segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Anúncio classificado
Decidi tornar pública a minha procura, pois há de muito que sua falta me desalenta.
Antes, batia de porta em porta, estorvando o sono e a paciência dos outros:
“Ô, de casa, alguém aí tem uma musa para mim.”
Quase parei na cadeia, com passagem pelo hospício, embora não tenha feito nenhum
Malefício. Mas uma ou outra alma caridosa ainda me atendia: “Como é tal moça que o
Senhor procura.” Minha resposta era curta e absurda: “Não sei. Se soubesse como ela
É, não lhe estaria procurando.”
Cheio de bolha nos pés e com as orelhas vermelhas de tapões e xingamentos, tomei
Uma medida prática. Fui ao jornal e decidi fazer um anúncio classificado:
Procuro uma musa que possa colorir meus sonhos e fique ao meu lado nas noites
Mais frias de verão.
Procuro uma musa que me faça escrever letras de amor, contando a nossa odisséia
De vitória sobre esta corja de burros.
Procuro uma musa alegre, de olhar sincero a quem eu possa amar, como nunca fiz
Antes.
Na porta do jornal, o texto estava decorado na cabeça. Tinha que resumir um
Pouquinho porque o meu bolso não podia com tantas letrinhas de amor.
Então, assim ficou:
Procuro uma musa para sempre e eternamente, que me inspire a todo instante !
Ainda meio ressabiado, virei meia-volta e dei um giro pela praça.
Perguntei a uma moça o que ela achava sobre o que tinha escrito.
“Se você me pagar, posso fazer tudo isso.”
Agradeci, mas recusei. Afinal, amor pago é mal remunerado.
Pedi opinião ao menino sujo e extrovertido. Ele disse:
“O que é musa, moço ? É de comer.”
Dei-lhe umas moedas e fui procurar outra opinião.
Um sujeito com nariz em pé, com bloco de papel na mão e caneta no bolso da camisa,
Que se dizia jornalista, mesmo sem ter capacidade para isso, falou:
“Um texto jornalístico não deve terminar com sinal de exclamação !”
“Eu sei, bocó. Mas isto é um anúncio classificado.”
E continuei a perambular. Para esses tipos, José Saramago é um vinho tinto português,
Muito saboroso, por sinal. Oras bolas; minhas bolas, carambolas !
Parei de coletar palpites. Mesmo porque o “eu acho” dos outros nunca é bom para a
Gente, ainda mais quando proferido por incoerentes.
Passei pela catedral, falando em voz alta:
Procuro uma musa ! Procuro uma musa que me seduza !
O padre celebrava a missa. Empolgado por esse amor oculto, adentrei o recinto e
Gritei como se fosse soltar meus pulmões:
Ei, alguém aí dentro tem uma musa ! Procuro uma musa !
As carolas ficaram brancas de susto e silêncio e o padre liderou o coral: Blasfêmia.
Saí e corri, tropecei e caí. Não estava nem aí.
Mesmo sujo e com os joelhos ralados, entrei no jornal.
Procurei nos bolsos, mas só encontrei os buracos e as merrecas com que pagaria
Aquele anúncio classificado. Tinha perdido o papel de ode à musa.
Pasmado com um nó no coração, segurei os cabelos, como se fosse arrancá-los.
Recuperei a calma e entrei de novo no jornal, fui ao balcão embaixo da placa em que
Estava escrito “Classificados”. Tudo bonito, bem informatizado.
“Queria fazer um anúncio classificado.”
“Qual é a mensagem e qual seção em que vai ficar ?”
“Moça, você tem namorado ?”
“Não, por que o senhor pergunta ?”
“Por nada, moça. Por nada.”
O gordo que estava atrás de mim, na fila, estava impaciente e me deu um ultimato.
Contei que ainda não tinha feito o anúncio classificado.
“Vou pensar e já volto”, falei e voltei para o fim da fila, que estava grande.
Lá pelo meio da fila, surgiu outra idéia, que foi amadurecendo durante o desenrolar
Dos minutos. Com as roupas sujas e o fedor da procura, os meus sucessores da fila
Desistiram do que vieram fazer. Assim, eu era sempre o último da fila.
A moça do balcão percebeu e ficou diferente. Coitada, pensei. Deve estar brava
Comigo. Chegou a minha vez novamente, indaguei-lhe o nome.
“Musa”, respondeu-me. Naquele exato instante, encontrei o pedaço de papel com a
Mensagem. Rasguei-o e joguei-o disfarçadamente.
A musa estava ali e não havia mais motivo para fazer aquele anúncio classificado.
“O que você vai fazer hoje à noite, depois do expediente ?”
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