sexta-feira, 24 de junho de 2016

ABORDAGEM JUSFILOSÓFICA DAS RELAÇÕES ENTRE O CRISTIANISMO E O DIREITO: LUTERO E A IGREJA CATÓLICA


“A cultura e a civilização ainda não existem. Estão apenas começando a ingressar na cena social. É o começo do fim do crônico assassinato de Cristo.” (Wilhelm Reich)


ROGER MOKO YABIKU*


            É evidente e inegável a influência do cristianismo no mundo contemporâneo, um dos fenômenos mais marcantes de toda a história humana, explica Karl Kautsky (p. 39), em “A Origem do Cristianismo”. A doutrina religiosa inspirada em Jesus Cristo teve enorme influência no Direito quando, por exemplo, legou a dignidade da pessoa humana alçada à condição de princípio basilar (art. 1º, III, da Constituição Federal). “(...) é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos, possuidor de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade”, ensina Luis Régis Prado (p. 163), em “Curso de Direito Penal v. 1”.
No Direito Penal, por exemplo, nota-se sua marca, com adoção das penas privativas de liberdade, em vez da pena de morte, de banimento, de tortura, cruéis e de caráter perpétuo, nos termos do princípio da humanidade (ou limitador das penas). O termo penitenciária (local onde se cumpre a pena de prisão) vem de penitência. Ou seja, arrepender-se do mal praticado, em busca de perdão. Sabe-se que nos termos do artigo 59 do Código Penal brasileiro, as funções da pena de prisão são a retribuição (reprovação) e prevenção, sendo que nesta, dentre outras, há a finalidade específica de recuperação do condenado (prevenção especial positiva).
           
Religião oficial
O cristianismo, de início, foi perseguido pelo Império Romano. Os cristãos eram castigados por heresia, ou seja, por ofensa ao Imperador de Roma, que era concebido como a própria divindade em Terra. Em momento posterior, a religião oriunda do Oriente Médio foi tolerada, legalizada (pelo Édito de Milão, de Constantino, em 313) para, então, se tornar a oficial do Império, com Teodósio I (391-392 d. C.). “Foi perante a comunidade cristã, não perante o comunismo cristão, que os imperadores romanos finalmente dobraram os joelhos. A vitória do cristianismo não foi uma ditadura do proletariado, mas dos senhores que ele criara em sua própria comunidade”, alerta Kautsky (p. 464).
            A Igreja começou a se estruturar burocraticamente. Todas as dissidências contra a tradição que começava a ser formar eram eliminadas. “Concebeu-se então uma doutrina oficial, reconhecida e disseminada pela burocracia da comunidade, que aplicava medidas repressivas, cada vez mais, contra as quais não estivesse de acordo”, afirma Kautsky (p. 481).
A estrutura eclesiástica ganhou musculatura de tal modo que, quando o Império Romano do Ocidente caiu perante o bárbaro germânico Odoacro (476 d. C.), substituindo, paulatinamente, as instituições romanas. Aliás, o cristianismo expandiu-se muito além das fronteiras do império, evangelizando os que se encontravam no seu caminho. Constituiu-se também no bastião intelectual da Europa, por meio dos monges.

Católicos, ortodoxos e protestantes
Com a cisma do Oriente (1.054 d.C), a Igreja dividiu-se em Católica Apostólica Romana e em Ortodoxa. No Ocidente, prevaleceram os dogmas e a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, praticamente inquestionável por séculos até Reforma Protestante (século XVI), cujo um dos líderes foi o monge agostiniano alemão Martinho Lutero.
            Porém, de que maneira o catolicismo e o protestantismo conceituam e concebem o Direito? Gustav Radbruch, jurista alemão, em “Filosofia do Direito”, faz uma tenaz explicação, proporcionando melhor entendimento da maior, ou menor, influência das duas principais potências cristãs europeias na concepção de Direito.
            Para o catolicismo, analisa Radbruch (p. 274), toda a forma de Direito provém de Deus. Por sua vez, prossegue, Lutero concebia o Direito como absolutamente profano, inclusive o Direito Eclesiástico, ou seja, um Direito sem Deus.

Hierarquia, interioridade e exterioridade
            No catolicismo, a igreja jurídica, segundo Radbruch, é igualmente instituição divina, que dá valor próprio à mesma. A igreja consagra a si mesma, daí a organização hierárquica de cima para baixo, o que também determina suas relações com o Estado e o Direito Estatal (Positivo). “Ao lado do Direito revelado por Deus, sobre o qual repousa a igreja jurídica, encontra-se o Direito Natural outorgado aos homens por Deus, cuja realização é tarefa do Estado”, narra Radbruch (p. 275).
            Sendo o Direito Eclesiástico e o Direito Estatal fluem da mesma fonte divina, ambos não se podem contradizer. Porém, em havendo contradição, deveria prevalecer o Direito Divino. Trata-se, pois, da unidade do mundo jurídico, em que o Direito é revelado pelo próprio Deus.
            Todavia, a fé e o amor – interioridade e espontaneidade – que são essências da igreja chocam-se com o formalismo e a coação do Direito. “O formalismo jurídico não pode decidir sobre a beatitude, nem a coação jurídica obrigar a uma vida cristã”, escreve Radbruch (p. 276). O Direito Positivo não se importa com o estado consciente, mas tão somente com a exterioridade da conduta. Já para a religião, o que importa é a fé e o amor, em suma, a consciência.

Nem de Deus, nem contra Deus
            Conforme a doutrina luterana (protestante), assevera Radbruch (p. 278), “Jesus nem prescreveu, nem excluiu uma ordenação jurídica à igreja, o Direito não é nem de Deus, nem contra ele, mas é muito mais sem Deus – contra Deus somente quando se declara que é originado de Deus e quando, por conseguinte, a igreja jurídica invade o lugar reservado à igreja espiritual”.
            Diante dessa dicotomia, paradoxalmente, Lutero afirma que se deve viver, concomitantemente, em dois mundos, num deles como cristão e, no outro, como mundano, no mundo jurídico, mas como se nele não se vivesse. “O Direito permanece, pois, completamente inessencial e sem consagração, totalmente profano, sem vínculo com a religião e religiosamente indiferente”, escreve Radbruch (p. 280).
            Todavia, para Lutero, o Estado seria uma organização da igreja, um Estado Cristão. Já o soberano do Estado, diz Radbruch (p. 281), não é mero suporte do poder estatal, mas um integrante da igreja, com deveres para com ela. No entanto, o Estado Cristão secularizou-se durante as eras, até a sua separação definitiva da igreja, como se verifica no art. 137 da Constitução de Weimar (1919): “Não existe uma igreja do Estado.” Tal fato, segundo Kautsky (p. 39), foi obra da burguesia esclarecida do século XVIII, que se propôs a investigar cientificamente o cristianismo, que, até então, era estudado em bases puramente teológicas.


 
REFERÊNCIAS
KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
PRADO, Luis Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


* ROGER MOKO YABIKU é Bacharel em Direito e Jornalismo, Graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores em Filosofia, MBA em Comércio Exterior, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Advogado militante do escritório Badaró & Yabiku Advocacia e professor do CEUNSP. e-mail: ryabiku@terra.com.br

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