“A cultura e a civilização ainda não
existem. Estão apenas começando a ingressar na cena social. É o começo do fim
do crônico assassinato de Cristo.” (Wilhelm Reich)
ROGER MOKO YABIKU*
É evidente e
inegável a influência do cristianismo no mundo contemporâneo, um dos fenômenos
mais marcantes de toda a história humana, explica Karl Kautsky (p. 39), em “A
Origem do Cristianismo”. A doutrina religiosa inspirada em Jesus Cristo teve
enorme influência no Direito quando, por exemplo, legou a dignidade da pessoa
humana alçada à condição de princípio basilar (art. 1º, III, da Constituição
Federal). “(...) é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa
como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins
absolutos, possuidor de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade”, ensina
Luis Régis Prado (p. 163), em “Curso de Direito Penal v. 1”.
No Direito Penal, por exemplo, nota-se
sua marca, com adoção das penas privativas de liberdade, em vez da pena de
morte, de banimento, de tortura, cruéis e de caráter perpétuo, nos termos do
princípio da humanidade (ou limitador das penas). O termo penitenciária (local
onde se cumpre a pena de prisão) vem de penitência. Ou seja, arrepender-se do
mal praticado, em busca de perdão. Sabe-se que nos termos do artigo 59 do
Código Penal brasileiro, as funções da pena de prisão são a retribuição
(reprovação) e prevenção, sendo que nesta, dentre outras, há a finalidade
específica de recuperação do condenado (prevenção especial positiva).
Religião oficial
O cristianismo, de início, foi
perseguido pelo Império Romano. Os cristãos eram castigados por heresia, ou
seja, por ofensa ao Imperador de Roma, que era concebido como a própria
divindade em Terra. Em momento posterior, a religião oriunda do Oriente Médio
foi tolerada, legalizada (pelo Édito de Milão, de Constantino, em 313) para,
então, se tornar a oficial do Império, com Teodósio I (391-392 d. C.). “Foi
perante a comunidade cristã, não perante o comunismo cristão, que os
imperadores romanos finalmente dobraram os joelhos. A vitória do cristianismo
não foi uma ditadura do proletariado, mas dos senhores que ele criara em sua
própria comunidade”, alerta Kautsky (p. 464).
A Igreja
começou a se estruturar burocraticamente. Todas as dissidências contra a
tradição que começava a ser formar eram eliminadas. “Concebeu-se então uma
doutrina oficial, reconhecida e disseminada pela burocracia da comunidade, que
aplicava medidas repressivas, cada vez mais, contra as quais não estivesse de
acordo”, afirma Kautsky (p. 481).
A estrutura eclesiástica ganhou
musculatura de tal modo que, quando o Império Romano do Ocidente caiu perante o
bárbaro germânico Odoacro (476 d. C.), substituindo, paulatinamente, as
instituições romanas. Aliás, o cristianismo expandiu-se muito além das
fronteiras do império, evangelizando os que se encontravam no seu caminho. Constituiu-se
também no bastião intelectual da Europa, por meio dos monges.
Católicos, ortodoxos e protestantes
Com a cisma do Oriente (1.054
d.C), a Igreja dividiu-se em Católica Apostólica Romana e em Ortodoxa. No
Ocidente, prevaleceram os dogmas e a doutrina da Igreja Católica Apostólica
Romana, praticamente inquestionável por séculos até Reforma Protestante (século
XVI), cujo um dos líderes foi o monge agostiniano alemão Martinho Lutero.
Porém, de
que maneira o catolicismo e o protestantismo conceituam e concebem o Direito?
Gustav Radbruch, jurista alemão, em “Filosofia do Direito”, faz uma tenaz
explicação, proporcionando melhor entendimento da maior, ou menor, influência
das duas principais potências cristãs europeias na concepção de Direito.
Para o
catolicismo, analisa Radbruch (p. 274), toda a forma de Direito provém de Deus.
Por sua vez, prossegue, Lutero concebia o Direito como absolutamente profano,
inclusive o Direito Eclesiástico, ou seja, um Direito sem Deus.
Hierarquia, interioridade e exterioridade
No
catolicismo, a igreja jurídica, segundo Radbruch, é igualmente instituição
divina, que dá valor próprio à mesma. A igreja consagra a si mesma, daí a
organização hierárquica de cima para baixo, o que também determina suas
relações com o Estado e o Direito Estatal (Positivo). “Ao lado do Direito
revelado por Deus, sobre o qual repousa a igreja jurídica, encontra-se o
Direito Natural outorgado aos homens por Deus, cuja realização é tarefa do
Estado”, narra Radbruch (p. 275).
Sendo o
Direito Eclesiástico e o Direito Estatal fluem da mesma fonte divina, ambos não
se podem contradizer. Porém, em havendo contradição, deveria prevalecer o
Direito Divino. Trata-se, pois, da unidade do mundo jurídico, em que o Direito
é revelado pelo próprio Deus.
Todavia, a
fé e o amor – interioridade e espontaneidade – que são essências da igreja
chocam-se com o formalismo e a coação do Direito. “O formalismo jurídico não
pode decidir sobre a beatitude, nem a coação jurídica obrigar a uma vida
cristã”, escreve Radbruch (p. 276). O Direito Positivo não se importa com o
estado consciente, mas tão somente com a exterioridade da conduta. Já para a
religião, o que importa é a fé e o amor, em suma, a consciência.
Nem de Deus, nem contra Deus
Conforme a
doutrina luterana (protestante), assevera Radbruch (p. 278), “Jesus nem
prescreveu, nem excluiu uma ordenação jurídica à igreja, o Direito não é nem de
Deus, nem contra ele, mas é muito mais sem Deus – contra Deus somente quando se
declara que é originado de Deus e quando, por conseguinte, a igreja jurídica
invade o lugar reservado à igreja espiritual”.
Diante
dessa dicotomia, paradoxalmente, Lutero afirma que se deve viver,
concomitantemente, em dois mundos, num deles como cristão e, no outro, como
mundano, no mundo jurídico, mas como se nele não se vivesse. “O Direito
permanece, pois, completamente inessencial e sem consagração, totalmente
profano, sem vínculo com a religião e religiosamente indiferente”, escreve
Radbruch (p. 280).
Todavia, para
Lutero, o Estado seria uma organização da igreja, um Estado Cristão. Já o
soberano do Estado, diz Radbruch (p. 281), não é mero suporte do poder estatal,
mas um integrante da igreja, com deveres para com ela. No entanto, o Estado
Cristão secularizou-se durante as eras, até a sua separação definitiva da
igreja, como se verifica no art. 137 da Constitução de Weimar (1919): “Não
existe uma igreja do Estado.” Tal fato, segundo Kautsky (p. 39), foi obra da
burguesia esclarecida do século XVIII, que se propôs a investigar
cientificamente o cristianismo, que, até então, era estudado em bases puramente
teológicas.
REFERÊNCIAS
KAUTSKY, Karl. A
Origem do Cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
PRADO, Luis Régis. Curso
de Direito Penal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia
do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
* ROGER MOKO YABIKU é Bacharel em Direito e
Jornalismo, Graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de
Professores em Filosofia, MBA em Comércio Exterior, especialista em Direito
Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Advogado
militante do escritório Badaró & Yabiku Advocacia e professor do CEUNSP.
e-mail: ryabiku@terra.com.br
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