ano de treinamento básico, começou a aprender combate corporal e manejo de armas brancas. Vestido com uma farda semelhante a dos fuzileiros navais, encarava as manobras e exercícios simulados no subsolo da fábrica de mortadela.
Um instrutor oriental ensinava a técnica de matar em silêncio, sem deixar vestígios do delito. Juliano já era silencioso por natureza, aperfeiçoou seu dom de nascimento. Dos 20 cadetes, desde o início do programa, sobraram apenas cinco. Ele era o melhor deles, sem sombra de dúvida.
Não havia espaço para se enturmar ou fazer amizades. As atividades eram demasiadamente rigorosas e exigiam estudos e treinos exaustivos, que inibiam qualquer tentativa de se quebrar esta regra. Não questionava, apenas obedecia e fazia o que pediam. Juliano aprendeu a dar valor a si mesmo e ganhou uma auto-estima, que há de muito carecia.
- Sou um homem.- murmurava Juliano ao receber as pancadas, numa sessão de calejamento, no treinamento de artes marciais. E recebia pelo corpo as carícias de um pedaço roliço de madeira. Técnica chinesa, palma de ferro, controle da dor. Nem uma faca atravessava sua pele. Concentração, suor, comunhão com o todo. Sem dor, sem desespero, apenas a tarefa a ser cumprida.
Com uma facilidade surpreendente, Juliano aprendia línguas estrangeiras, hardware e software. Computadores eram sua predileção. Montava e desmontava uma máquina como se fosse um brinquedo. Sempre no subsolo, oculto do mundo exterior, Juliano tornou-se um homem. Já com 18 anos e patente de primeiro tenente, estava em fase de conclusão de treinamento.
Aos 16 anos, teve um microchip implantado em seu cérebro, para monitorar toda sua ação motora. Era um equipamento de comunicação ambulante, uma unidade portátil de transmissão de dados. O que via e ouvia era transmitido via satélite para a base. Tecnologia sofisticada, feita por gente graúda e importada por figurões.
O rapaz era uma máquina obediente. No último teste de aptidões intelectuais, após ser aprovado com louvor, Juliano foi promovido a capitão. Com 19 anos nas costas, foi chamado ao comando-geral, ainda no subsolo, para conversar com o diretor de RH, na verdade, o general responsável pela operação secreta.
Ele bateu continência e assim permaneceu até receber instruções.
- Descansar, capitão. – disse o general. – Você já sabe que esta operação, apesar de ter demorado quase cinco anos para se iniciar, ainda está na sua gênese. Temos orgulho, porém, do principal fruto dele, que é você, e esperamos que não nos desaponte na execução do plano.
- Pode ficar tranqüilo, general. Prefiro a minha morte ao fracasso ou desapontar a qualquer um dos meus comandantes e instrutores.
- É bom ouvir isso, capitão. Não temos mais controle sobre a selvageria que pode tomar conta do Estado e destruir a ordem como a conhecemos. Cabe a nós, defensores desta grandiosa Nação, defendermos tudo o que vemos hoje. Existem maçãs podres e nem todas podem ser recuperadas como você foi, capitão. Ao menor contato, elas contaminam o restante e a praga se disseminou por completo, sem termos a menor chance de reação. Devemos destruir quem nos corrói. Aqueles que não são agraciados pelo Estado não o são por sua própria impotência perante a sociedade. Por isso, devemos limpar a sociedade daqueles que a ameaçam. A Constituição nos proíbe de castrarmos aqueles que se reproduzem como coelhos assanhados. Somos assolados por uma multidão de crianças bastardas, que tomam conta dos hospitais e demais órgãos públicos, deixando um déficit incomensurável para o Estado.
- Sim, senhor.
- Então, capitão, esta fábrica de mortadelas é o instituto modelo para iniciarmos a limpeza deste País. Sabemos que existe o tabu sobre a ingestão de carne humana. Mas devemos fazer coisas para o bem geral do Estado, mesmo que signifique ir contra alguns costumes ultrapassados e a legislação torpe que ata as nossas mãos. A carne humana, como já provaram nossos cientistas, é altamente nutritiva. E nós temos excesso de gente e uma multidão de famintos. Para acabar com esse problema, o serviço de inteligência me deixou a cargo desta tarefa. Desenvolvemos uma fábrica que processa a carne de párias da sociedade para alimentarmos o nosso futuro. Esses pivetes sem futuro e os desajustados sociais são matéria-prima para nossas máquinas. Daqui, saem melhor do que entraram, pois vão estar fazendo realmente uma função social. As ruas desta cidade já estão vazias, por isso, concentramos nosso foco de ação nas cidades da região. Controlando a situação regional, podemos dar prosseguimento ao nosso projeto, trazendo matéria-prima da capital.
- Exatamente como diz, general. – respondeu. E bateu continência.
- Dispensado!
Juliano preparou-se para o primeiro contato com o mundo exterior depois de cinco anos no subsolo da fábrica. Estava ansioso, mas aprendeu a dissimular na manha. Agora era um mameluco, no jargão da operação, aquele que era capaz de fustigar um dos seus. A palavra tinha origem no Islã, quando da sua expansão, os muçulmanos realizavam capturas e convertiam os prisioneiros aos seus paradigmas sócio-culturais, para prosseguirem com a dominação sobre os povos conquistados e empreender novas guerras.
Sabia que de todos os seus colegas, que entraram na fábrica naquele dia, era o único sobrevivente. Os demais viraram matéria-prima. O contato com o Sol fez seus olhos tremerem um pouco, mas se acostumou e deu uma volta ao redor da fábrica. Algumas coisas tinham mudado. Parecia tudo mais limpo. Andou até o Centro, tudo mais limpo também. Sem indigentes, prostitutas ou menores abandonados nas praças e calçadas.
Entrou numa concessionária e comprou um carro, Honda, último modelo importado. Tinha dinheiro para isso. Pagou à vista. Acelerou e procurou um flat. Achou um de três cômodos. Perfeito. Mais dois dias, e o imóvel foi mobiliado. Tudo simples, mas funcional, para atender as expectativas do seu trabalho.
Em silêncio, viajava freqüentemente para realizar “serviços de limpeza”. Comandava um esquadrão que atraía menores das ruas de São Paulo para dentro de uma van. Às vezes, faziam-se de pervertidos para que fossem convidados para festinhas ornamentadas a sexo, realizadas pelos barões locais. Por vezes, fingiam-se bons samaritanos, de entidades filantrópicas, e captavam indigentes e demais abandonados.
Devido ao treinamento recebido, o trabalho era simples e quase não havia imprevistos. Juliano cumpria suas ordens automaticamente. Sedava a matéria-prima para que a carne se mantivesse ainda fresca e macia, até o momento do abate. Para sedá-los era fácil. Uma garrafa de uísque com drogas. Efeito rápido o bastante para a viagem completa.
Já na fábrica, a matéria-prima era despida e lavada com um detergente especial que, de tão forte, deixava as peles vermelhas e descoloriam o cabelo. Era enxaguada, em água destilada, e levada em esteiras para a realização de exames. Verificavam o tipo de sangue e o estado geral dos órgãos internos, exigências das entidades que encaminhavam este material para o sistema público de saúde.
Com tudo checado, passava pelas mesas cirúrgicas. Retirados os órgãos e drenado o sangue, partia – numa esteira novamente – para ser temperada, moída e compactada em forma de mortadela. Antes, é claro, havia o cuidado de se retirar as unhas e todos os vestígios de pêlos dos corpos. Nada mais desagradável para um consumidor que ver um pedaço de unha ou um pêlo naquilo que está comendo.
A quantidade de propagandas institucionais do governo aumentou consideravelmente nos meios de comunicação, depois houve a superação no déficit de órgãos para transplante, a queda no nível de desnutrição e o saneamento social das ruas. A sociedade parecia mais feliz com o que via. Os partidos de oposição, curiosamente, não tinham mais tanta força quanto anteriormente.
A mortadela, produto comum na mesa dos brasileiros, tinha – como ingrediente no tempero – uma substância narcotizante, que catalisava as atenções para as mensagens subliminares do governo. Por isso, tudo foi ficando mais homogêneo, das decisões do congresso às divergências entre os partidos políticos.
Juliano fazia parte do plano nacional de imbecilização das pessoas. Era apenas uma agente, mas estava no alicerce de todo o movimento. Um dia, ele vistoriou seu passado e veio a lembrança daquelas vezes em que era violentado pelo padrasto. Suas noites eram pesadelos e seus nervos, aturdidos, estavam no meio fio entre o ódio e o desejo de destruir.
Não era mais o garoto franzino e desprotegido de outrora. Foi moldado para uma finalidade do Estado e era um exemplo vivo da excelência do treinamento ao qual fora submetido. Sem família, sem remorso, o agente perfeito para a execução das tarefas mais ocultas na manutenção do poder.
Numa madrugada, o pesadelo veio com violência e Juliano teve que fazer algo para compensar sua dor. Levantou-se e vestiu sua indumentária de missão. Reconstruiu mentalmente o trajeto da casa onde vivera sua infância maltrapilha e para lá partiu, com um objetivo definido.
Luzes de vela e o cheiro de cachaça atravessavam as janelas do casebre. Ele estava lá sozinho, a mãe já saiu para trabalhar. O inútil, porco e imprestável. De um só assalto, Juliano invadiu o local, imobilizou o padrasto e sedou-o com um pano embebido em clorofórmio.
Jogou seu corpo no porta-malas do carro. Essa limpeza era pessoal, de caráter obrigatório. Foi até a fábrica. Num quarto semelhante a uma sala cirúrgica, Juliano adentrou com seu padrasto. Amarrou-o na mesa e tirou-lhe a mordaça.
O capitão não queria ouvir palavra alguma. Mandou-o calar-se. Com um bisturi cortou-lhe as roupas e deixou-o nu. Zezo, ainda entorpecido, tentava gritar. Juliano, enfurecido, cortou-lhe a língua com um bisturi e deu-lhe pontos para que não se afogasse com o próprio sangue.
Juliano dizia calmamente tudo o que sentia e tudo o que passou para o paspalho estendido na mesa. Contou-lhe em minúcias o processo produção das mortadelas e que ele era matéria-prima em potencial: um pária, sem função alguma, serviria de alimento para as pessoas de bem.
Zezo contorcia-se na mesa, inutilmente. Juliano levou-o para a lavagem, sem anestesiá-lo. Ainda vivo, o padrasto passou pelo banho químico e pelos exames. Novamente numa mesa cirúrgica, via seus órgãos serem retirados, seus músculos do pescoço se contorciam num grito que morria ao chegar à boca. Todos seus órgãos, exceto o coração, estavam corroídos pelo álcool. Com lágrimas nos olhos, o capitão murmurou: "Tudo o que eu queria era que você fosse um pai."
Os cirurgiões retiraram-lhe o coração e Zezo desfaleceu de vez. Com os olhos esbugalhados, semi-abertos, seguiu para ser triturado, temperado, compactado e enlatado. Lote 389.670. Este lote, porém, não saiu para a mesa do consumidor. O departamento de entregas e circulação teve ordens diretas para despejar a mercadoria no apartamento do capitão Juliano.
Após uma longa jornada de trabalho, Juliano sentou-se ao sofá e abriu um pacote de mortadela. Com uma faca, retirou um naco grosso e colocou-o num pão, recheando-o com maionese. Com um brilho nas pupilas, pegou uma lata de refrigerante e ligou no canal de sexo explícito.
Ao som das sacanagens e imagens de bacanal, desferiu a primeira mordida no sanduíche. Sua vingança contra todos, pelo menos no plano individual, estava completa. Saboreou com vontade o sanduíche e preparou mais outro, com a mesma manteiga que Zezo usava para seviciá-lo. Sentia-se saciado, em todos os sentidos. Mordiscou o último pedaço e falou:
- Agora sou eu quem te come, filho da puta.
- Calma aí, tio.
- Não sou seu tio, filho da puta, e vê se some rapidinho.
Juliano nem escutou direito as últimas palavras. Os dedos gordos do homem juntaram-se numa concavidade e ergueram-se numa trajetória lateral até a orelha esquerda do menino. - Plac. - foi o estampido do zumbido que ficou latejando por um bom tempo no tímpano dele. - Esse foi de graça, da próxima vez, sai mais caro.
Saiu rapidinho, por uma das vielas da Catedral, saindo da Praça Central para Rua Padre Luiz. De lá, ia dar uma passada na Concha Acústica. Já era noite e o calor insuportável de fim de dezembro engordurava sua pele morena e esquálida pela ação dos helmintos. O Centro estava vazio. As buzinas e os passos das pessoas pelas calçadas permaneceram mudos como um reflexo da ressaca do Natal. Juliano era miúdo. Apesar dos 14 anos, aparentava 11. Seus passos desanimados compensavam-se com o sonho de um dia ter uma vida normal. Nas costas, encobertas por uma camiseta de algodão bem justa e agarrada às formas do tórax, estava a cicatriz da navalhada, uma espécie de demonstração de afeto de sua primeira noite como prostituto mirim. Para disfarçar, tatuou um navio em cima do talho, em cima do pulmão direito. Seus olhos eram amarrados e distantes, como se quisessem partir desta dimensão para outra realidade mais acolhedora.
Ocorrência: 15 de novembro de 1998. Juliano Alves Pereira, data de nascimento: 7 de setembro de 1984. Idade: 9 anos. Escolaridade: 3ª série do 1º grau. Local de nascimento: Maringá, Paraná. Mãe: Matilde Alves Pereira. Pai: desconhecido. Estado civil da mãe: amasiada.
Juliano um pentelho vivo e inteligente fazia vida fácil na escola. Aprendia rápido um pouco de tudo e tirava boas notas. Não repetiu de ano nenhuma vez e por causa disso seus colegas eram mais velhos, maiores e mais fortes. Mas o bichinho sabia impor respeito. No pátio era o rei da conversa, um pouco assanhado e inocente, dizia: - Conhece a Sandrinha ? Ela é minha namorada, mas não fale nada porque ela não sabe ainda.
Naquele fim de tarde, saiu correndo da escola com o boletim na mão. Passou em tudo, com o calor úmido de fim de ano escorrendo em suor pela sua garganta. A mãe terminava de limpar o toalete, numa mansão do Jardim Santa Rosália. Toalete, explicou-lhe em certa ocasião, é o nome que os ricos dão ao banheiro. Assim como a privada recebe o nome quase científico de vaso sanitário. Tinha um tal de bidê, que Matilde nem sabia para que servia.
Trotando pelas ruas, coberto da terra vermelha que assola a região, Juliano tinha o documento nas mãos como se fosse um cavaleiro numa cruzada à Terra Santa. “Mãe, passei de ano ! Fui o primeiro da classe !” Em atrito com o asfalto de quinta categoria, seus tênis - imitação de um Nike de linha - produziam aquele ruído característico de quem arrasta os pés pelo chão. Avistou o casebre de dois cômodos, abriu a porta da cozinha-sala. Não encontrou Matilde. Porém, não desanimou. Mostrou, aos gritos, seus feitos ao padrasto, Zezo, que pendia cambaleante na poltrona semi-rasgada comprada num brechó no centro. A garrafa de aguardente já estava quebrada no canto do cômodo principal.
A euforia durou pouco. Juliano pensou por um décimo de segundo que seu padrasto ia ser bom para ele pelo menos naquela ocasião.
- Pensa que é mais esperto que eu, né ? Você ainda tem muito o que aprender... Muito mesmo. Essa porcaria de papel que você trouxe não quer dizer nada comparado ao que eu aprendi na vida. Entendeu ? Será que não aprende nunca, porra de moleque !
- Desculpa, não tive a intenção. - respondia Juliano num fiapo de voz.
- Cale a boca que agora não tem mais tempo de nada ! Vem cá, mulherzinha, que vou te ensinar a empinar pipa.
- Por favor, eu não sou mulherzinha. Sou homem. E homem não faz esses tipos de coisas que o senhor me obriga a fazer.
- Enquanto estiver morando aqui vai ser mulherzinha, porque eu mando, entendeu ?
- Agora, empine a pipa, viadinho !
- Não !
- Filho da puta, faça o que mando ! - gritava Zezo, já com a calça arriada e um ensaio de ereção, com os punhos cerrados sobre a vítima, entrelaçando os dedos das mãos na parte posterior da cabeça do menino, forçando-o a acomodar em sua boca seu falo fedido e ensebado dos não- adeptos do banho.
Juliano engasgava com o órgão em sua boca. Tentava gritar mas não conseguia.
- Desse jeito... Bem devagarzinho, do jeito que eu gosto. Isso, vai... Mexe com a língua bem naquele lugarzinho... Dá uma mordidinha...
As lágrimas corriam pelo rosto do menino e salgavam os pêlos do testículo do padastro, que ficava mais excitado.
- Agora bebe tudo, não deixe escapar nenhuma gotinha.
O menino obedecia. Já conhecia a seqüência de cor. Terminada a primeira fase, foi à geladeira e tirou o pacote de margarina. Esfregava nas bordas do ânus de Juliano, que ficava de quatro. O padastro vinha e o cobria, encostando a faca de cortar pão em seu pescoço. Ele não sabia o que era mais ameaçador, a ameaça de sua vida ou a brutalidade com que seu reto era violado.
- Agora eu te parto no meio ! - gritava o bêbado, que acelerava os movimentos copulatórios, num ímpeto animalesco.
Com os punhos serrados, Juliano ainda tinha o boletim, naquele momento todo amassado, entre os seus dedos. Aquela foi uma lição que não se aprende na escola. Com o corpo dolorido e um gosto terrível na boca, ele sentiu seu orgulho se partir. Matilde tinha o costume de chegar quase de noite. Banha-se, troca de roupa e vai ao culto. O garoto não tinha sequer coragem de mostrar o boletim. Aliás, nem tinha mais sentido. Sua mãe sabia de tudo, desde o começo, mas não fazia coisa alguma para defendê-lo. Então, naquela noite, enquanto o padrasto vislumbrava um sono etílico e sua mãe entoava os cânticos sagrados, Juliano preparou suas coisas e botou em duas sacolinhas plásticas de hipermercado. Não eram muitos pertences: um par de tênis, escova de dentes, três camisas, uma cueca e uma calça jeans. Do uniforme da escola, não ia mais precisar, assim como seus livros e cadernos.
Deixou um bilhete na cozinha, ao lado do pote de margarina, utilizado para fins profanos durante a tarde, para a mãe. Apenas dizia: “Vou embora, aqui não é meu lugar. A senhora é a mulher do Zezo e não eu. Cansei de ser mulherzinha. Eu sou homem.”
O índice de violência envolvendo menores já somava 70% das ocorrências policiais, motivo de sobrecarga às entidades estatais de cuidados à infância e juventude locais. Fruto de um sistema mal-planejado, as duas celas que serviam para acondicionar menores até o internamento numa instituição do governo estavam abarrotadas. No espaço projetado para quatro garotos, moravam 20. Todos misturados, sem levar em conta as diferenças de sexo.
O conceito de reeducação consistia na tortura do ócio, em que os prisioneiros juvenis matutavam a melhor maneira de passar o tempo e se divertir. Juliano sabe que não pode confiar nos seus companheiros. Aqui é cada um por si.
Depois de fumar crack naquela noite, na Concha Acústica, ele e mais dois amigos ficaram ligadões. Esperaram o horário de saída de uma escola particular ali perto, só de tocaia, para arranjarem um trouxa. Deram sorte, já era tarde e quase todo mundo tinha ido embora. Só ficou a loirinha, no estilo barbie girl, na frente do colégio, esperando o pai, obviamente atrasado.
Ela passava a escova nos cabelos e faz cara de tédio. Os três cercaram a garota e a tomaram de assalto. Pálida e assustada, não conseguia sequer gritar por socorro. Um deles pegou a bolsa dela e o outro passou a mão pelos seios. Mijou-se toda. Juliano, até então expectador, arrancou-lhe os sapatos brilhantes.
Os três postaram-se a correr. A viatura de Patrulhamento Tático Móvel (PTM) estava bem perto dali. Os policiais foram atrás. Sob efeito da droga, os moleques não tinham forças, nem coordenação, para correrem. Dançaram legal, com direito a umas bordoadas. Dos outros dois, em seguida aquela noite, Juliano nunca mais ouviu falar. Ele foi sozinho para a delegacia, é tudo o que lembra.
A vítima, já no plantão policial com o pai, reconheceu Juliano. E esboçou sua indignação de ter sido humilhada por pivetes tão magros e fedidos.
- Tem que matar gente desse tipo! – berrava na sala de espera. “Filho da puta, desgraçado, me fez andar descalça naquela rua imunda, igual a você.” – e perdeu a compostura angelical.
Lavrada a ocorrência, Juliano deu outro passeio de camburão e foi parar numa das duas celas especiais para menores infratores, em Votorantim. Na primeira noite, só quis dormir. Dormiu mesmo, atordoado pelas pancadas e pelo choque emocional de ser mais uma vez depreciado como um cachorro sem dono.
Dez pessoas no cubículo. Cheiro de peido, de mijo, de merda, de porra e de cigarro. É só ter uma graninha que eles dão um jeito de conseguir as coisas. É assim que roda o mundo, impulsionado a dinheiro ou favores. Ainda se sentindo anestesiado, Juliano notou seus companheiros. O maior já queria lhe tomar satisfações. Ele nem ligou mais. Nem dava mais bola para mais nada. Estar vivo já era uma recompensa, e ele nem sabia mais porque ainda vivia. Devia ser sorte, um plano divino ou uma piada de muito mau-gosto.
A comida, em marmitex, era uma porcaria, parecia já vir podre. De vez em quando, vinham umas fatias de mortadela, com um gosto especial, que ele nunca tinha provado antes. Ele gostou e esperava sempre por mais. Como uma sardinha, no seu cubículo, Juliano tinha vontade de comer mais uma vez aquela mortadela.
A mortadela Les enfants, apesar do nome francês, era fabricada em Sorocaba mesmo. Administrada por técnicas de gestão empresarial muito modernas, funcionava somente à noite, pois assim resolveriam outros assuntos durante o dia. A embalagem tinha a cara de um garoto moreno, de sorriso banguela e rosto magro. Sem estratégias chocantes de marketing, tomou o mercado local.
O município concedeu terreno, isenção fiscal por dez anos e ainda ajudou a empresa a obter o financiamento. Em troca, foram anunciadas 150 vagas de emprego. Na verdade, devido à automatização da produção e a necessidade de mão-de-obra especializada, empregava no máximo 40 pessoas da cidade. Recompensa chinfrim para tamanha badalação. A propaganda é a alma do negócio. E isso os políticos sabem fazer muito bem.
Les enfants. Juliano viu uma vez o rótulo da mortadela e desejou ser como o menino estampado nele: sempre alegre, sem preocupações com coisa alguma. Juliano ganhou um pacote da mortadela quando sua mãe veio visitá-lo. Guardou a embalagem. Bonito aquilo. Quando se entediava do nada, ficava olhando aquilo.
Mastigando um naco da mortadela, Juliano percebeu algo entre os dentes. Tirou da boca e viu algo que julgou ser uma unha. De gente mesmo, não de rato ou outros bichos. Limpou os resquícios de saliva e olhou melhor. Era de gente mesmo, de uma criança, pensou. Já tinha comido coisa muito pior. Continuou sua refeição.
Num gesto de extrema boa vontade, os menores custodiados na cadeia à espera de internação na Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) foram convidados para visitar a Fábrica de Mortadela Les Enfants. Curiosamente, receberam autorização das autoridades para fazê-lo. Juliano ficou eufórico. Adorava aquele petisco e queria saber tudo sobre aquela marca. Quem sabe ganharia um pacote da mortadela? Pois, sim, claro que ia. Afinal, tinha sido bem comportado por toda sua estadia na cela, junto com os outros dez menores infratores.
Sob o olhar vigilante de dois policiais armados com escopetas, protegidos com coletes à prova de balas, os garotos entraram num veículo besta para o passeio. Nem todos animados, nem todos contentes, mas felizes de alguma forma por estarem saindo da rotina do cubículo. A atmosfera chuvosa e as ameaças de chuva, deixavam o ar úmido e quente, muito mais abafado ainda, dentro da besta.
Juliano nem prestava atenção nisso. Só queria saber das mortadelas. Em 30 minutos de trajeto, chegaram ao local. Situava-se no terreno da antiga Chácara Sônia Maria. A fábrica em si postava-se bem no centro do terreno, preservando as árvores – frutíferas, em sua maioria – ao redor, gerando um clima de curiosidade e suspense acerca do que se processava além daquela muralha verde.
Ultrapassados os requisitos de segurança, adentraram os portões e penetrando numa sala de azulejos brancos, do chão ao teto. Um gás penetrou na sala, para fins de esterilização de microrganismos. No compartimento seguinte, cheio de armários, tiraram suas roupas para tomarem um banho. Vestiram macacões brancos e entraram no setor de produção.
Não viam a matéria-prima chegar. Viam somente a carne, já moída e triturada, sendo temperada e preparada para ser embutida. Uma parte dela era temperada e imediatamente enlatada, antes de cozer, como parte de um método para evitar contaminação.
O cheiro, foi isso que prendeu a atenção de Juliano. Só isso. Para ele, aquilo era o máximo. Comida à vontade, para forrar seu bucho esquálido e vazio. O guia, acompanhado dos policiais armados, mostrava tudo aos garotos, com detalhes, chamando atenção para os procedimentos de qualidade total, que previam a segurança dos procedimentos de produção, a higienização do local e a qualidade do produto.
De todos, Juliano era o mais atento de todos. Uma hora mais tarde, depois de visitarem os escritórios da administração, sentaram-se às mesas do refeitório. Como não podia deixar de ser, receberam sanduíches de mortadela, não da comum, mas do tipo for export, como uma pequena cortesia da companhia.
Já numa saleta, parecida como uma classe de aula, um homem parecido com um psicólogo distribuiu papel e caneta para os menores. Um tipo de teste. Muitos nem sabiam ler direito. Juliano, porém, sabia. Era esperto e sabichão, nestes termos. As perguntas falavam basicamente sobre os sentimentos deles, suas perspectivas de futuro e desejos.
Eles não sabiam definir nem o dia de amanhã. Juliano foi o único que ficou na saleta até o final. O resto foi direcionado para uma outra sala, idêntica a da entrada. Receberam outro sanduíche de mortadela e um copo de refrigerante. “Não tenha pressa. Responda tudo”, disse o homem para Juliano.
O garoto obedeceu. Já estava ali mesmo e não custava nada ficar mais um pouco. Entregou o papel com o teste e foi para uma sala. Sozinho. Seus companheiros não estavam lá. Teve receio e desconfiança, tinham sacaneado ele, é o que sentia. Em posição fetal, colado num dos cantos da sala, viu o homem aproximar-se com um sorriso.
Pegou-o pela mão e o levou escadas acima, para conversar com o diretor de recursos humanos (RH). Um homem de terno azul-marinho, todo arrumado e gestos enérgicos, olhou Juliano de cabo a rabo.
- Sente-se. – ordenou o diretor.
- Estamos procurando jovens com alto potencial para se juntarem a nossa empresa. – explicou. Nossos métodos de recrutamento não são convencionais, porque nossos negócios não são convencionais.
Juliano assentiu com a cabeça e firmou a atenção.
- Você, meu rapaz, tem o desejo de sair daquela cela em que vive como um animal?
- Sim.
- Seria capaz de cortar todos os relacionamentos anteriores com seus amigos, pais, clientes?
- Essa é a parte mais fácil.
- Gostei da disposição. Quer um emprego?
- Com certeza. Tudo para sair daquele inferno.
- Uma vez aceita a tarefa, você não pode mais sair, porque só de pensar nisso, nós lhe matamos.
Diante da afirmação de morte, Juliano engoliu um seco e revirou os olhos. Que coisa é essa? E eu estou aguardando sentença judicial. Não posso nem arrumar trabalho. O que é isso, meu Deus? Esse cara é doido? Um minuto de silêncio e Juliano aceitou o novo emprego.
- Mas agora eu tenho que voltar para a cadeia.
- Não precisa mais.- comentou o diretor. – A partir de agora, Estado requisita os seus trabalhos com exclusividade para esta fábrica. Todo o seu passado foi perdoado, desde que continue conosco para até quando julgarmos necessário.
Juliano foi encaminhado para uma área no subsolo da fábrica. Lá, conheceu outros garotos como ele. Finalmente, tinha um quarto só para ele.
- As aulas começam às 7 horas.- advertiu um instrutor.
Ele se deitou na cama e fechou os olhos. Inspirou o ar com força e sentiu o frescor do ambiente. Relaxou e dormiu. Sonhou que estava esquartejando seu padrasto. Ao som de uma sirene, levantou-se feliz. Foi ao banheiro, no próprio quarto, tomou banho e escovou os dentes. Vestiu um uniforme de foi para o pátio central.
Uma forte luminária simulava os efeitos da luz solar. Era a ginástica matinal. Corrida. Polichinelo. Flexões de braço. Abdominais. Juliano quase não conseguia acompanhar. Alongamento. Suas pernas pareciam que iam se separar do seu corpo.
Uma hora de exercícios. Suado, com direito a um copo de água, para não acostumar à moleza, Juliano tentou puxar conversa com um companheiro. Foi surpreendido. Era proibido. Ficou quieto.
Depois de outro banho, foi para o café da manhã. Mortadela Les Enfants, salada, pão, queijo, salame, frutas, suco, manteiga, geléia e bolo. Delícia, muito bom, empanturrou-se Juliano, com cuidado para não parecer um morto de fome.
E assim se foram os dias. Juliano ganhou corpo e exercitou o cérebro. Estudava muito porque os professores eram exigentes. De nada mais parecia com aquele farrapinho que entrou na fábrica, seis meses atrás. Aprendia oratória e tudo o que fosse conveniente para convencer uma pessoa.
Tinha até aula de etiqueta com um cara meio esquisito, com sotaque estrangeiro. O garoto se sentia mais poderoso e dono de si mesmo. Sua auto-estima elevou-se e o seu objetivo ficou mais definido: vencer na vida, a qualquer custo.
Após um ano de treinamento básico, começou a aprender combate corporal e manejo de armas brancas. Vestido com uma farda semelhante a dos fuzileiros navais, encarava as manobras e exercícios simulados no subsolo da fábrica de mortadela.
Um instrutor oriental ensinava a técnica de matar em silêncio, sem deixar vestígios do delito. Juliano já era silencioso por natureza, aperfeiçoou seu dom de nascimento. Dos 20 cadetes, desde o início do programa, sobraram apenas cinco. Ele era o melhor deles, sem sombra de dúvida.
Não havia espaço para se enturmar ou fazer amizades. As atividades eram demasiadamente rigorosas e exigiam estudos e treinos exaustivos, que inibiam qualquer tentativa de se quebrar esta regra. Não questionava, apenas obedecia e fazia o que pediam. Juliano aprendeu a dar valor a si mesmo e ganhou uma auto-estima, que há de muito carecia.
- Sou um homem.- murmurava Juliano ao receber as pancadas, numa sessão de calejamento, no treinamento de artes marciais. E recebia pelo corpo as carícias de um pedaço roliço de madeira. Técnica chinesa, palma de ferro, controle da dor. Nem uma faca atravessava sua pele. Concentração, suor, comunhão com o todo. Sem dor, sem desespero, apenas a tarefa a ser cumprida.
Com uma facilidade surpreendente, Juliano aprendia línguas estrangeiras, hardware e software. Computadores eram sua predileção. Montava e desmontava uma máquina como se fosse um brinquedo. Sempre no subsolo, oculto do mundo exterior, Juliano tornou-se um homem. Já com 18 anos e patente de primeiro tenente, estava em fase de conclusão de treinamento.
Aos 16 anos, teve um microchip implantado em seu cérebro, para monitorar toda sua ação motora. Era um equipamento de comunicação ambulante, uma unidade portátil de transmissão de dados. O que via e ouvia era transmitido via satélite para a base. Tecnologia sofisticada, feita por gente graúda e importada por figurões.
O rapaz era uma máquina obediente. No último teste de aptidões intelectuais, após ser aprovado com louvor, Juliano foi promovido a capitão. Com 19 anos nas costas, foi chamado ao comando-geral, ainda no subsolo, para conversar com o diretor de RH, na verdade, o general responsável pela operação secreta.
Ele bateu continência e assim permaneceu até receber instruções.
- Descansar, capitão. – disse o general. – Você já sabe que esta operação, apesar de ter demorado quase cinco anos para se iniciar, ainda está na sua gênese. Temos orgulho, porém, do principal fruto dele, que é você, e esperamos que não nos desaponte na execução do plano.
- Pode ficar tranqüilo, general. Prefiro a minha morte ao fracasso ou desapontar a qualquer um dos meus comandantes e instrutores.
- É bom ouvir isso, capitão. Não temos mais controle sobre a selvageria que pode tomar conta do Estado e destruir a ordem como a conhecemos. Cabe a nós, defensores desta grandiosa Nação, defendermos tudo o que vemos hoje. Existem maçãs podres e nem todas podem ser recuperadas como você foi, capitão. Ao menor contato, elas contaminam o restante e a praga se disseminou por completo, sem termos a menor chance de reação. Devemos destruir quem nos corrói. Aqueles que não são agraciados pelo Estado não o são por sua própria impotência perante a sociedade. Por isso, devemos limpar a sociedade daqueles que a ameaçam. A Constituição nos proíbe de castrarmos aqueles que se reproduzem como coelhos assanhados. Somos assolados por uma multidão de crianças bastardas, que tomam conta dos hospitais e demais órgãos públicos, deixando um déficit incomensurável para o Estado.
- Sim, senhor.
- Então, capitão, esta fábrica de mortadelas é o instituto modelo para iniciarmos a limpeza deste País. Sabemos que existe o tabu sobre a ingestão de carne humana. Mas devemos fazer coisas para o bem geral do Estado, mesmo que signifique ir contra alguns costumes ultrapassados e a legislação torpe que ata as nossas mãos. A carne humana, como já provaram nossos cientistas, é altamente nutritiva. E nós temos excesso de gente e uma multidão de famintos. Para acabar com esse problema, o serviço de inteligência me deixou a cargo desta tarefa. Desenvolvemos uma fábrica que processa a carne de párias da sociedade para alimentarmos o nosso futuro. Esses pivetes sem futuro e os desajustados sociais são matéria-prima para nossas máquinas. Daqui, saem melhor do que entraram, pois vão estar fazendo realmente uma função social. As ruas desta cidade já estão vazias, por isso, concentramos nosso foco de ação nas cidades da região. Controlando a situação regional, podemos dar prosseguimento ao nosso projeto, trazendo matéria-prima da capital.
- Exatamente como diz, general. – respondeu. E bateu continência.
- Dispensado!
Juliano preparou-se para o primeiro contato com o mundo exterior depois de cinco anos no subsolo da fábrica. Estava ansioso, mas aprendeu a dissimular na manha. Agora era um mameluco, no jargão da operação, aquele que era capaz de fustigar um dos seus. A palavra tinha origem no Islã, quando da sua expansão, os muçulmanos realizavam capturas e convertiam os prisioneiros aos seus paradigmas sócio-culturais, para prosseguirem com a dominação sobre os povos conquistados e empreender novas guerras.
Sabia que de todos os seus colegas, que entraram na fábrica naquele dia, era o único sobrevivente. Os demais viraram matéria-prima. O contato com o Sol fez seus olhos tremerem um pouco, mas se acostumou e deu uma volta ao redor da fábrica. Algumas coisas tinham mudado. Parecia tudo mais limpo. Andou até o Centro, tudo mais limpo também. Sem indigentes, prostitutas ou menores abandonados nas praças e calçadas.
Entrou numa concessionária e comprou um carro, Honda, último modelo importado. Tinha dinheiro para isso. Pagou à vista. Acelerou e procurou um flat. Achou um de três cômodos. Perfeito. Mais dois dias, e o imóvel foi mobiliado. Tudo simples, mas funcional, para atender as expectativas do seu trabalho.
Em silêncio, viajava freqüentemente para realizar “serviços de limpeza”. Comandava um esquadrão que atraía menores das ruas de São Paulo para dentro de uma van. Às vezes, faziam-se de pervertidos para que fossem convidados para festinhas ornamentadas a sexo, realizadas pelos barões locais. Por vezes, fingiam-se bons samaritanos, de entidades filantrópicas, e captavam indigentes e demais abandonados.
Devido ao treinamento recebido, o trabalho era simples e quase não havia imprevistos. Juliano cumpria suas ordens automaticamente. Sedava a matéria-prima para que a carne se mantivesse ainda fresca e macia, até o momento do abate. Para sedá-los era fácil. Uma garrafa de uísque com drogas. Efeito rápido o bastante para a viagem completa.
Já na fábrica, a matéria-prima era despida e lavada com um detergente especial que, de tão forte, deixava as peles vermelhas e descoloriam o cabelo. Era enxaguada, em água destilada, e levada em esteiras para a realização de exames. Verificavam o tipo de sangue e o estado geral dos órgãos internos, exigências das entidades que encaminhavam este material para o sistema público de saúde.
Com tudo checado, passava pelas mesas cirúrgicas. Retirados os órgãos e drenado o sangue, partia – numa esteira novamente – para ser temperada, moída e compactada em forma de mortadela. Antes, é claro, havia o cuidado de se retirar as unhas e todos os vestígios de pêlos dos corpos. Nada mais desagradável para um consumidor que ver um pedaço de unha ou um pêlo naquilo que está comendo.
A quantidade de propagandas institucionais do governo aumentou consideravelmente nos meios de comunicação, depois houve a superação no déficit de órgãos para transplante, a queda no nível de desnutrição e o saneamento social das ruas. A sociedade parecia mais feliz com o que via. Os partidos de oposição, curiosamente, não tinham mais tanta força quanto anteriormente.
A mortadela, produto comum na mesa dos brasileiros, tinha – como ingrediente no tempero – uma substância narcotizante, que catalisava as atenções para as mensagens subliminares do governo. Por isso, tudo foi ficando mais homogêneo, das decisões do congresso às divergências entre os partidos políticos.
Juliano fazia parte do plano nacional de imbecilização das pessoas. Era apenas uma agente, mas estava no alicerce de todo o movimento. Um dia, ele vistoriou seu passado e veio a lembrança daquelas vezes em que era violentado pelo padrasto. Suas noites eram pesadelos e seus nervos, aturdidos, estavam no meio fio entre o ódio e o desejo de destruir.
Não era mais o garoto franzino e desprotegido de outrora. Foi moldado para uma finalidade do Estado e era um exemplo vivo da excelência do treinamento ao qual fora submetido. Sem família, sem remorso, o agente perfeito para a execução das tarefas mais ocultas na manutenção do poder.
Numa madrugada, o pesadelo veio com violência e Juliano teve que fazer algo para compensar sua dor. Levantou-se e vestiu sua indumentária de missão. Reconstruiu mentalmente o trajeto da casa onde vivera sua infância maltrapilha e para lá partiu, com um objetivo definido.
Luzes de vela e o cheiro de cachaça atravessavam as janelas do casebre. Ele estava lá sozinho, a mãe já saiu para trabalhar. O inútil, porco e imprestável. De um só assalto, Juliano invadiu o local, imobilizou o padrasto e sedou-o com um pano embebido em clorofórmio.
Jogou seu corpo no porta-malas do carro. Essa limpeza era pessoal, de caráter obrigatório. Foi até a fábrica. Num quarto semelhante a uma sala cirúrgica, Juliano adentrou com seu padrasto. Amarrou-o na mesa e tirou-lhe a mordaça.
O capitão não queria ouvir palavra alguma. Mandou-o calar-se. Com um bisturi cortou-lhe as roupas e deixou-o nu. Zezo, ainda entorpecido, tentava gritar. Juliano, enfurecido, cortou-lhe a língua com um bisturi e deu-lhe pontos para que não se afogasse com o próprio sangue.
Juliano dizia calmamente tudo o que sentia e tudo o que passou para o paspalho estendido na mesa. Contou-lhe em minúcias o processo produção das mortadelas e que ele era matéria-prima em potencial: um pária, sem função alguma, serviria de alimento para as pessoas de bem.
Zezo contorcia-se na mesa, inutilmente. Juliano levou-o para a lavagem, sem anestesiá-lo. Ainda vivo, o padrasto passou pelo banho químico e pelos exames. Novamente numa mesa cirúrgica, via seus órgãos serem retirados, seus músculos do pescoço se contorciam num grito que morria ao chegar à boca. Todos seus órgãos, exceto o coração, estavam corroídos pelo álcool. Com lágrimas nos olhos, o capitão murmurou: "Tudo o que eu queria era que você fosse um pai."
Os cirurgiões retiraram-lhe o coração e Zezo desfaleceu de vez. Com os olhos esbugalhados, semi-abertos, seguiu para ser triturado, temperado, compactado e enlatado. Lote 389.670. Este lote, porém, não saiu para a mesa do consumidor. O departamento de entregas e circulação teve ordens diretas para despejar a mercadoria no apartamento do capitão Juliano.
Após uma longa jornada de trabalho, Juliano sentou-se ao sofá e abriu um pacote de mortadela. Com uma faca, retirou um naco grosso e colocou-o num pão, recheando-o com maionese. Com um brilho nas pupilas, pegou uma lata de refrigerante e ligou no canal de sexo explícito.
Ao som das sacanagens e imagens de bacanal, desferiu a primeira mordida no sanduíche. Sua vingança contra todos, pelo menos no plano individual, estava completa. Saboreou com vontade o sanduíche e preparou mais outro, com a mesma manteiga que Zezo usava para seviciá-lo. Sentia-se saciado, em todos os sentidos. Mordiscou o último pedaço e falou:
- Agora sou eu quem te come, filho da puta.
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